“Lembro da sensação de quando eu saí do salão, que olhei no espelho. Eu me via nas portas de vidro, me senti tão linda! Sério. Parece que eu retornei de algum lugar, não sei explicar. E eu não conhecia o meu cabelo. Aí eu aprendi a pentear o meu cabelo na textura como ele é. Fui fazendo cortes, ajustando, fazendo hidratação, colocando trança.”
A analista de projetos Paloma Macedo, 29 anos, é uma entre muitas jovens negras que, em anos recentes no Brasil, vêm abandonando tratamentos químicos pesados para alisar o cabelo para fazer a chamada “transição capilar” — ou seja, estão optando por ter cabelos naturalmente crespos.
No caso de Paloma, a transição trouxe também o que ela chama de “letramento racial”, ou seja, uma maior consciência de sua raça e do racismo na sociedade brasileira.
Em depoimento à BBC News Brasil, Paloma divide como foi sua transição e fala sobre conceitos como letramento racial, “afrosurto” e “big chop”.
"Na minha infância, eu odiava meu cabelo. Primeiro porque sou a irmã mais nova e meu cabelo é crespo, já sai cacheado da raiz. E a minha irmã, que é mais velha, tem o cabelo cacheado. Ele tem a raiz mais lisa e os cachos bem largos. O cabelo dela sempre foi o mais bonito da minha família porque o restante da minha família é inteiro crespo. Então era um cabelo muito cobiçado. E as pessoas que não tinham muita noção falavam, ‘nossa, por que seu cabelo não é igual ao da sua irmã?’"
Paloma conta que, infeliz com seu cabelo, começou a pedir que a mãe tingisse os fios de loiro (ela explica que era fã de Carla Perez) ou pedia um cabelo igual ao da irmã. A mãe tentava agradar a filha.
“Então, comecei a usar química com quatro anos de idade porque eu detestava o meu cabelo.“
Aos 15 anos, Paloma começou a fazer a chamada escova progressiva, tratamento químico que deixa o cabelo liso. A única coisa com que ela tinha de se preocupar, conta, era a raiz, que precisava ser retocada a cada dois ou três meses.
Ela diz que, naquela época, não tinha letramento racial. “Eu não tinha ideia sobre racismo. Sabia que existia preconceito, mas isso nunca foi uma pauta dentro da minha casa. ‘Ah, você odeia seu cabelo por causa do racismo’".
“Meu conceito de beleza era totalmente branco. Vou te mostrar umas fotos de quando eu tinha o cabelo liso e dá para você perceber que estou mais embranquecida”, ela conta. “Isso era inconsciente.”
Com 21 anos, saindo da faculdade ainda sem emprego e constrangida pelo alto custo dos tratamentos e cremes de cabelo que a mãe pagava para ela, Paloma diz que decidiu iniciar sua transição.
Uma decisão que, ela sabia, iria transformar sua vida.
“Comecei a procurar vídeos no YouTube para texturizar meu cabelo. Por meio desses vídeos, fui aprendendo que estava em transição capilar, fui vendo várias meninas falarem sobre o big chop (em tradução do inglês, o grande corte) que é quando você corta o cabelo bem curtinho.”
Ela prossegue: “E fui vendo vídeos em que as pessoas começavam a falar sobre racismo, preconceito racial e a relação com o nosso cabelo.”
Sem o alisamento, conta Paloma, seu cabelo começou a crescer naturalmente crespo. As pontas continuavam lisas. Depois de uns seis meses deixando ele crescer, não tinha mais como pentear. Estava horrível. Falei, vou ao salão. Vou fazer esse tal de ‘big chop’".
Paloma explica que a essa altura, por volta de 2015, já havia vários salões especializados em cabelo afro — algo que, anos antes, era difícil de encontrar.
“Eu estava morrendo de medo, não sabia o que esperar. Já fui sozinha porque eu não ia sustentar uma outra pessoa rindo de mim. Fui sozinha por ter medo do resultado.”
“Fui. Cortei bem curtinho. Eu saí me sentindo linda. Linda!”
Paloma lembra que nessa época trabalhava em uma empresa de telemarketing — nas palavras dela, um ambiente muito diverso.
“É um ambiente que vai acolher o gay, a trans, o negro, o branco, o dourado”, explica.
Foi então que ela decidiu se candidatar a um outro emprego. Seria a primeira vez que atenderia uma entrevista com o cabelo crespo. “E eu lembro que falei, ‘mãe, e se eu não passar por causa do meu cabelo?’”
Nesse momento, entendi que estava falando sobre racismo, comenta. “Será que vão aceitar o meu cabelo desse jeito? E isso, quando eu tinha cabelo alisado, nunca tinha passado pela minha cabeça.”
Paloma conta que fez a entrevista, conseguiu o emprego e nunca teve problemas. Muito pelo contrário.
“A empresa abriu um núcleo que falava sobre diversidade e racismo corporativo. Foi um lugar onde aprendi muito.”
No mesmo período, conta, foi fazer faculdade de Geografia.
“Fui aprendendo o que era racismo, o que era o sistema, o que era cultura de massa. Fui entendendo o processo histórico do Brasil, fui ao fundo do letramento racial. Fui entendendo minhas dores e as partes onde o meu cabelo e a minha autoestima entravam.”
Enquanto isso, seu cabelo crescia.
“Ficou gigante”, lembra. “Comecei a raspar, raspei tudo. Tudo o que eu podia fazer com o meu cabelo, eu fiz. Me desvinculei daquela ideia 'ah, se eu fizer assim, fico feia'. Minha beleza, enquanto mulher, não era só o meu cabelo.”
Em 2022, ela conta, engravidou e teve sua filha. “Ela foi crescendo e o cabelo dela já está mais crespinho”, conta. “Mas eu já sei pentear porque o meu cabelo é parecido”, explica.
“E hoje a gente tem recurso para pentear esse tipo de cabelo, tem creme para bebê, tem salão específico. Então sei que a minha filha vai ter uma outra relação com o cabelo dela.”
“Eu busco mais referências pretas para ela. Ela tem um monte de bonequinha preta, ela tem boneca branca. Quero que ela entenda que ter cabelo crespo é tão bonito quanto ter cabelo liso. E que se ela um dia quiser alisar, alise sabendo que é linda de cabelo crespo também.”
Para Paloma, alisar o cabelo não é o problema.
“O problema é alisar o cabelo porque você odeia o seu cabelo, porque você odeia se olhar no espelho. Esse é o problema. É um ódio que a gente vai criando contra a gente mesma.”
Paloma diz que, para ela, a transição capilar trouxe um empoderamento. Ela própria finaliza seu cabelo e, quando vai a casamentos, por exemplo, não precisa ir ao cabeleireiro.
“Tem isso, de você se sentir autossuficiente. A única coisa que eu terceirizo ainda é trançar e cortar o meu cabelo.”
Hoje, ela diz, escolhe o penteado de acordo com a mensagem que quer passar. “Se não quero causar impacto, amarro o cabelo para cima.”
“Quando quero causar impacto, vou com o cabelo black, lá em cima.”
A transição capilar e o letramento racial que veio junto, no entanto, também tiveram um custo emocional para Paloma.
A raiva que ela sentia agora se volta para fora.
Aqui, ela introduz um conceito cunhado pela escritora e professora de literatura africana na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro Aza Njeri: afrosurto.
Nas palavras da acadêmica, afrosurto é um “mal psíquico consequente da lucidez adquirido pelo negro no processo de tomada de consciência racial”.
Paloma diz: “Você vai se informando e entendendo. E acho que por um momento eu passei por um processo de angústia. Cai uma ficha na sua cabeça. Você vai tendo flashes de cenas e pensa: poxa, isso era racismo”.
“Dá aquela ira, mesmo. E você vai militar, vai dizer, ‘isso é racismo’. Fui entender esse termo bem depois de passar por isso. É um pico que você tem.”
Para a filha, Paloma antevê uma experiência mais leve. “Porque ela já vai crescer sabendo que é negra, com referências negras. Hoje em dia a gente tem desenho que tem criança negra com cabelo crespo”, diz.
Paloma não acha que vai conseguir blindar a filha contra o racismo, “mas ela vai crescer com autoestima, vai crescer com informação, sabendo qual foi o processo do Brasil e por que as pessoas são racistas.”
“Sinto que para ela vai ser completamente diferente do que foi comigo. A gente tem criado um caminho longe da dor.”
E Paloma considera que o caminho dela foi um caminho de dor?
“Eu sinto”, ela responde. E confia à BBC News Brasil um episódio gravado em sua memória que talvez nos dê uma pequena medida do tamanho dessa dor.
“O mais escancarado foi um dia em que eu estava indo para um show com umas amigas”, lembra. “Era tarde da noite, nós três negras. Passou um carro cheio de playboys e alguém gritou, ‘macacas!’ Acho que foi o menos velado. Porque é isso, a gente vive várias situações veladas.”
Paloma diz que se isso acontecer com a filha, não quer que ela sinta vergonha de ser negra.
“Eu quero que ela entenda que quem tem de ter vergonha é quem está sendo racista”, diz.
“Na minha cabeça, e eu espero que dê certo, vai ser com menos dor.”
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