O Chile lidera o ranking de países latino-americanos com a maior parcela da população completamente imunizada (83,7%) contra a Covid-19 e está à frente também na aplicação da terceira dose (que já chegou a 42,1% dos chilenos). Em uma gestão em que o presidente tem 20% de aprovação e encerra o mandato desgastado por acusações de corrupção e protestos, a campanha de vacinação é o legado mais elogiado de Sebastián Piñera.
O país ainda convive com restrições: estrangeiros não podem entrar sem um esquema de imunização validado pelas autoridades sanitárias, máscaras são obrigatórias nas ruas e o acesso a restaurantes e bares só é autorizado com o Passe de Mobilidade.
Depois de duas ondas graves da pandemia (até aqui são mais de 38 mil mortos), os chilenos ensaiam respirar um pouco mais aliviados. A apreensão agora é sobre como manter o ritmo de vacinação com a chegada de um novo presidente em 2022 - em 19 de dezembro, o ultradireitista José Antonio Kast e o esquerdista Gabriel Boric disputam o segundo turno.
"Não sabemos quais serão as estratégias de cada um, mas estamos deixando abertas as portas de todos os laboratórios com os quais negociamos nos últimos meses", diz Rodrigo Yáñez, 42, subsecretário de Relações Econômicas Internacionais e responsável da gestão Piñera pela compra de vacinas.
Em entrevista à reportagem, em Santiago, ele diz que o Chile já tem doses de reforço para toda a população e que acordos para uma quarta injeção, no primeiro semestre de 2022, já estão fechados. "Espero poder iniciar a transição o mais rápido possível. Uma troca de governo não pode significar interromper o ritmo."
PERGUNTA - O senhor crê que o fato de o Chile ter uma tradição liberal e manter tratados internacionais com dezenas de países ajudou a agilizar a compra de vacinas?
RODRIGO YÁÑEZ: Sim, há um círculo virtuoso quando o modelo econômico é esse. Trinta anos de abertura comercial geraram redes e dinâmicas que facilitaram esse processo de enfrentamento da pandemia. Sem mercado não há vacina, e o mercado não é pensado apenas para beneficiar as grandes empresas. Apostamos nisso e conseguimos ser o país com melhor desempenho na vacinação na região sem termos de fabricar nem uma dose.
Essas características do Chile facilitaram não apenas a importação de vacinas, mas também para que equipamentos médicos e o que fosse necessário chegasse rápido, sem demoras em alfândegas. Atuamos com pragmatismo. Por que deveríamos nos fechar a uma vacina por critérios que não fossem os sanitários, sua segurança e sua eficácia?
P - E não houve resistência ou críticas por parte da oposição com relação a determinadas vacinas, como ocorreu em outros países?
RY - Houve casos pontuais, mas não chegaram a preocupar. Decidimos logo de início que não politizaríamos as decisões relacionadas à pandemia. Portanto, não havia vacina fora de jogo para nós, fosse ela russa, chinesa ou americana.
P - O governo chileno tomou a decisão de comprar vacinas muito cedo. Como era a avaliação de riscos?
RY - Foi complexo negociar com tantas incertezas como as que haviam na época. O presidente Sebastián Piñera, que é muito controlador, colocou muita pressão nas equipes de diversos ministérios para que a aquisição de vacinas fosse rápida. Ele dizia que a vacina seria algo escasso e que era necessário ter várias opções.
Havia dúvidas no começo com relação às vacinas de RNA mensageiro, mas, enquanto essa discussão ocorria, não deixamos de negociar com a Pfizer ao mesmo tempo que garantimos a Sinovac, de uma técnica mais conhecida. Ela foi essencial para que continuássemos vacinando mesmo quando houve problemas de chegada de estoque da Pfizer. Não precisamos interromper o processo em nenhum momento.
P - No caso da Sinovac, o contrato de vocês não envolvia o Instituto Butantan [que a produz no Brasil, sob o nome Coronavac]. Mas houve diálogo?
RY - Nosso contrato com a Sinovac é independente, recebemos a vacina já pronta da China. Mas, sim, houve intercâmbio de informação, ainda que o Butantan tenha cometido erros no modo como comunicou a eficácia da vacina - o que no Brasil ocorreu num contexto do jogo político que abalou a confiança no imunizante. É lamentável que a Sinovac tenha ficado no meio de um fogo cruzado por causa do enfrentamento de João Doria [governador de São Paulo] e Jair Bolsonaro [presidente].
P - Na Argentina e no Brasil houve demora na contratação de imunizantes da Pfizer. Entre outras coisas porque Alberto Fernández dizia que o contrato proposto "feria a soberania" do país e porque Bolsonaro afirmava que não havia garantias sobre a segurança da vacina, a famosa frase sobre "virar jacaré". Por que esse tipo de questionamento não se deu no Chile?
RY - Fantasiou-se muito sobre as condições que a Pfizer pedia. É verdade que se trata de um contrato leonino no que diz respeito à isenção de responsabilidade, mas era isso ou nada. Para o Chile não é estranho lidar com esse tipo de contrato, porque isso já ocorre no dia a dia dos negócios.
No caso da Argentina, a recusa à Pfizer ficou ainda mais grave pelo fato de o país ter apostado tantas fichas só na Sputnik. É uma boa vacina, mas o laboratório russo teve dificuldades para realizar o abastecimento como acordado.
P - O Chile já tem 42,1% de vacinados com a terceira dose. Há planos para a quarta? Não há resistência na população em continuar se vacinando?
RY - Nós já estamos com as doses necessárias para terminar a vacinação com a terceira dose e, para o começo da quarta dose, no primeiro semestre do ano que vem, já há contratos negociados. O que vai depender do próximo governo são as negociações para o segundo semestre, quando haverá mais pessoas para receber a quarta dose, porque começamos com os idosos.
Estamos apreensivos com a transição para o novo governo, porque essas coisas se negociam com antecedência e já é preciso começar a conversar sobre a importação de vacinas para o segundo semestre de 2022.
Sobre a confiança na vacinação, temos uma tradição de respeito à autoridade sanitária. Tanto que a popularidade de Piñera está baixa, mas não a das autoridades da saúde ou da vacinação. Há cerca de 10% da população mais resistente, mas temos tentado fazer uma campanha de convencimento, mostrando que é graças à vacinação que a nova onda não está tão séria. Outro argumento é que a economia não parou, e tudo indica que não será necessário tomar medidas tão restritivas como as de antes - a vacinação com três doses tem mantido casos graves em número reduzido.
Também há o exemplo do exterior, nos países europeus ou nos EUA, regiões em que há novas ondas e casos graves entre a população não vacinada. Esperamos que possamos convencer os que têm dúvida de que a vacinação está sendo positiva do ponto de vista sanitário e econômico.
P - Kast e Gabriel Boric não são negacionistas do vírus nem falaram contra a vacinação. Isso significa que importa menos quem será o próximo presidente?
RY - Meu trabalho, que acaba em março, é deixar o máximo de portas abertas, até mesmo com vacinas com as quais acabamos não trabalhando muito, como a Sputnik. O novo presidente poderá realizar suas escolhas, mas é necessário um processo de transição organizado e que se estabeleça rápido as diretrizes. Há exemplos de países que passaram por transições de governo não muito organizadas que afetaram o ritmo da vacinação.
Também já começamos a conversar com laboratórios que estão produzindo os antivirais, e é preciso adiantar-se nas conversas o mais cedo possível.
P - O senhor crê que projetos de integração regional deixaram a desejar na pandemia?
RY - Sem dúvida. Foi uma das lições da pandemia, cada país se fechou em si mesmo, os blocos foram lentos e insuficientes. Nem Celac nem Aliança do Pacífico nem Mercosul puderam articular planos eficientes. Esse é um debate que precisa ocorrer.
Mesmo o mecanismo Covax [ligado à OMS] não ofereceu boas soluções para quem só confiou nele. Nós usamos e recebemos imunizantes da AstraZeneca, mas teríamos ficado na mão se dependêssemos apenas do Covax. O Paraguai fez essa aposta e pagou o preço. O Covax cumpre, mas com prazos muito amplos, que podem colocar em risco o ritmo da vacinação. Ele deve ser um apoio, apenas.
P - O que o senhor acha do debate sobre a quebra de patentes? É uma discussão que tem de acontecer, mas com realismo, sem dar falsas esperanças. A ideia é mais complexa do que parece, porque a cadeia de valor de uma vacina passa por vários países, às vezes 15, das seringas a tampinhas e à tecnologia para transportar.
RY - Não basta um papel que indique a quebra da patente. Não podemos enganar as pessoas dizendo que apenas quebrando as patentes temos a solução, precisamos ser responsáveis.
Raio-x | Rodrigo Yáñez, 42 Advogado, desde 2018 é diretor-geral de Relações Econômicas Internacionais do Ministério das Relações Exteriores do Chile. Além de comandar a compra de vacinas, é responsável por definir a participação do país em fóruns como a Aliança do Pacífico Foi ainda assessor internacional sobre temas regulatórios do governo Sebastián Piñera entre 2010 e 2014.
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