Pela primeira vez na história, um presidente dos Estados Unidos enfrenta, a partir desta terça-feira (09), um segundo processo de impeachment relacionado ao seu mandato. Donald Trump, agora fora da Casa Branca, é acusado de incitar seus apoiadores a invadir o Capitólio, no dia 6 de janeiro, em um ataque que deixou cinco mortos e abalou o cenário político do país.
Tal como no primeiro julgamento, em fevereiro do ano passado, as chances de Trump ser condenado, algo inédito nos EUA, são pequenas: para ser considerado culpado, são necessários os votos de 67 senadores, ou seja, 17 republicanos teriam que votar contra o partido, e até agora apenas cinco se mostraram dispostos a tal.
Para mudar o cenário de uma derrota esperada, os democratas moldam sua estratégia para tornar o julgamento didático, mostrando como as palavras de Donald Trump questionando a lisura da eleição de novembro e incitando seus apoiadores a "irem para o Congresso", em comício no dia 6 de janeiro, foram os estopins para a invasão posterior.
Como revelou ao The New York Times, o deputado Jamie Raskin, principal acusador no caso, foram criados vídeos associando discursos e atos de Donald Trump a episódios de violência.
O material, que foi comparado a séries de ação, inclui episódios como a conversa entre o ex-presidente e o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, onde pede às autoridades locais que "achem votos" para reverter a vitória de Joe Biden no estado
Os acusadores reconhecem que o foco central será o comício que o então presidente fez no dia 6 de janeiro, atacando a confirmação da vitória de Biden que seria feita pelos congressistas horas depois. Para eles, ao apontar falsamente ilegalidades na votação e pedir que os senadores e deputados republicanos se recusassem a confirmar os votos na eleição presidencial, Trump deu seu apoio a um ataque sem precedentes na história recente dos EUA.
"Mesmo com esse julgamento, onde os próprios senadores são testemunhas, é muito importante contar toda a história", declarou ao The New York Times o deputado democrata Adam Schiff, que integra a acusação. "Isso não diz respeito apenas a um dia, diz respeito à conduta de um presidente que usou seu cargo para interferir com a transferência pacífica de poder."
Contudo, os acusadores ainda não fecharam questão sobre a participação de testemunhas. O próprio Trump foi chamado a depor, mas já recusou o convite, e o tema divide opiniões. Se por um lado a convocação de nomes como o de Brad Raffensperger poderia fortalecer a narrativa contra Trump no plenário e junto ao público em geral, trazer testemunhas esticaria o julgamento em alguns dias ou mesmo semanas, atrapalhando os planos da Casa Branca para pôr em votação o quanto antes propostas prioritárias do governo Biden.
"Se eles querem chamar testemunhas, isso vai prolongar, com certeza. Acho que você está falando em empurrar o julgamento para a próxima semana ou a outra semana, uma vez que os dois lados terão essa opção disponível", afirmou o vice-líder da minoria republicana no Senado, John Thune, ao site Politico.
Apesar de poderem chamar testemunhas, os advogados que defendem Trump não sinalizam essa linha de ação, preferindo questionar a legalidade do processo e rejeitar as acusações.
Em novo documento entregue ao Senado com as linhas principais da defesa, Bruce Castor e David Schoen acusam os democratas de usar o impeachment para criar um "teatro político" contra uma pessoa que não ocupa mais o cargo - Trump e aliados apontam uma ilegalidade no julgamento, afirmando que o Senado pode julgar pessoas que estejam em cargos federais, e não aqueles que já deixaram esses postos.
"Ao invés de curar a nação, ou ao menos processar os malfeitores que atacaram o Capitólio, a presidente da Câmara e seus aliados tentaram usar o caos daquele momento para ganho político próprio", diz o briefing entregue pelos advogados nesta segunda-feira.
Schoen e Castor reforçam ainda a ideia de que o uso da palavra "luta" em seu discurso no dia 6 de janeiro foi "metafórico", e que ele pedia que as pessoas usassem suas vozes para que fossem ouvidas. Eles declaram também que o ex-presidente estava protegido pela Primeira Emenda da Constituição, que dispõe sobre a liberdade de expressão, ao questionar a lisura da eleição presidencial do ano passado, e por isso não deveria ser processado.
"Caracterizar essas declarações como 'incitação à insurreição' é ignorar, de forma ampla, o resto do discurso de Trump naquele dia, incluindo seu pedido para que os apoiadores ‘pacificamente fizessem suas vozes serem ouvidas’", diz o documento.
Embora seja improvável que Donald Trump seja considerado culpado de encorajar um motim, os problemas jurídicos do ex-presidente americano não irão desaparecer após seu julgamento no Senado: ele poderá em breve ser indiciado na justiça criminal e também enfrenta vários processos civis.
O ex-magnata do mercado imobiliário de Nova York, instalado em sua luxuosa residência na Flórida, há muito é alvo de inúmeros processos civis e tem um exército de advogados prontos para defendê-lo ou atacar seus adversários.
Como um simples cidadão, ele corre o risco de pelo menos uma acusação criminal, liderada pelo promotor democrata de Manhattan, Cyrus Vance, que luta há meses para obter seus extratos fiscais e bancários.
A investigação, que inicialmente se concentrou em pagamentos feitos a duas supostas amantes de Trump antes da eleição presidencial de 2016, agora está examinando possíveis fraudes fiscais, bancárias e de seguros.
A Suprema Corte ordenou em julho que Trump entregasse os documentos exigidos ao promotor, mas seus advogados questionaram a amplitude do pedido na mais alta corte. O Supremo Tribunal ainda não se pronunciou sobre isso.
Trump chamou a investigação de "a pior caça às bruxas da história americana".
O dossiê, conduzido a portas fechadas perante um grande júri, parece avançar apesar de tudo.
De acordo com a imprensa americana, os investigadores de Vance questionaram recentemente funcionários de sua seguradora, Aon, e do Deutsche Bank, financiador de Trump e sua holding, a Trump Organization.
Eles também interrogaram novamente o ex-advogado de Trump, Michael Cohen, na prisão depois dele ter admitido que comprou o silêncio de duas supostas amantes do ex-presidente.
Cohen disse em uma audiência no Congresso que Trump e sua empresa inflaram ou reduziram artificialmente o valor de seus ativos para obter empréstimos bancários ou reduzir seus impostos
A procuradora-geral do Estado de Nova York, a democrata Letitia James, também está investigando essas alegações. Ela já confrontou com sucesso os advogados da Organização Trump para poder interrogar um filho de Trump, Eric, e obter documentos sobre algumas propriedades da família.
Sua investigação é civil, mas "se descobrirmos fatos criminais, isso mudará sua natureza", disse James recentemente.
Se as alegações forem confirmadas, o ex-presidente pode enfrentar uma pena de prisão. E ao contrário dos crimes federais, as violações das leis estaduais não podem ser perdoadas pelo presidente americano, mesmo que Joe Biden quisesse fazê-lo em nome da reconciliação.
Alguns críticos de Trump comemoram com antecedência, como os militantes do Rise and Resist (Levante-se e Resista), que se manifestaram no início de janeiro em Nova York para exigir sua prisão.
"Ninguém tem pressa", disse Daniel Richman, ex-promotor e professor de direito na Universidade de Columbia. "A última coisa que queremos é que o processo (judicial) seja utilizado, ou percebido como sendo utilizado, como um instrumento político", frisou.
"Existem duas escolas", disse Roberta Kaplan, uma advogada encarregada de três processos civis contra o ex-presidente. "Eu sou da escola que pensa que não devemos proibir que se faça justiça por medo de jogar óleo no fogo: se não agirmos para dizer claramente que os pilares sobre os quais o país se assenta valem para todos, presidentes ou não, acho que corremos perigos muito maiores. "
Palco a la Al Capone'
Para Gloria Browne-Marshall, professora de direito da City University of New York (CUNY), Trump no banco dos réus seria "um resultado lógico", "um cenário à la Al Capone", o lendário gangster dos anos 1920 finalmente condenado em 1931 por evasão fiscal.
Embora ache que a acusação provavelmente ocorrerá antes do final do atual mandato do promotor Cyrus Vance em novembro, Browne-Marshall não aposta que haverá um julgamento ou uma condenação.
Com milhões de apoiadores potencialmente dispostos a financiar sua defesa, Trump poderia revidar com seus próprios processos e fazer os dossiês se arrastarem "por anos", disse.
Isso forçaria os promotores - autoridades eleitas que dependem do dinheiro do contribuinte - a mobilizar recursos consideráveis para a batalha, acrescentou.
Bennett Gershman, ex-promotor e professor da Pace University, aposta que Vance indiciará Trump.
"Se ele estivesse diante de um júri novamente, seria um verdadeiro circo, seria incrível", disse ele. "Nunca vimos tal coisa."
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