Hospitais e necrotérios de Guayaquil, a segunda cidade mais importante do Equador, estão abarrotados por conta da crise causada pelo novo coronavírus.
Com isso, famílias têm de conviver durante dias com cadáveres de parentes mortos pelas mais diferentes causas, não só devido à covid-19, até que chegue um veículo da prefeitura.
Nos casos ligado ao novo coronavírus, por medo de contágio, muitos têm tirado os corpos de casa e os levado para parques ou áreas públicas da cidade.
"O sistema de saúde equatoriano tem muitos problemas, especialmente na região litorânea [onde está Guayaquil]", diz o jornalista e analista político Martín Pallares, por telefone.
"Ouvimos relatos de médicos que não querem trabalhar nessas áreas, porque não há equipamento para evitar a contaminação."
A situação no país relativa à pandemia começou a se agravar em meados de março.
Na semana passada, o presidente Lenín Moreno ordenou que as Forças Armadas realizassem uma coleta desses cadáveres o mais rápido possível. Segundo o jornal El Universo, foram recolhidos 350 corpos.
"Nós vamos dar um enterro digno a todos", prometeu Moreno. Muitos ocorreram no último fim de semana, sem presença de parentes por precaução.
O Equador, com 16,6 milhões de habitantes, tem uma população 13 vezes menor que a do Brasil. Em termos de território, a área do país é 30 vezes menor que a brasileira.
Por isso, espanta que esteja atrás apenas de Brasil e Chile nos números de casos confirmados (2.758) do novo coronavírus, segundo dados da Universidade Johns Hopkins na manhã desta quinta-feira (2).
Se a diferença no número de casos para o Chile é pequena -273-, a da cifra de mortos é grande. Enquanto o país governado por Sebastián Piñera registra 16 mortes, o Equador conta 98 óbitos.
A chegada com força da pandemia só fez agravar uma crise política iniciada em outubro de 2019 devido aos ajustes que a gestão de Moreno pretendia fazer no preço dos combustíveis para se adequar a metas impostas pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), a quem o país pediu empréstimo de US$ 4 bilhões (R$ 21,1 bilhões).
O episódio causou fortes enfrentamentos, especialmente entre as comunidades indígenas e camponesas do país e as forças de segurança, causando sete mortes e deixando 1.340 pessoas feridas.
Ao final, Moreno recuou e revogou o polêmico decreto, adiando a decisão de um ajuste em algum outro setor, ainda não definido.
Assim, a fricção entre governo e sociedade, principalmente a parte rural do país, é grande e vem debilitando a imagem do presidente.
A popularidade de Moreno está em 8%, de acordo com pesquisa realizada em fevereiro pelo instituto Click Report, e suas decisões são contestadas por seu rival político, o ex-presidente Rafael Correa, que hoje vive na Europa.
"Correa tem exercido um papel desestabilizador muito forte por meio de críticas duras a tudo que Moreno decide, desde a economia até a pandemia", diz Pallares. "Agora, que seria um momento de estimular uma coalizão nacional contra a epidemia, prega a divisão."
Moreno, que está dentro do grupo de risco da covid-19 -tem 67 anos e problemas renais-, afastou-se do dia a dia do poder, ainda que tenha determinado quarentena obrigatória e medidas de isolamento social.
Colocou à frente da campanha de combate à pandemia seu vice-presidente, o popular Otto Sonnenholzner, um economista de 36 anos e favorito do presidente para ser seu sucessor.
Assim, Moreno e seu partido, o Alianza País, visam a construção de uma candidatura forte para as eleições de fevereiro de 2021.
"A ideia é começar a reforçar já um sucessor, para afastar a possibilidade de que Correa, ainda que inabilitado [a lei equatoriana permite apenas uma reeleição] e com processos na Justiça, eleja, com sua popularidade, um candidato ligado ao seu grupo político", afirma Pallares.
Já para o cientista político Simón Pachano, a crise de liderança em uma situação de pandemia tem inquietado a população. "Você vê líderes tomando decisões não apenas equivocadas, como perigosas, como a da prefeita de Guayaquil, Cinthya Viteri", diz.
Para impedir a chegada de um voo vindo da Espanha, na semana passada, Viteri mandou espalhar carros e vans na pista de pouso do aeroporto local, quase provocando um acidente terrível e um imbróglio diplomático.
"A decisão tresloucada da prefeita mostra como falta um diagnóstico claro do que está causando tantos casos de coronavírus no Equador", diz Pachano.
Um dos aspectos apontados por epidemiologistas é o trânsito da grande comunidade equatoriana que vive na Espanha -uma das maiores entre imigrantes latino-americanos no país europeu.
Em época de férias de fim de ano, muitos deles retornam ao Equador, o que pode ter ajudado a trazer o vírus. Embora não haja comprovação de que essa foi uma das razões para o tamanho da pandemia no país, o número de voos vindos da Espanha foi reduzido.
"Outro fator que não pode ser deixado de lado é o fato de que Guayaquil, onde está a maioria dos infectados, é uma cidade que não obedece regras de quarentena por suas particularidades culturais e históricas", explica Pachano.
Essas peculiaridades seriam, por exemplo, o clima. Se Quito é alta e fria, Guayaquil é costeira e muito quente.
"É difícil que a costa respeite um toque de recolher e a necessidade de ficar isolada em casa. As moradias dos mais pobres são pequenas e ali se acumulam famílias numerosas. Faz muito calor, as pessoas saem. Além disso, há o fator trabalho -as pessoas têm menos empregos formais do que em Quito, e por isso desobedecem a quarentena para trabalhar", diz Pallares.
No Equador, a fatia de informais corresponde a 46% do mercado de trabalho. "Moreno tem falhado nas medidas de proteção a esse setor da população. É preciso distribuir mais bônus e pensões e fazer mais campanhas de conscientização. O modelo de ajuda que a Argentina está implementando, por exemplo, aqui ainda não há", afirma Pachano.
Os números confirmam as disparidades entre as regiões. Enquanto em Quito há apenas 188 infectados, em Guayaquil há 1.200. O restante está na região amazônica, onde o maior problema, por sua vez, é o alcance e a qualidade do sistema de saúde.
"Tudo aponta para que, no dia seguinte a essa pandemia, tenhamos um país com muito mais problemas do que antes. Mais recessão, mais encolhimento do PIB, menos possibilidade de cumprir as metas com o FMI e um provável retorno da tensão social entre indígenas e governo", afirma Pallares.
"Ou seja, teremos uma economia muito complicada e um cenário eleitoral totalmente aberto."
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