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Como suposto espião colocou Brasil entre disputa de Rússia e EUA

Como suposto espião colocou Brasil entre disputa de Rússia e EUA

Preso no Brasil, Sergey Cherkasov é alvo de pedidos de extradição dos dois países. Caberá ao Supremo Tribunal Federal e ao governo brasileiro decidirem se ele será extraditado.

Publicado em 28 de abril de 2023 às 05:42

Ícone - Tempo de Leitura 9min de leitura
Imagem BBC Brasil
Cherkasov passou a ser disputado pelos governos de Rússia e EUA. (Reprodução)

Quando agentes da Polícia Federal prenderam o russo Sergey Vladimirovich Cherkasov no Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP), em abril de 2022, eles não imaginavam que aquele homem branco de cabelos claros com documentos falsos e que dizia ser brasileiro apesar do forte sotaque estrangeiro poderia colocar o país em uma disputa aberta entre duas potências mundiais: Rússia e Estados Unidos.

Desde a última terça-feira (25/04), porém, Cherkasov passou a ser oficialmente disputado pelos governos dos dois países. Tanto a Rússia quanto os Estados Unidos pediram a sua extradição. Agora, caberá ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao governo brasileiro decidirem se Cherkasov será extraditado e qual país ficará com ele.

Especialistas e fontes ouvidas pela BBC News Brasil afirmam que o caso cria uma situação desconfortável para o Brasil, uma vez que o país terá de decidir sobre os pedidos de entre dois importantes parceiros comerciais e políticos em um momento em que as relações entre russos e norte-americanos estão estremecidas.

Cherkasov foi preso no Brasil após ser impedido de entrar na Holanda, quando tentava iniciar um estágio no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia. A corte investiga e julga crimes de guerra. Na ocasião, Cherkasov usava documentos falsos brasileiros e adotava a identidade de Victor Muller Ferreira.

Os serviços de inteligência da Holanda alegavam que ele era, na verdade, um oficial do Departamento Central de Inteligência (GRU) da Rússia que usava a identidade brasileira para se infiltrar no tribunal.

Em junho de 2022, ele foi condenado pela Justiça brasileira a 15 anos de prisão pelo uso de documentos falsos. Ele admitiu o uso dos documentos falsos e ter se passado por Victor Muller Ferreira por quase uma década, mas negou, até agora, seu envolvimento com qualquer tipo de espionagem. Procurados, seus advogados privados não responderam aos contatos feitos pela BBC News Brasil.

A Defensoria Pública da União (DPU), que defende Cherkasov no Supremo, disse à BBC News Brasil ainda não ter conhecimento do pedido de extradição feito pelos Estados Unidos.

Após sua prisão, contudo, a Polícia Federal e o FBI passaram a investigar a atuação de Cherkasov. Documentos e informações coletadas apontaram que ele teria usado a identidade brasileira para atuar nos Estados Unidos e na Europa. Procurada diversas vezes sobre o caso, a Embaixada da Rússia no Brasil não vem comentando o episódio.

Em março deste ano, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos formalizou uma acusação contra ele pelos crimes de atuar como agente estrangeiro em solo norte-americano (prática considerada semelhante à espionagem) e fraudes financeiras e para obtenção de vistos.

Segundo as autoridades do país, Cherkasov faria parte de um grupo especial de espiões conhecido como "ilegais", que são despachados pela Rússia para outros países com nomes falsos e com a missão de assumir uma personalidade totalmente nova para se infiltrarem nos países e coletarem informações e cumprirem missões enviadas por Moscou.

A 'batalha de extradições'

Imagem BBC Brasil
Trecho de 'carta garantia' em que o consulado-geral da Rússia oferece suas instalações para receber o suspeito de espionagem Sergey Vladimirovich Cherkasov. (REPRODUÇÃO)

A "batalha" das extradições entre Rússia e Estados Unidos começou em agosto de 2022, quando a Rússia pediu a extradição de Cherkasov sob a alegação de que ele era acusado de tráfico de drogas em seu país.

Em março deste ano, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, ao formalizar a acusação contra Cherkasov, disse acreditar que as alegações feitas pelo governo russo às autoridades brasileiras seriam falsas. Elas teriam o objetivo de conseguir que ele retornasse ao seu país de origem.

Em março, o relator do caso, o ministro do STF, Luiz Edson Fachin, deferiu o pedido de extradição feito pelos russos, mas condicionou a entrega de Cherkasov ao fim das investigações sobre sua atuação no Brasil que ainda são conduzidas pela Polícia Federal.

Na terça-feira (25/04), foi a vez do governo norte-americano pedir a extradição de Cherkasov. A informação foi revelada pela BBC News Brasil com base em nota enviada pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE).

Tanto o caso da Rússia quanto o dos Estados Unidos tramitam no STF, que é a instância onde processos de extradição são julgados no Brasil.

O processo de extradição feito pelos norte-americanos ainda deverá ser analisado pelos ministros e ministras do STF e ter pareceres da Procuradoria-Geral da República. Ainda não há prazo para que ele seja julgado.

A situação de Cherkasov chama atenção agora não apenas pelas suspeitas de que ele era um espião se fazendo passar por brasileiro, mas por colocar as autoridades brasileiras em uma situação pouco comum: a existência de mais de um país pedindo a extradição da mesma pessoa.

Advogados e professores especializados em direito internacional ouvidos pela BBC News Brasil apontam que a legislação brasileira estabelece critérios para resolver casos como esse.

Eles apontam que a regra geral para a resolução desse tipo de conflito está prevista na Lei de Migração, de 2017. Ela prevê que, quando houver mais de um Estado requerendo a extradição de uma mesma pessoa, o "desempate" é feito pelos seguintes critérios:

-País onde o acusado cometeu o crime cuja pena for mais grave, de acordo com a lei brasileira

-Se a gravidade dos crimes for a mesma, terá preferência o país que fez o pedido primeiro

-Se a gravidade dos crimes for a mesma e os pedidos tiverem sido feitos ao mesmo tempo, a preferência é do Estado de nacionalidade ou de residência do alvo da extradição

A advogada especializada em direito internacional Daisy Neitzke disse à BBC News Brasil que, além dessa regra geral, a legislação ainda prevê que o julgamento avalie os termos dos tratados de extradição que o Brasil tem tanto com a Rússia quanto com os Estados Unidos.

Ela disse, no entanto, que, caso a análise feita pelo STF chegue à conclusão de que os critérios existentes não são suficientes para decidir por um país ou por outro, a decisão final caberá ao Poder Executivo.

"Caso haja alguma dúvida ou se não houver uma solução na definição das gravidades dos crimes, por exemplo, a lei diz que a preferência será determinada pela análise do governo brasileiro", afirmou a advogada.

Neitzke disse que não é possível fazer uma análise comparativa entre os pedidos feitos pela Rússia e pelos Estados Unidos porque os documentos do processo movido pelos norte-americanos ainda estão sob sigilo.

Dessa forma, não seria possível, por exemplo, saber com exatidão quais os crimes são atribuídos a Cherkasov. Isso prejudica a análise do principal critério de desempate, que é a gravidade dos crimes supostamente cometidos pelo alvo do pedido.

Cenários possíveis e foco no Executivo

Imagem BBC Brasil
STF é a instância onde processos de extradição são julgados no Brasil. (STF)

O procurador da República e professor de Direito Internacional Vladimir Aras avalia que o caso envolvendo Cherkasov coloca o Executivo brasileiro em uma situação delicada. "Esse caso cria um problema gigante. Acho que o problema hoje está muito mais nas mãos do governo do que do STF."

Nos diversos cenários em que o STF puder se posicionar sobre os pedidos, a entrega ou não de Cherkasov tanto para Rússia ou Estados Unidos poderá ficar a cargo do Poder Executivo.

"Desde o caso Cesare Battisti, de 2010, o entendimento no Brasil é de que o Supremo autoriza a extradição, mas a entrega do extraditando é uma decisão discricionária do Poder Executivo", disse Aras.

O militante de esquerda italiano Cesare Battisti foi condenado por assassinatos na Itália e fugiu para o Brasil. Em 2009, o STF autorizou a extradição de Battisti. Em 2010, porém, o Supremo julgou um recurso e determinou que a Corte tem o poder de autorizar ou não a extradição, mas a entrega depende do Executivo. Naquele ano, Lula contrariou a decisão do STF e negou o envio de Battisti à Itália.

Aras descreve dois cenários.

"O Supremo pode negar o pedido dos americanos e manter o que foi feito pelos russos. Nesse caso, caberá ao governo decidir se entrega ou não a pessoa à Rússia. No outro cenário, o Supremo pode também autorizar o pedido dos americanos. Aí, vai caber ao Executivo, novamente, decidir para quem entregar", disse o procurador.

Aras disse ainda que há um fato inusitado que pode colocar ainda mais pressão sobre o Poder Executivo.

"A lei estabelece critérios para pedidos concorrentes ou simultâneos. Mas o pedido feito pelos russos já tem até uma decisão, então não sei se entraria nessas duas categorias. Isso faz com que a situação não esteja prevista na lei. E a lei diz que casos não previstos em lei devem ser decididos pelo Executivo", disse.

"Para complicar ainda mais, a lei ainda diz que, nesses casos não previstos pela legislação, o Executivo terá que decidir dando preferência pelo país que com quem o Brasil tiver tratado de extradição. Só que o Brasil tem tratados tanto com a Rússia quanto com os Estados Unidos", complementou.

'Desconforto'

Diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil em caráter reservado admitem que a situação cria uma situação inusitada para o Brasil, mas afirmam que o tema não vem sendo tratado, pelo menos até agora, como um foco de preocupação no governo brasileiro.

Eles dizem avaliar que o caso ainda precisa passar pela análise do STF antes de se tornar uma prioridade do governo. Eles também afirmam que o tema não chegou a ser abordado durante a passagem pelo Brasil do ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, no dia 17 de abril.

A "batalha" de pedidos de extradição ocorre em um momento de intensificação das tensões entre os dois países, especialmente após o início da invasão da Ucrânia por tropas russas, em fevereiro de 2022.

Os Estados Unidos são o principal fornecedor de armas para a Ucrânia desde o início do conflito.

Nas últimas semanas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi alvo de críticas após ter dado declarações sobre a guerra na Ucrânia interpretadas como pró-Rússia. Em visita à China, ele disse que os Estados Unidos e alguns países da Europa estariam "incentivando" a guerra ao enviar armas para a Ucrânia.

Após as críticas, Lula disse que nunca igualou Rússia e Ucrânia e que o Brasil reconhece que o país comandado por Vladimir Putin errou. Em visita a Portugal e Espanha nesta semana, Lula voltou a defender a abertura de canais de diálogo para tentar dar um fim ao conflito.

Além das tensões por conta do conflito na Ucrânia, Rússia e Estados Unidos também enfrentam uma escalada diplomática por conta da prisão do jornalista norte-americano Evan Gershkovich, em março deste ano.

O repórter trabalhava para o jornal The Wall Street Journal, mas o governo russo acusa o jornalista de praticar espionagem no país.

Para a doutora em Relações Internacionais e professora da Escola Superior de Guerra (ESG) do Ministério da Defesa Mariana Kalil, a decisão sobre se e para que país o Brasil vai extraditar Cherkasov cria uma situação diplomaticamente desconfortável, mas não a ponto de afetar substancialmente as relações do país com Rússia e Estados Unidos.

"Gerar insatisfação para qualquer parceiro não é confortável, mas faz parte de relações complexas em um mundo cada vez mais desafiador. No entanto, repito: não estamos perto de pontos de inflexão e as relações do Brasil com os Estados Unidos, em especial, historicamente importantes e de crescente confiança mútua, são capazes de amortecer crises ou de encapsular crises para não comprometer o todo da agenda", diz Kalil.

A BBC News Brasil pediu esclarecimentos sobre o caso aos ministérios da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e das Relações Exteriores, ao Supremo Tribunal Federal e ao Departamento de Estado dos Estados Unidos. O MJSP não se pronunciou até o momento.

O Itamaraty enviou uma nota afirmando que os processos de extradição dependem da autorização do STF e a entrega do extraditando cabe ao Poder Executivo.

O Departamento de Estado dos Estados Unidos encaminhou os questionamentos ao Departamento de Justiça, responsável pelas investigações sobre Cherkasov em solo norte-americano, mas nenhuma resposta foi enviada.

O STF, por meio de nota, não comentou o caso e disse não ter informação sobre o pedido de extradição formulado pelos Estados Unidos.

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