Pela segunda vez em apenas cinco anos, o presidente do Brasil abrirá a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, nos Estados Unidos, enquanto o país literalmente pega fogo.
Mas Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ao contrário do que fez seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL), em 2019, não deverá minimizar o problema.
Diante de uma ONU dividida pelo momento delicado na geopolítica global, na manhã de terça-feira (24), Lula deverá usar o catastrófico cenário de incêndios — considerados os piores nos últimos 20 anos tanto na Amazônia quanto no Pantanal, segundo o Serviço de Monitoramento da Atmosfera Copernicus, da União Europeia — como exemplo do que o mundo todo deve enfrentar em breve e prova da urgência em implementar uma agenda de combate a mudanças climáticas globalmente.
Em que pese a responsabilidade do governo, que, como admitiu o próprio Lula, não estava “100% preparado” para lidar com a situação, o presidente brasileiro deve responsabilizar a associação de fenômenos como El Niño e comportamentos humanos criminosos e predatórios em relação ao meio ambiente pelas cenas de destruição.
Integrantes do governo têm usado o termo “terrorismo” para se referir aos possíveis atos criminosos que detonaram as queimadas, embora ressaltem que o governo Lula não pretende se vitimizar no palco internacional.
O presidente deverá ainda citar outros eventos climáticos extremos ao redor do mundo.
Tudo isso para argumentar que o tempo de ação para os líderes globais está se esgotando e que o mundo pode em breve atingir um ponto de não retorno que comprometeria a própria sobrevivência humana.
A urgência que o presidente deverá imprimir ao tema em seu discurso ainda não é uma unanimidade em seu próprio gabinete ministerial.
Enquanto o Brasil organiza a COP30, a ser realizada em novembro de 2025 em Belém, parte do governo defende, por exemplo, a exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas, algo a que a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede), se opõe.
Além disso, o plano da Petrobras, de quem o governo é acionista majoritário, é seguir ampliando a produção diária de barris de petróleo até chegar a 5,3 milhões de barris por dia em 2030.
No domingo (22), Lula fez um discurso na Cúpula do Futuro, um evento da ONU. Ele criticou a falta de ação internacional para cumprir as metas de desenvolvimento sustentável — que segundo Lula "foram o maior empreendimento diplomático dos últimos anos, e caminham para se tornar o nosso maior fracasso coletivo".
A atmosfera para a Assembleia Geral da ONU agora é significativamente distinta da vista no ano passado — tanto na forma como no conteúdo.
Se em 2023 Lula chegou a Nova York com uma grande delegação e “certa pompa e efeito surpresa”, como definiu um embaixador brasileiro que acompanha a agenda, “agora, já não há mais que se falar que ‘o Brasil voltou’, a posição internacional já está restabelecida”.
A delegação foi reduzida, e há “uma bem-vinda austeridade”, adicionou o mesmo diplomata, em conversa reservada com a BBC News Brasil.
Acusado pela oposição de gastos excessivos com hotel e viagens em 2023 — o que, na visão do Planalto, teria afetado a popularidade do governo —, Lula optou desta vez por se hospedar na residência do representante do Brasil na ONU.
Ministros com agendas paralelas à do presidente, como Fernando Haddad (PT), da Fazenda, viajaram em voo de carreira.
“Será algo menos grandioso e ambicioso agora, até porque o discurso é confrontado com a realidade”, afirma Guilherme Casarões, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
"Lula deve se concentrar em três aspectos nos quais o Brasil realmente tem a contribuir. Além das mudanças climáticas, o combate global à fome e à pobreza e a reforma de mecanismos multilaterais."
No combate à fome, o Brasil tem tentado exportar experiências domésticas bem-sucedidas, como o programa Bolsa Família, ao mesmo tempo em que se esforça para construir uma rede internacional para criação e adoção de novas políticas públicas no tema: a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza Extrema, lançada no âmbito do G-20.
Em Nova York, Lula deverá receber das mãos do fundador da Microsoft e filantropo Bill Gates um prêmio por sua trajetória no combate à fome — ele quer atrair recursos do bilionário para a causa.
Já na proposta de reforma da governança global, o governo do petista repisa uma pauta tradicional da diplomacia brasileira.
Desta vez, diplomatas brasileiros chegaram a cogitar a evocação do artigo 109 da Carta das Nações Unidas para, com maioria qualificada na Assembleia Geral, forçar uma reconfiguração de órgãos como o Conselho de Segurança, cada vez mais travado por três dos cinco membros permanentes e com poder de veto: Estados Unidos, China e Rússia.
Na representação brasileira em Nova York, houve até quem se pusesse a pensar em como chegar a uma espécie de “Constituinte” para a ONU.
Mas cinco diplomatas brasileiros com expertise no assunto com quem a BBC News Brasil conversou demonstraram dúvida sobre a viabilidade ou a conveniência de lançar algo nesta linha no discurso do presidente e anteviam que a questão deveria ficar em aberto até instantes antes de Lula subir ao púlpito da Assembleia Geral.
Eles argumentam que, hoje, as negociações multilaterais “são muito mais difíceis” e “travadas” do que nos dois primeiros mandatos do petista e que qualquer ideia é lançada em um “terreno polarizado e desfavorável”.
Propostas de reforma mal colocadas poderiam gerar o indesejável resultado de uma piora nas condições de negociação multilaterais.
Prova da dificuldade foi dada no último domingo (22), quando a Rússia tentou derrubar um compromisso proposto pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, batizado de Pacto do Futuro, que tentava atualizar certas regras da relação multilateral.
Entre outros pontos, o pacto propõe reformar o Conselho de Segurança até 2030, aliviar a dívida internacional para os países mais pobres e reformar os organismos financeiros como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial nos próximos seis anos.
O texto acabou aprovado por 143 votos, mas não por consenso como boa parte da plenária desejava.
Em breve manifestação na ONU, Lula comemorou os avanços trazidos pelo pacto, mas afirmou que “nos faltam ambição e ousadia” para melhorar a representatividade das Nações Unidas, onde o Sul Global estaria sub representado.
Ele voltará à carga em seu discurso na Assembleia Geral, e Lula deverá usar o atual conflito em Gaza como exemplo da disfuncionalidade da ONU, da incapacidade dos líderes de buscarem e implementarem soluções pela paz e impedirem tragédias humanitárias.
Depois de ter comparado a situação dos palestinos com o Holocausto — o que gerou uma resposta dura de Israel e uma crise diplomática entre os dois países —, Lula não repetirá a dose, mas, segundo um de seus auxiliares, frisará a desproporcionalidade do uso da força por Israel.
Não por acaso, fome, clima e reforma de mecanismos multilaterais são os mesmos temas que o Brasil tem pautado no G20, grupo das 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia e a União Africana, do qual o país é o atual presidente.
Segundo um embaixador brasileiro, Lula tenta “promover a confluência entre a Assembleia Geral e o G20”.
Em Nova York, ele patrocinará a primeira reunião do bloco das 20 maiores economias do mundo estendida à audiência da Assembleia Geral.
Cerca de 90 países confirmaram presença no evento, de acordo com a assessoria do Planalto.
Diante de uma série de derrotas recentes para sua liderança regional, a agenda G20 tem se mostrado prioritária para o Brasil.
Na América Latina, que Lula pretendia liderar, o argentino Javier Milei se recusa a participar de reuniões do bloco do Mercosul, e o venezuelano Nicolás Maduro descumpriu os termos do acordo de Barbados para garantir a lisura das eleições presidenciais, aprofundando a crise no país — e tem fustigado o Brasil em suas tentativas de mediação.
O México deixou as conversas tripartites que os brasileiros promoviam com a Colômbia para buscar saídas para a situação venezuelana.
De outro lado, Lula foi criticado por Gabriel Boric por, segundo o líder chileno, deixar de condenar em termos mais fortes o que ele vê como um recrudescimento autoritário na Venezuela.
Até mesmo a Nicarágua, de Daniel Ortega, historicamente um aliado do petista, tem imposto constrangimentos diplomáticos ao Brasil, por não endossar medidas tidas por Brasília como autoritárias.
Para um embaixador brasileiro que atua na região e falou reservadamente à BBC News Brasil, “é impossível hoje liderar o Sul Global", porque "não parece existir uma agenda mínima com que esses países pareçam concordar”.
“Os problemas estão aí e não se pode negá-los, mas diante disso, qual seria a alternativa? Se retirar?”, questiona Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
"Para o Brasil, interessa o multilateralismo para aumentar seu peso e condição de negociação no mundo. E, se não Lula, quem poderia ser este líder? Talvez (o primeiro-ministro indiano Narendra) Modi, mas não há muitas opções."
Para Lopes, o que o governo Lula tem tentado e seguirá tentando é “se credenciar como um interlocutor confiável tanto do Sul como do Norte, ser um promotor e um fiador de diálogos”.
É nesta posição que o Brasil copatrocinará, junto com a Espanha, o evento Em defesa das democracias, combatendo extremismos.
Quando foi pensado por Lula e o presidente do governo espanhol, Pedro Sánchez, o foco do evento era a atuação da direita radical com milícias digitais, algo que preocupa as duas administrações.
De acordo com um auxiliar de Lula, o plano é que cada país apresente uma espécie de “cardápio de soluções para lidar com a extrema direita e discursos de ódio”.
“Se a extrema direita está todo o tempo se articulando internacionalmente, por que os democratas também não deveriam fazê-lo?”, explica esse mesmo auxiliar.
Devem participar da conversa os líderes de Chile, Boric, do Canadá, Justin Trudeau e da França, Emmanuel Macron.
Em maior ou menor grau, os três têm tido sua liderança doméstica colocada em xeque por movimentos de direita em cada um desses países.
No caso do Brasil, Lula deve salientar a recente contenda entre o bilionário dono da plataforma X, Elon Musk, e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a derrubada de perfis que espalhariam falsas notícias e a necessidade de representação legal da rede no Brasil.
A escalada da disputa judicial culminou na decisão de Moraes de suspender o acesso ao X em todo o país.
O governo Lula defende que este é um exemplo exitoso de preservação da soberania nacional frente a ataques extremistas externos, a despeito de críticas indiretas de países como os Estados Unidos, que, por meio de sua embaixada em Brasília, salientaram a importância da garantia à “liberdade de expressão” ao comentar o caso.
O assunto também deve entrar no discurso de Lula, que, sem citar Musk, deixará claro que fala sobre o bilionário.
“Seremos sempre intolerantes com qualquer pessoa, tenha a fortuna que tiver, que desafie a legislação brasileira”, disse Lula em pronunciamento oficial de rádio e TV por ocasião do 7 de setembro.
O recente aprofundamento da crise venezuelana, no entanto, que levou o candidato à Presidência pela oposição, Edmundo Gonzalez, a pedir asilo na Espanha deve forçar o tema na mesa do encontro, o que pode causar constrangimentos ao Brasil.
“Se virar algo sobre a Venezuela, acabou o evento”, afirmou à BBC News Brasil um embaixador brasileiro com conhecimento do assunto.
Os diplomatas do Brasil defendem que este não é o foro ideal para o assunto, mas admitem que é possível que Sánchez tenha interesse de discutir possíveis ideias para a questão da Venezuela, a serem tentadas ainda antes da posse de Maduro, marcada para janeiro.
Auxiliares do presidente defendem que Lula cite a situação da Venezuela em seu discurso no plenário da Assembleia Geral da ONU, mas a intenção é que o modo como essa menção acontecerá permita que o Brasil siga sustentando conversas tanto com Maduro quanto com a oposição.
Ainda às margens da ONU, o Brasil fará com a China uma reunião com cerca de 20 países do Sul Global, entre os quais estariam Índia, África do Sul e Indonésia, para debater opções para o fim da guerra entre Rússia e Ucrânia.
Nenhum dos dois países envolvidos diretamente no conflito, no entanto, participará do evento, que tampouco contará com a presença do próprio Lula.
Embora o presidente tenha tentado exercer papel direto na mediação do conflito no ano passado, com declarações que foram alvo de críticas no Brasil e no exterior, não houve qualquer tipo de avanço prático promovido pelo brasileiro no cenário.
Além dos eventos multilaterais nas Nações Unidas e às suas margens e de reuniões bilaterais com Macron, Sánchez, o primeiro-ministro alemão Olaf Scholz, o primeiro ministro haitiano, Garry Conille e a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, este ano Lula optou por comparecer em dois eventos laterais, que lhe conferem prestígio pessoal.
Ele discursará na iniciativa Global Clinton, após convite feito por telefone, em agosto, pelo ex-presidente americano Bill Clinton, que patrocina o evento.
E participará de um talk-show com Bill Gates na premiação anual Goalkeepers, da Fundação Bill e Melinda Gates, em que será laureado por seu trabalho em combater a fome.
Nos dois casos, ele espera levantar doações para suas agendas ambiental e de combate à fome junto aos bilionários americanos que circulam nesse tipo de evento.
E também enriquecer seu portfólio como personalidade e líder global de expressão mundial.
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