Os últimos anos nos Estados Unidos foram marcados pelo avanço da polarização na sociedade e pela luta de mulheres e negros por maior presença no poder. Essas duas tendências marcam o novo Congresso dos EUA, que tomou posse neste mês e deverá trazer desafios para a Presidência de Joe Biden.
Essa legislatura, a 117ª, é a mais diversa já eleita: nunca houve tantas mulheres e negros na composição do Congresso. São 144 congressistas mulheres, que representam 27% do total. A representação, porém, ainda é baixa, pois elas são 50,8% da sociedade. Já os negros somam 63, ou 13% do total. Apesar do avanço –eram 55 até então–, homens brancos seguem sendo a ampla maioria dos congressistas.
Ao mesmo tempo, a política americana atingiu alto nível de tensão, cujo ápice foi a invasão do próprio Congresso, por apoiadores de Donald Trump, há duas semanas. Essa divisão se reflete em brigas internas dos partidos e um acirramento maior entre as duas legendas, o que dificultará o governo de Biden.
Nas últimas eleições, os democratas conquistaram maioria na Câmara e no Senado, mas por margem estreita: 222 a 212 na Câmara e 50 a 50 no Senado. Nesse último, a futura vice-presidente do país, a democrata Kamala Harris, tem o poder de desempate, caso seja necessário.
Sem apoio dos republicanos, não será possível aprovar reformas profundas, que exigem maioria de dois terços no Senado. E as votações por maioria simples precisarão de união total dos democratas.
"Essas margens estreitas requerem uma coesão absoluta no Partido Democrata, que não anda muito coeso", aponta Carlos Gustavo Poggio, professor de relações internacionais da Faap. "A união durante a campanha de Biden foi por conveniência."
Entre os democratas, há um embate entre moderados e a ala mais à esquerda, que defende ações incisivas para combater a desigualdade social e as mudanças climáticas. Biden defendeu essas bandeiras durante a campanha, mas, ao compor seu gabinete, preferiu apostar em nomes centristas que fizeram parte da gestão de Barack Obama (2009-16), de quem ele foi vice.
"É bem possível que vão crescer as disputas internas no Partido Democrata para definir quais pautas serão levadas à frente e qual setor vai definir a agenda política do governo Biden", diz Pedro Brites, professor de relações internacionais da FGV-SP.
Um dos símbolos da ala à esquerda, o senador Bernie Sanders –ele, na verdade, é um independente– foi o principal rival de Biden na disputa pela candidatura democrata à Presidência. Ao mesmo tempo, virou alvo de Trump, que o descreve como um esquerdista perigoso e capaz de trazer o comunismo para a América.
Sanders terá papel importante. Cotado para chefiar a Comissão de Orçamento, com poderes decisivos em duas questões-chave –como arrecadar e gastar o dinheiro dos impostos–, ele já deixou claro que brigará por mais verbas para ajudar famílias, mais investimento em energia verde e menos gastos militares.
"Há muito desperdício nesse orçamento [militar], e ninguém se preocupa. Mas quando falamos de mães e pais sofrendo para colocar comida na mesa, ah, meu Deus! 'Estamos preocupados com o déficit'", ironizou o congressista pelo estado de Vermont em vídeo divulgado no sábado (16).
No cargo, poderá usar um dispositivo chamado "reconciliação orçamentária" para fazer mudanças no orçamento e em impostos com aprovação por maioria simples, sem precisar dos republicanos.
Essa foi uma das saídas usadas por outros presidentes para desviar da oposição do Congresso. Obama teve de lidar com a maioria republicana nas duas Casas em seis dos oito anos de mandato. Já Trump sempre teve vantagem no Senado, mas passou a segunda metade do governo com maioria democrata na Câmara, que aprovou dois pedidos de afastamento contra ele.
A outra resposta de Obama e Trump aos bloqueios no Legislativo foi governar por meio de ordens executivas, equivalente à medida provisória brasileira. Biden sinalizou que deve usar essa opção no começo do governo, especialmente para reverter decisões de Trump, como o veto a viajantes vindos de alguns países muçulmanos, e para endurecer medidas de combate ao coronavírus.
Para o Congresso, haverá duas pautas principais no início do governo Biden: a aprovação de um novo pacote de ajuda à economia e a decisão sobre o impeachment de Trump, a ser votado no Senado.
Defender ou não Trump é a questão que racha os republicanos. Apoiadores seguem dizendo que ele perdeu a reeleição devido a fraudes, nunca provadas, enquanto críticos dentro da legenda defendem que o empresário seja punido, porque ele ameaça a democracia, já que insuflou a invasão do Capitólio.
Na votação na Câmara, na semana passada, dez deputados republicanos votaram pela aprovação do impeachment, enquanto outros 197 negaram. "Se afastássemos todos os políticos que fazem discursos inflamados, esta capital estaria vazia", provocou Tom McCkintock, deputado pela Califórnia.
A votação do impedimento no Senado, que poderá proibir de Trump de disputar novamente a Presidência, depende de apoio de ao menos 17 republicanos, pois exige maioria de dois terços (67 senadores).
Alguns democratas defendem que a votação do impeachment seja adiada por alguns meses, para facilitar a aprovação de temas cruciais no início do governo, como o novo pacote de ajuda à economia e de combate ao coronavírus, estimado em US$ 1,9 trilhão.
Parte dos republicanos considera que o governo já gastou demais com esses auxílios e busca reduzir os valores pagos, como ocorreu em dezembro. O próprio Trump defendeu oferecer ajuda de US$ 2.000 a cada pessoa, mas os republicanos no Congresso acabaram baixando a cifra para US$ 600.
Biden diz que sua experiência de 27 anos como senador o ajudará a resolver impasses parlamentares e que "todo republicano experiente sabe que eu nunca os iludi". "Eu serei capaz de conseguir resolver questões sobre meio ambiente que vocês não vão acreditar, e que eu não conseguiria seis anos atrás."
Biden, porém, não conseguiu reverter obstruções republicanas durante a era Obama. Por outro lado, 31 dos atuais senadores foram colegas de Biden, que atuou na Casa entre 1973 e 2009. A renovação ali é lenta: só 7% dos parlamentares atuais estão em primeiro mandato. Um sinal de que o barulho das ruas ainda tem dificuldade para gerar grandes mudanças na política tradicional.
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