Às vésperas da 16ª Cúpula dos líderes do Brics, marcada para começar neste terça-feira (22/10) em Kazan, na Rússia, um dos principais canais de televisão estatais do país mudou sua programação para exibir uma série especial sobre os membros originais do bloco e a reunião.
Durante os episódios, Brasil, Índia, China e África do Sul são apresentados como parte de um grupo que gravita no entorno da Rússia e é formado por atores mais influentes do que aqueles alinhados com chamadas as "potências ocidentais".
Um dos capítulos da série exibida no Piervy Kanal (Canal Um) é dedicado exclusivamente ao Brasil e dá a entender que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se solidariza com Moscou diante do conflito na Ucrânia e considera os Estados Unidos e seus aliados os verdadeiros culpados pela continuidade da guerra.
Vladimir Putin e seu governo chamam de "operação militar especial" na Ucrânia o conflito iniciado oficialmente em 24 de fevereiro de 2022. Já o governo de Volodymyr Zelensky e seus aliados ocidentais veem uma violação do território e da soberania ucranianas, em um desrespeito ao direito internacional.
Lula condenou a invasão ao território ucraniano e tem defendido que os líderes encontrem uma solução negociada para a paz.
Ao mesmo tempo, deu declarações controversas que suscitaram acusações de apoio ao governo de Vladimir Putin, dizendo, por exemplo, que os dois lados estão "gostando da guerra", e se recusou a assinar uma declaração de paz durante uma cúpula para a paz que não contou com a presença de representantes russos.
Mas segundo o Itamaraty, o Brasil tem reiterado, nas Nações Unidas em outros foros multilaterais, sua condenação à invasão russa do território ucraniano.
"Desde sua posse, em janeiro de 2023, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem enfatizado a necessidade de se buscar a paz entre russos e ucranianos por intermédio do diálogo e da negociação entre as partes, levando em conta a integridade territorial da Ucrânia, os legítimos interesses de segurança da Rússia e a proteção da população civil de ambos os países", disse o governo brasileiro em nota enviada à BBC News Brasil.
O presidente Lula iria à reunião, mas cancelou a viagem após um acidente doméstico durante o final de semana. Ele participará da cúpula por videoconferência, segundo o Palácio do Planalto.
Fato é que, na Rússia, as escolhas que ditam o que entra e o que sai da programação dos grandes meios de comunicação oficiais fornecem um sinal claro do que o Kremlin considera realmente importante.
E o esforço para retratar a cúpula de líderes do Brics como um desafio direto ao Ocidente e um indício do não isolamento da Rússia parece ser o foco principal da mensagem impulsionada por Moscou nas últimas semanas, afirmam especialistas consultados pela BBC News Brasil.
"A Rússia vê o Brics e essa reunião como uma grande oportunidade para Putin demonstrar que o país não está sozinho", diz Natalie Sabanadze, pesquisadora do instituto britânico Chatham House e ex-diplomata.
"E a mensagem é destinada tanto para o público interno na Rússia quanto para o resto do mundo."
Se por um lado Putin busca mostrar para a população russa que o conflito na Ucrânia não os deixou totalmente sozinhos, por outro há a intenção de comunicar aos países do Sul Global que a Rússia pode ser uma boa parceira na luta contra o que o chamam de "colonialismo do Ocidente", diz a pesquisadora.
A cúpula de Kazan será a primeira do bloco com a participação dos novos membros.
Egito, Irã, Emirados Árabes Unidos e Etiópia se juntaram à Brasil, Rússia, Índia, China e Rússia no início deste ano.
A Arábia Saudita também foi anunciada como um dos novos membros, mas ainda não concretizou os trâmites para se juntar oficialmente. Ainda assim, segundo o Kremlin, o país será representado pelo seu ministro das Relações Exteriores na reunião.
Entre referências à novela A Escrava Isaura, de 1976 — obra que foi um fenômeno de audiência na Rússia —, e um grupo de capoeira em Moscou, o episódio dedicado ao Brasil exibido na televisão russa se propõe a fazer um breve apanhado da história brasileira e das relações entre os países.
Além do potencial econômico da parceria, o programa faz menções às diversas transições políticas atravessadas pelo Brasil ao longo das décadas e como o governo se aproximou ou se distanciou dos Estados Unidos durante cada período.
Sobre o atual governo Lula, o canal russo destaca o que chama de "ataques" aplicados pelo presidente contra os EUA assim que tomou posse em 2023.
Um dos exemplos utilizados pelo programa foi a visita do ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, a Brasília nos primeiros meses do terceiro mandato de Lula. A viagem é mencionada como uma "expressão de solidariedade à Rússia" feita pelo Brasil como uma afronta direta a Washington.
O sinal de apoio teria sido feito, segundo o Canal Um, pela afirmação "de que os Estados Unidos e o Ocidente como um todo são responsáveis pela crise ucraniana e, de fato, não querem uma solução para o conflito militar".
O programa parece fazer referência a declarações dadas por Lula em 2023 e 2024. Logo após assumir a Presidência pela terceira vez, Lula condenou a invasão da Ucrânia, mas ponderou apontando que "quando um não quer, dois não brigam".
"Acho que a Rússia cometeu um erro crasso de invadir o território de outro país. Mas acho que quando um não quer, dois não brigam. Precisamos encontrar a paz", disse Lula.
Em junho deste ano, o presidente brasileiro também afirmou que os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, "estão gostando da guerra" e criticou a realização de eventos para discutir o fim do conflito em que representantes russos não estejam presentes.
"Eu não faço defesa do Putin, o Brasil foi o primeiro país a criticar a Rússia pela invasão do país. O que eu não faço é ter lado, o meu lado é a paz", disse em Genebra, na Suíça, após participação na conferência da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Em resposta à BBC News Brasil, o Itamaraty afirmou ainda que tem buscado contribuir para a construção de entendimento e de uma solução pacífica para o conflito, que conduza à cessação das hostilidades. E, para isso, mantém canais de diálogo com os governos da Ucrânia e da Rússia.
Na nota, o governo brasileiro relembrou ainda que votou a favor da resolução da Assembleia Geral da ONU sobre a integridade territorial da Ucrânia, aprovada em outubro de 2022, e de resolução sobre paz duradoura e fim dos conflitos, aprovada em fevereiro de 2023. Também afirmou que lançou ao lado da China uma proposta conjunta para negociações de paz.
Ainda no documentário russo, o apresentador relembra a reunião de cúpula do Brics de 2014, realizada em Fortaleza, no Ceará.
"Notamos que em 2014, na cúpula brasileira do Brics, ninguém se opôs à reunificação da Crimeia com a Rússia, outra decepção para o Ocidente."
Na época, o governo russo sofria fortes críticas pela anexação do território - que Moscou chama de "reunificação" -, e os países do bloco foram alvo de condenações por não abordarem o assunto de forma pública.
Após pressão dos EUA e da Europa, o comunicado final da reunião de Fortaleza abordou o tema, mas sem citar diretamente a Rússia.
No texto, Brasil, Índia, China e África do Sul expressaram "profunda preocupação" com os desdobramentos da crise na Ucrânia naquele momento e pediram um "diálogo abrangente", o "declínio das tensões no conflito" e a "moderação de todos os atores envolvidos".
No programa Brics - Horizontes do Futuro, a televisão russa também aponta, em diversos momentos, o papel de destaque da Rússia e de Vladimir Putin no bloco e no movimento de união entre os países emergentes.
Na chamada para o especial, a Rússia é descrita como "o centro de gravidade para as maiores economias do planeta e para os líderes regionais que influenciam a política de continentes inteiros."
O esforço de propaganda pré-cúpula dos Brics pode ser notado não apenas na série documental exibida na televisão estatal, mas também em discursos e pronunciamentos oficiais de Putin e outras autoridades de seu governo.
"A Rússia não está isolada. No mundo moderno é difícil isolar qualquer país, especialmente um Estado como a Rússia", disse na semana passada o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, em referência à reunião.
Segundo ele, a Rússia, assim como muitos de seus parceiros estratégicos, estabelece relações com base no direito internacional, não em "regras impostas por países individuais, em particular os EUA, para satisfazer seus interesses".
"Essas relações são baseadas em respeito mútuo, levando em conta preocupações mútuas e cooperação", disse Peskov.
"A maioria dos países é a favor desse tipo de abordagem. É por isso que o diálogo internacional continua. E a Rússia continua sendo parte integrante desse diálogo internacional."
As críticas ao "modelo ocidental" e as promessas de "uma nova ordem multipolar mais justa" estão presentes em muitos dos discursos ligados ao bloco na Rússia, dizem os especialistas.
"Cada vez mais países percebem que o Brics é uma solução promissora e uma garantia de um mundo multipolar", afirmou recentemente o presidente da Duma, o Legislativo russo, Vyacheslav Volodin.
Em uma postagem no Telegram, o deputado enfatizou ainda que "os participantes e observadores do Brics não estão sujeitos a chantagem, condições absurdas para cooperação ou interferência em seus assuntos soberanos, ao contrário da UE".
"Tais políticas de Washington e Bruxelas, como podemos ver, tiveram o efeito oposto. As economias dos países do Brics são agora muito maiores do que as do G7. A UE está estagnada, com o PIB encolhendo na Alemanha, Áustria, Finlândia e Estônia. Suas indústrias estão sofrendo perdas significativas."
Natalie Sabanadze observa ainda como a Rússia não utiliza o termo "Sul Global" para descrever os membros do bloco, como muitos fazem.
Ao invés disso, Vladimir Putin menciona em diversas ocasiões a "maioria global", uma referência ao fato de que os Brics teriam mais da metade da população mundial somada e grande importância na economia do globo.
"Eles usam o Brics e a própria expansão do bloco como um recado para o Ocidente, como se dissessem: ‘somos a maioria e vocês são a minoria e, portanto, não têm legitimidade para nos dizer o que fazer ou que devemos seguir as regras criadas por vocês'", diz a pesquisadora da Chatham House.
Esse discurso foi reforçado por Putin durante seu discurso em um fórum de negócios que antecedeu o encontro de lideranças do Brics
"Os países da nossa associação são essencialmente os impulsionadores do crescimento econômico global. Num futuro próximo, o Brics gerará o principal aumento do PIB global", disse o presidente russo em Moscou na última sexta-feira (18).
Segundo Putin, líderes e representantes de 24 países participarão da reunião de cúpula nos próximos dias, entre membros permanentes e convidados do bloco.
Em uma declaração separada, o Ministério de Relações Exteriores da Rússia também chegou a dizer que a não adesão às sanções implementadas contra a Rússia por Estados Unidos, União Europeia, Reino Unido e outros aliados é um critério para a adesão aos Brics.
Além dos países incluídos no bloco em 2024, os membros discutem aceitar países associados, que não seriam integrantes plenos, mas gozariam de muitos dos benefícios fornecidos pelo grupo. Segundo o governo brasileiro, mais de 30 nações teriam expressado desejo de ingressar no Brics, entre elas Azerbaijão, Bolívia, Honduras, Venezuela, Cuba e Turquia.
"Um dos principais critérios para a adesão ao Brics ou para ser admitido como um estado parceiro é a não participação dos candidatos na política de sanções ilegais, restrições ilegais contra qualquer um dos membros do Brics e, em primeiro lugar, a Rússia", disse o vice-ministro das Relações Exteriores, Sergey Ryabkov.
Segundo o Itamaraty, o Brasil mantém uma postura histórica de oposição a sanções aplicadas unilateralmente.
"O Brasil aplica e reconhece apenas as sanções determinadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, órgão encarregado de zelar pela paz e pela segurança internacionais, nos termos do Artigo 24 da Carta da ONU", disse o ministério em nota.
Um mesmo discurso antiocidental também está muitas vezes presente em declarações de autoridades chinesas sobre o Brics — e agora também do Irã.
Para Stewart Patrick, diretor do programa de Ordem Global e Instituições do think-tank americano Carnegie Endowment for International Peace, o Brics se apoia em uma ideia comum de que algumas das instituições da ordem internacional estão voltadas contra os países em desenvolvimento e pós-coloniais e que o bloco pode ser um caminho para uma reforma.
Mas isso não significa necessariamente que todos ali concordem com a narrativa crítica aos Estados Unidos e à Europa ou apoiem as ações de China e Rússia nesse contexto.
"Para a China e para a Rússia, o Brics é um veículo para uma coalizão antiocidental. Mas esse não é o que pensam os outros membros originais - Brasil, Índia e África do Sul", diz Patrick.
Segundo o especialista, esses países querem ter flexibilidade diplomática para dialogar com diferentes grupos da ordem mundial atual.
"Embora eles [Brasil, Índia e África do Sul] não tenham se juntado à coalizão ocidental contra a invasão russa na Ucrânia, eles também não demonstram um alinhamento estratégico com China e Rússia."
Mas para Paulo Velasco, professor de Política Internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o Brasil e os demais membros do Brics que desejam manter o diálogo aberto com o Ocidente, podem encontrar cada vez mais dores de cabeça com o Brics diante de um bloco cada vez mais dominado por Rússia, China e seus aliados
"O Brics está cada vez mais se tornando um ator incômodo para o diálogo com o Ocidente", diz. "E os países como o Brasil talvez comecem a ter no Brics um estorvo."
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