O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) desembarcou na madrugada desta sexta-feira (19/5) em Hiroshima, no Japão, para participar da reunião do G7 — grupo composto por Canadá, Reino Unido, Japão, Estados Unidos, Itália, Alemanha e França.
Será a primeira vez em 14 anos que um mandatário brasileiro participa das reuniões do G7. Neste ano, oito nações foram convidadas: Índia, Indonésia, Austrália, Ilhas Cook, Comores, Coreia do Sul, Vietnã, além do Brasil.
Diante dos líderes das sete nações mais industrializadas do mundo, Lula pretende expor um problema histórico e bem conhecido dos brasileiros: a crise econômica da Argentina.
Com uma inflação de quase 110% ao ano, juros anuais em 97%, reservas em dólar no menor patamar desde 2016 (e que alguns analistas já enxergam como negativa, na prática) e o peso superdesvalorizado, a Argentina enfrentou recentemente a pior seca em 94 anos (que também atingiu a região Sul do Brasil), o que quebrou as safras de milho e soja do país.
O cenário catastrófico — em ano eleitoral — levou o presidente argentino Alberto Fernandez a uma visita emergencial a Brasília há duas semanas, para pedir socorro financeiro.
“Na verdade, neste momento, a Argentina já tem passivos de mais de US$1 bilhão, já está no vermelho. É evidente que a perda de receitas de exportação com a seca teve efeitos violentos, mas o problema já vinha de antes. É uma situação em que literalmente daqui a pouco o Banco Central argentino terá que se declarar incapaz de entregar dólares para bancar os serviços. É uma situação de moratória em semanas, meses. O que está acontecendo agora é muito parecido ao cenário de 2001”, afirma o economista Otaviano Canuto.
Nessa fala, o ex-vice-presidente do Banco Mundial e membro-sênior do Centro de Políticas para o Novo Sul Global refere-se ao Corralito, a última grande crise do país vizinho que levou a um pacote de medidas para impedir corrida aos bancos.
Diante do quadro, Lula elegeu como uma de suas prioridades nos encontros com os líderes do G7 tentar ajudar a Argentina a renegociar as condições do empréstimo de US$ 44,5 bilhões contraído com o Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2018.
Preocupados com temas como a disputa entre EUA e China, segurança alimentar, cadeias de produtivas, aquecimento climático e a Guerra da Ucrânia, os integrantes do G7 não têm na crise econômica argentina uma de suas prioridades.
No entanto, segundo assessores de Lula, a lógica do presidente para tentar emplacar a pauta é simples: “se eles (G7) querem discutir Ucrânia, nós queremos discutir Argentina, são as prioridades”.
À exceção do Canadá, os demais seis membros do G7 estão entre os dez maiores financiadores do FMI (o Brasil é atualmente o décimo maior cotista do banco, e a Índia, que também estará no evento, é a nona).
Segundo fontes ouvidas pela BBC News Brasil no Ministério do Planejamento, na Fazenda e no Palácio do Planalto, os argentinos pediram e Lula topou levar aos líderes o pedido para que o FMI flexibilize as metas fiscais do acordo de empréstimo vigente — que a Argentina será incapaz de cumprir — e para que aceite adiantar repasses em torno de R$80 bilhões, que deveriam ser desembolsados até dezembro pelo Fundo caso as metas fossem cumpridas pelo governo Fernandez.
Em recente visita à China, Lula já havia citado o caso da Argentina e do FMI para criticar os bancos multilaterais e exaltar o Novo Banco do Desenvolvimento (NDB), ou banco dos Brics, atualmente presidido pela ex-presidente Dilma Rousseff.
"Os bancos têm de ter paciência. Se for preciso, renovar o acordo e colocar a palavra tolerância em cada renovação porque não cabe ao banco ficar asfixiando as economias dos países, como está fazendo agora com a Argentina o Fundo Monetário Internacional", disse Lula.
Antes mesmo da chegada de Lula ao Japão, coube ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tratar do tema Argentina no G7 Financeiro com ao menos três de suas contrapartes, durante reuniões bilaterais.
O ministro tentou “sensibilizar” a secretária do Tesouro dos EUA Janet Yellen, o ministro da economia do Japão, Yasutoshi Nishimura e a ministra das Finanças Indiana Nirmala Sitharaman.
Haddad tem justificado a mediação a partir de interesses imediatos brasileiros: junto com a China, o Brasil é o maior parceiro comercial da Argentina e possui uma balança comercial superavitária com os vizinhos.
Economistas avaliam, porém, que por pior que seja a crise dos argentinos, um “efeito contágio” na economia da região é improvável.
Questionados sobre o tema pela BBC News Brasil, diplomatas americanos disseram conhecer “as críticas” de Lula aos bancos multilaterais em Washington, mas evitaram se posicionar sobre o novo pedido da Argentina — os EUA representam quase 17% do capital do FMI.
Publicamente, o FMI diz que mantém “debates construtivos” com autoridades argentinas e não discute os termos do acordo, que são sigilosos. Mas no mercado financeiro, a percepção é de que há pouca simpatia pelo pleito argentino.
Recentemente, o jornal argentino La Nación citou fontes do fundo que afirmam temer o uso eleitoral de um eventual adiantamento — Fernandez recém anunciou que não concorrerá à reeleição.
No Ministério da Fazenda e no Planejamento do Brasil, o entendimento é de que a disposição do Fundo “não é das melhores”. Mas que a pressão do governo poderia desestabilizar o atual representante do Brasil na diretoria Executiva, Afonso Bevilaqua, no posto desde a gestão Bolsonaro.
“Esse pedido da Argentina só seria possível se os grandes shareholders quisessem e decidissem dar fundos adicionais, sem garantias. Não vejo isso como justificável (o pedido da Argentina), como viável pelas regras do FMI. Legalmente, o FMI não pode rolar a dívida. No fundo, o que o governo da Argentina está tentando fazer é empurrar com a barriga uma situação insustentável ”, diz Canuto.
Se tem pouca chance de sucesso para amenizar a situação financeira argentina, o fato de Lula encampar a causa do país junto aos líderes globais é mais uma tentativa de alavancar a estatura do Brasil tanto regionalmente quanto globalmente.
Para os países do Cone Sul, sinalizaria o compromisso do país em usar seus espaços privilegiados na política global em defesa dos interesses regionais. Para os líderes globais, mostraria que o Brasil não fala apenas por si, mas representa um conjunto de nações que o enxergam como líder.
A percepção no governo Lula, segundo assessores, é de que essa seria outra oportunidade de mostrar que “o Brasil voltou”.
Segundo o professor de relações internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Belém Lopes, o governo Lula começou “acelerando” uma política externa que, na verdade, já adota há décadas.
“Brasil e Argentina são aliados na diplomacia desde os anos 1970 e 1980 com Itaipu, passa pelo Mercosul e chega hoje a fóruns como o G20 e até o Conselho de Segurança da ONU que, agora que o Brasil é membro não permanente, abre espaço para a Argentina, o Chile, e outros aliados da América do Sul nesse esforço para galvanizar os apoios e para se tornar uma liderança da sua região, e, eventualmente, da América Latina e Caribe”, afirma Belém Lopes.
“No âmbito do G20, o grande aliado brasileiro é a Argentina. Há uma composição de interesses ali cujo objetivo maior, naturalmente, é juntar forças para conseguir exercer uma pressão, para conseguir pautar as reuniões e proporcionar uma atenção maior às visões do Sul global.”
Os quatro anos da gestão Bolsonaro representaram um hiato nessa política externa. Mas ainda em janeiro, ao fazer sua primeira visita oficial de mandato à Argentina e ao Uruguai, Lula demonstrou a intenção de reverter a direção e apostar mais uma vez no Mercosul.
No Itamaraty, o entendimento é que esse tipo de pauta é importante também para deixar claro que o Brasil não se vê e nem deseja ser tratado apenas como uma liderança ambiental. O Brasil assumirá a presidência do G20 em dezembro próximo e, na condição de líder do bloco, convidou Paraguai e Uruguai, parceiros do Mercosul, a atuarem como membros convidados do bloco.
Nesse contexto, uma ausência notável nas discussões propostas pelo Brasil no G7 deve ser a do acordo comercial Mercosul-União Europeia. Tratado como prioridade durante a campanha de Lula, que criticava Bolsonaro por não ter concluído o acerto por questões ambientais, o texto passou a ser motivo de cizânia dentro do governo petista.
O teor de uma carta enviada pela União Europeia com exigências ambientais caiu mal para as lideranças da região.
Na administração federal brasileira, pastas como a Fazenda, o Planejamento e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços acreditam que é possível responder aos europeus no mesmo tom por vias diplomáticas, sem necessidade de reabrir os termos do acordo já aprovado.
O outro lado, representado especialmente pela Casa Civil, vê nos termos da carta e do acordo em si condições inaceitáveis. Diante da queda de braço da gestão, Lula passou a evitar comentários muito assertivos em relação ao acordo Mercosul e União Europeia e uma posição final do presidente só deve ser tomada após o retorno dele no Japão. Durante o G7 Financeiro, Haddad não abordou o tema.
Belém Lopes propõe uma possível explicação para o aparente paradoxo do silêncio brasileiro em relação ao acordo Mercosul-União Europeia em um fórum tão privilegiado.
“Sem entrar no mérito de se é bom ou ruim, acho que dá para entender (a posição do governo Lula). O Brasil quer liderar sua região, está claro que retomar o protagonismo regional é uma prioridade. Uma iniciativa como o Acordo Bi-Regional União Europeia-Mercosul poderia eventualmente diluir essa capacidade brasileira de liderar sua própria região, especialmente se o acordo não é percebido como bom para o Brasil ou para setores da economia brasileira, da indústria brasileira. Por isso o governo passou a lidar com isso sem nenhuma pressa”, afirma Belém Lopes.
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