"Quando acordei, havia muito sangue (...) escutava meus irmãozinhos chorando."
É assim que começa o forte depoimento de Lesly Mucutuy, a mais velha dos quatro irmãos menores de idade resgatados em junho de 2023 depois de passar 40 dias perdidos na Amazônia colombiana, segundo um novo documentário da Netflix.
As Crianças Perdidas faz uma reconstituição da operação de busca e resgate realizada por voluntários indígenas e forças militares depois que o avião em que os irmãos viajavam com a mãe e outros dois adultos caiu no meio da selva amazônica.
Apenas Lesly, Soleiny, Tien e Cristin — na época com 14, 9, 4 e 1 ano de idade, respectivamente — sobreviveram ao acidente.
O Instituto Colombiano de Bem-Estar Familiar (ICBF), a entidade responsável pelo cuidado dos menores, informou no aniversário do resgate que os irmãos estavam aproveitando "a vida que meninos e meninas deveriam ter nessa idade", uma vez recuperados e tendo recebido atendimento médico e psicológico.
A nova produção da Netflix, em colaboração com a Caracol Televisión e dirigida pelo cineasta britânico Orlando von Einsiedel, compila uma série de depoimentos, como o de voluntários que participaram do resgate, de uma professora das crianças e da tia delas, além do que Lesly prestou às autoridades.
Lesly retrata a tenacidade com que, como irmã mais velha, viveu o trauma de passar 40 dias lutando para sobreviver.
É também uma das poucas declarações conhecidas dos menores sobre a experiência.
Um dos fragmentos mais fortes é quando Lesly admite, segundo a reconstituição do depoimento que prestou às autoridades, que houve um momento em que decidiu abandonar os irmãos.
"Fui embora, mas depois de 20 minutos me arrependi, e sabia que tinha que voltar. Sabia que tinha que protegê-los. Cristin e Tien quase morreram", contou Lesly.
A mais velha dos irmãos assumiu a responsabilidade de cuidar deles — e de guiá-los pelos perigos da selva.
Localizada entre Caquetá e Guaviare, a selva por onde as crianças perambulavam é hostil, densa e habitada por criaturas vorazes como onças e cobras.
Neste ambiente ameaçador, Lesly — que estava com um ferimento na perna e "arrastava-se de joelhos" — forneceu comida e proteção aos irmãos.
"Minha mãe me ensinou muito sobre as frutas que eu podia comer na selva, como a milpesos. Fiz uma vara de pescar. Pegamos alguns peixes. Comemos cru. Tinha um gosto horrível", ela disse.
Segundo o depoimento da adolescente, ao acordar após o acidente, sua "mãe estava fazendo sons, e depois parou de fazer", indicando que ela presenciou seu último suspiro.
"Havia muito sangue", ela contou.
Foi então que ela levou os irmãos para buscar comida, se distanciando do avião.
"O que mais me preocupava era que a bebê Cristin ainda estava viva."
Lesly admitiu que não conseguia dormir, mas tentava fazer seus irmãos dormirem à noite.
A menor descreve momentos em que escutava o chamado das equipes de resgate sem conseguir localizá-las.
"Tentamos seguir a voz que nos chamava, mas ela desaparecia."
As crianças foram encontradas com sinais de desnutrição.
Tien e Cristin, os mais novos, com apenas quatro e um ano de idade, respectivamente, passaram por momentos delicados.
"Tien estava tão fraco que não conseguia ficar de pé", disse Lesly.
A mais velha dos irmãos contou que "quando viu o homem", referindo-se a um dos socorristas, "desabou".
E, de alguma forma, também ficou aliviada.
“Eu não precisava mais manter meus irmãozinhos vivos. Estávamos a salvo", resumiu.
Além de ser uma história de resgate, o documentário de Von Einsiedel é também uma narrativa de união, colaboração e superação de diferenças em nome de um grande desafio.
O filme mostra a desconfiança inicial que os voluntários indígenas e os militares mantiveram durante a busca, chamada na Colômbia de Operação Esperança.
"Fui atraído por esta narrativa em particular porque estava claro que dentro dela havia muitos lampejos da incrível resiliência e força humana, não apenas na luta das crianças para sobreviverem sozinhas na selva, mas também na forma como os socorristas indígenas e o Exército conseguiram superar suas diferenças e medos para se unirem em uma missão perigosa e épica para resgatar as crianças", disse o diretor em comunicado enviado pela Netflix à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
A mídia colombiana continua usando os termos "milagre" e "heroísmo" para se referir à sobrevivência das crianças durante 40 dias na selva.
Mas o fato é que este incidente também evidenciou séculos de herança e sabedoria indígena na Colômbia que contribuíram para um final feliz.
Pouco depois de as crianças serem encontradas, a BBC News Mundo entrevistou Alex Rufino, um indígena ticuna especialista em cuidados da selva.
Na conversa, Rufino disse que a linguagem épica usada pela mídia e pelas instituições na Colômbia revelava um desconhecimento do mundo indígena.
Mais do que perdidas, ele disse, "as crianças estavam em seu ambiente, sob os cuidados da selva e da sabedoria de anos de povos indígenas em contato com a natureza".
O novo documentário da Netflix explora esta noção em um país com um histórico de séculos de exclusão indígena e falta de compreensão sobre a sabedoria e visão de mundo dos povos originários.
A história das crianças manteve a Colômbia e o resto do mundo em suspense durante semanas.
Quase um ano e meio depois do resgate, diversas produções literárias e documentais fizeram a reconstituição deste acontecimento que continua a gerar interesse global.
A plataforma Prime Video, da Amazon, lançou o documentário Operação Esperança: as crianças perdidas na Amazônia, em que atores e familiares recriam os acontecimentos.
Antes disso, a Escola Superior de Guerra General Rafael Reyes Prieto publicou um livro, também chamado Operação Esperança, narrado por comandantes das Forças Militares “que se uniram numa luta desesperada contra o tempo e a natureza mais selvagem para encontrar as crianças com vida".
O jornalista investigativo colombiano Daniel Coronell também lançou um livro intitulado Los niños del Amazonas: 40 días perdidos en la selva ("As crianças da Amazônia: 40 dias perdidas na selva", em tradução livre), no qual, por meio de uma série de entrevistas, explica como foi realizado o resgate que muitos consideravam impossível.
Na ocasião do aniversário do resgate, a BBC News Mundo solicitou ao ICBF entrevistas com os menores e seus representantes legais, mas não foi possível realizá-las.
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