O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), prometeu diminuir o limite de velocidade para os carros em avenidas na orla das praias da cidade — 70 km/hora é o máximo permitido hoje.
O anúncio de Paes ocorreu após o atropelamento do ator Kayky Brito, na madrugada do último sábado (2/9), na avenida Lúcia Costa, na Barra da Tijuca.
Brito teve politraumatismo e traumatismo craniano. O artista segue internado em estado grave na UTI do Hospital Copa D’Or.
Imagens de vigilância divulgadas neste domingo (3/9) mostram que o motorista do veículo tentou frear e desviar do ator, mas acabou o atingindo de frente. A polícia constatou que o condutor não havia ingerido bebidas alcoólicas.
As investigações ainda devem apontar se o motorista, que trabalha com aplicativos de transportes, estava dirigindo acima da velocidade permitida na avenida, justamente 70 km/hora.
Em publicação nas redes sociais, Eduardo Paes, que está no penúltimo ano de seu terceiro mandato como prefeito do Rio, classificou como um “absurdo” o limite máximo de 70 km/hora em avenidas da orla da cidade.
“O atropelamento do ator Kayky Brito mostra bem que a velocidade permitida em muitas vias da cidade é excessiva. Imaginar que nossa Orla — um lugar de contemplação, lazer e paz — tem velocidade máxima de 70 km é um absurdo”, escreveu Paes.
O prefeito completou a publicação afirmando que vai pedir um estudo sobre o assunto:
“Independentemente de responsabilidades no caso em questão, não é admissível manter isso. Já determinei que a CET-Rio (Companhia de Engenharia de Tráfego) me apresente ainda essa semana uma mudança no limite da Orla do Rio. E vamos avançar com essas mudanças em outras vias da cidade!”
No X, antigo Twitter, alguns cariocas criticaram a medida, afirmando principalmente que a diminuição pode piorar os congestionamentos na cidade.
“O trânsito no RJ tem milhares de outros problemas que poderiam ser resolvidos, mas tu quer mexer onde funciona”, escreveu um seguidor.
“Se o trânsito da orla já é péssimo a 70, imagina se essa velocidade cair com radares, etc”, escreveu outro.
Na verdade, a readequação dos limites de velocidade é uma demanda antiga de especialistas em mobilidade, cicloativistas e médicos que atuam com vítimas da violência do trânsito no Brasil.
A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que a velocidade máxima permitida deve ser igual ou inferior a 50 km/h em vias urbanas.
Segundo o DataSus, que compila dados do Sistema Único de Saúde, em 2021 morreram 33.813 mil pessoas em acidentes de trânsito, um crescimento de 3,5% em relação ao ano anterior.
Segundo relatório da OMS, existem dois tipos de velocidade no trânsito: a excessiva e a inadequada.
A velocidade excessiva ocorre quando o motorista está acima do limite permitido para a via. E infringir esse limite é considerado um “mau comportamento” no trânsito, passível de multa e penalidades mais severas, como perda da Carteira Nacional de Habilitação (CNH).
“A inadequada é quando o motorista obedece a velocidade, mas o próprio limite estipulado não é adequado para o contexto daquela via”, explica Dante Rosado, coordenador do programa de segurança viária da Vital Strategies (ONG internacional que promove a saúde pública).
Para Rosado, 70 km/h na orla do Rio de Janeiro é um limite “que coloca em risco motoristas, pedestres e ciclistas que trafegam por essas movimentadas artérias da cidade.”
“A orla do Rio de Janeiro não é um exemplo de boa prática. É um absurdo que vias com grande interação tenham um limite de 70 km. A velocidade é o maior fator de risco. Ou seja, quanto maior a velocidade, maior a chance de se envolver em um sinistro. E também maior a chance de danos e lesões graves”, diz.
Nos últimos anos, especialistas em tráfego passaram a utilizar com mais frequência o termo “sinistro” para se referir a acidentes envolvendo veículos.
“A palavra acidente dá a entender que é algo que não poderia ter sido evitado, que tinha de acontecer. Na verdade, a grande maioria poderia ser evitada, porque sempre envolve o erro humano: velocidade excessiva, abuso do álcool, atravessar fora da faixa de pedestre, etc”, explica o médico Antonio Meira, presidente da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet).
Tanto Meira como Dante Rosado citam uma escala de velocidade, produzida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e utilizada internacionalmente, que é determinante em casos de atropelamento.
Em um atropelamento a 60 km/h, a chance de sobrevivência da vítima é de apenas 2%, aponta o estudo.
“Acima disso, é praticamente um milagre a pessoa sobreviver”, diz Meira.
Se o carro estiver a 50 km/h, a chance de sobrevivência aumenta para 15%. A 30 km/h, a vítima tem 90% de chance de sobreviver, segundo a publicação.
Dante Rosado explica outro fator: quando o motorista está a 70 km/h, o mesmo limite da via onde Kayky Brito foi atropelado, sua percepção da pista e tempo de reação é muito menor do que se estivesse em uma velocidade mais baixa.
“Quanto maior a velocidade, menor a visão periférica do motorista sobre o que está acontecendo na via. E, mesmo que ele perceba, o tempo que ele tem para frear é muito menor. Quando se está a 50 km, é possível reduzir para 30 km rapidamente. Mas quando se está a 70 km;h, há pouco tempo para frear e chegar a 50 km;h, por exemplo, o que aumenta a chance de morte da vítima”, explica Rosado.
“É uma questão óbvia: quanto maior a velocidade, maiores serão o impacto, o dano e as lesões”, diz.
Diminuir os limites de velocidade é uma medida recomendada pela OMS e é considerada uma tendência mundial.
No Brasil, há uma série de exemplos de cidades que conseguiram reduzir o número de mortes no trânsito com a diminuição da velocidade máxima permitida, embora o país como um todo ainda esteja em um patamar muito alto de acidentes com vítimas.
A partir de 2010, a cidade de São Paulo passou a gradativamente diminuir a velocidade em muitas vias do município. Em casos de ruas com muito movimento de pedestres, o limite caiu para 30 km/h. Em vias arteriais, como a avenida Radial Leste, o limite caiu para 50 km/h.
Segundo dados da prefeitura, 1.357 pessoas morreram no trânsito da cidade em 2010. Onze anos depois, em 2021, esse número diminuiu para 720, uma queda de 46%.
Porém, há alguns anos, a redução da velocidade virou uma grande polêmica em São Paulo e influenciou uma eleição para prefeito.
Em 2015, a gestão do então prefeito Fernando Haddad (PT) reduziu os limites do principal corredor expresso da metrópole, formado pelas marginais Pinheiros e Tietê. A velocidade passou de 90 km/h para 70 km/h nas pistas expressas, de 70 km/h para 60 km/h nas centrais; e de 60 km/h para 50 km/h nas pistas locais.
A medida, que chegou a zerar mortes no trânsito nas marginais, foi duramente criticada por parte da população e setores da imprensa, que argumentaram que os congestionamentos iriam piorar, algo que nunca ficou provado.
No ano seguinte, o principal adversário de Haddad na eleição para prefeito, o tucano João Doria, utilizou a redução para fazer campanha contra a gestão petista.
Doria usou o slogan “Acelera São Paulo” em referência à diminuição, e prometeu reverter a medida se ganhasse a eleição. O tucano venceu no primeiro turno e cumpriu a promessa nos primeiros dias de mandato. Depois da velocidade voltar ao que era antes, o número de mortes nas vias também voltou a crescer.
Já Fortaleza também é apontada como exemplo positivo da redução da velocidade, processo que vem acontecendo gradativamente nos últimos anos. Segundo a prefeitura, a quantidade de acidente com mortes diminuiu 70% nas vias onde o limite foi alterado.
Um estudo da Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania (AMC) de Fortaleza, divulgado pelo jornal O Povo, apontou que a diminuição da velocidade máxima alterou em apenas 6 segundos o tempo médio de deslocamento dos veículos da cidade.
Porém, um dos problemas apontados por especialistas e ativistas é que o próprio Código Brasileiro de Trânsito prevê que, para algumas vias e avenidas dentro de cidades, o limite pode ser superior a 60 km/h.
Há alguns projetos de lei no Congresso para mudar essa regra, mas eles ainda tramitam sem previsão de votação.
“O código fala que o poder público tem autonomia para determinar os limites. Então, muitos prefeitos preferem não mexer nisso. Há uma cultura da velocidade no Brasil, que é promovida pela indústria automotiva. Perceba como nos comerciais de carro, os veículos sempre aparecem em alta velocidade trafegando por vias urbanas ou estradas totalmente livres”, diz Rosado.
Para Ana Carboni, da União de Ciclistas do Brasil (UCB), a mudança citada por Eduardo Paes deve ser comemorada.
“É impressionante o número de pessoas que transitam pelas avenidas da orla. Essa mudança é urgente. A velocidade dos carros em uma cidade precisa ser compatível com a vida”, diz Carboni, que é de Niterói, mas por anos trabalhou e frequentou a orla do Rio de Janeiro.
Segundo ela, não basta apenas mudar a velocidade, mas também “conscientizar as pessoas de que 33 mil mortes no trânsito todos os anos é algo inaceitável, e que diminuindo a velocidade elas não estão perdendo fluidez, e sim ganhando mais segurança para todos”.
Para o médico Antonio Meira, da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), campanhas educativas, fiscalização e intervenções nas vias, como sinalização e iluminação, também são importantes.
“Não é só diminuir a velocidade, e sim fazer a gestão da velocidade. Entender que ciclistas e pedestres são os mais vulneráveis no trânsito, mas que a segurança também é para os motoristas”, explica.
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