Desde que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou o pacote de corte de gastos públicos planejado pelo governo, na última quarta-feira de novembro, o país vive as consequências das reações à proposta.
O dólar ultrapassou a casa dos R$ 6 pela primeira vez na história no dia seguinte ao anúncio e lá ficou como expressão da insatisfação do mercado – que diz que esperava por medidas mais rígidas de redução fiscal. Na segunda-feira (17), o dólar fechou em R$ 6,09.
No Congresso, a bancada governista também torceu o nariz, mas por outra razão: deputados estavam preocupados com as implicações nos programas sociais, sobretudo no Benefício de Prestação Continuada (BPC), mas também no salário mínimo.
Ao final, o Planalto precisou negociar com seu próprio partido, o PT, por votações favoráveis aos projetos.
Um dos maiores especialistas em desigualdades do país, o sociólogo Marcelo Medeiros, evita fazer críticas diretas ao ministro e seu pacote, mas deixa claro que, para ele, as medidas são ruins — e por vários motivos.
"É que é mais fácil cortar de quem é pobre do que de quem é rico. Também é mais imoral", resume.
À BBC News Brasil, Medeiros, que está pesquisando neste ano na Universidade Columbia, em Nova York, nos Estados Unidos, e ainda é ligado à Universidade de Brasília (UnB), argumenta que o ajuste fiscal deveria focar em tributação no topo da renda, e não na base.
Para ele, estendendo essa análise, a decisão de isentar do Imposto de Renda (IR) uma classe média que ganha até R$ 5 mil por mês é uma "gotinha no oceano" perto do que deveria ser, para ele, realmente feito: revisar o grosso dos subsídios fiscais para diferentes setores produtivos.
Por causa desses subsídios, em 2022, o país renunciou a um montante de R$ 581 bilhões – ou mais de 5% do Produto Interno Bruto (PIB) – em impostos, segundo dados oficiais.
Mas esse ajuste fiscal, que ele considera o pacote que deveria ser feito, de fato, não avança no Brasil por causa do Congresso, "que está atuando como um empecilho à economia do país" ao se comportar como um "sindicato dos ricos".
Porém, na leitura de Medeiros, o erro político — e moral — mais grave está em mexer no salário mínimo, que terá um teto de 2,5% de reajuste anual.
"Do Plano Real para cá, o principal mecanismo de redução de pobreza no Brasil tem sido o salário mínimo, e não Bolsa Família ou qualquer outro programa de assistência", diz Medeiros.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - De que forma esse pacote de corte de gastos pode impactar os indicadores sobre a desigualdade?
Marcelo Medeiros - É pouco provável que qualquer ajuste desse tipo tenha impacto relevante sobre a desigualdade. Na verdade, foram os aumentos sistemáticos do salário mínimo no passado que fizeram com que ela caísse — e freá-los significa justamente frear as reduções da pobreza e da desigualdade. Por outro lado, a preocupação fiscal não pode ser ignorada.
Essa decisão [de cortar gastos] é difícil de se tomar. É que qualquer ajuste fiscal no Brasil tem que passar necessariamente por um aumento expressivo da arrecadação. Nessa circunstância, diminuir gastos ou é muito difícil ou é imoral. Cortar gastos de assistência ou fazer restrições desse tipo é imoral.
BBC News Brasil - Mas como aumentar a arrecadação em um cenário de pressão, justamente, por cortes?
Medeiros - O Brasil tem, na verdade, que resolver o volume monstruoso de subsídios fiscais, que hoje é da ordem de pelo menos R$ 500 bilhões, distribuídos entre inúmeros setores, muitos deles sem razões claras para recebê-los, porque o retorno que oferecem ao desenvolvimento do país é baixo.
Não são justificáveis. Tudo isso fora alguns problemas de natureza tributária, para os quais era preciso um plano. Mas, ainda que muita gente queira discutir o papel do Executivo nisso, o grande obstáculo desse ajuste fiscal [que deveria ser feito] é o Congresso. Ele está se tornando uma barreira para as finanças públicas do país e para a boa condução da economia. O Brasil precisa entender isso rapidamente.
BBC News Brasil - Por que o Congresso é um obstáculo?
Medeiros - Ele tem que assumir tanto sua responsabilidade fiscal quanto social, e não se comportar como um agente dos seus próprios interesses, financiando processos políticos interiores que se tornarão campanhas eleitorais no futuro. O Congresso é o grande problema do Brasil hoje ao não assumir esse papel e ficar aprovando extensões de subsídios.
Essa ênfase em aumentar arrecadação conflita com setores que insistiam por um pacote de cortes de gastos, principalmente aquele que todo mundo chama de "mercado". Por que essa exigência tem sido tão intensa?
Não é possível cortar gastos, muitos gastos, de maneira simultaneamente rápida e responsável. Não dá. E, se a gente olhar para a estrutura do orçamento, tirando os subsídios tributários, todo o resto a gente não pode deixar de ter.
É criminoso tirar recursos do SUS [Sistema Único de Saúde] ou do sistema educacional, por exemplo. A principal demanda do orçamento é dada pelo sistema previdenciário, e há margem para novas reformas previdenciárias. Isso terá que ser feito. Não é trivial, mas vai depender do Congresso, que deixou janelas abertas na última reforma que fez [em 2019]. Ele precisará fazer escolhas de natureza distributiva. Mas a pergunta fundamental é: quem vai pagar pelo ajuste fiscal brasileiro?
BBC News Brasil - E quem terá que pagar, na opinião do senhor?
Medeiros - Por que fazer um ajuste fiscal? Porque está gastando mais do que se arrecada. A solução para isso é ou arrecadar mais ou gastar menos. Essa última opção é bastante complicada, mas a primeira — aumentar arrecadação — é difícil do ponto de vista político, embora seja viável a curto prazo.
O Brasil terá que enfrentar o fato de que terá que aumentar sua arrecadação. Não há alternativa. Não tem um cenário bem desenhado hoje que garanta equilíbrio fiscal fazendo cortes de forma irresponsável. O que temos são cortes que só vão fazer a máquina — e por "máquina" eu me refiro ao sistema educacional, à saúde, etc. — funcionar mal. Ninguém quer que isso aconteça. A solução, então, é aumentar a arrecadação.
BBC News Brasil - Como isso poderia ser feito em curto prazo?
Medeiros - Nosso sistema tributário é ruim em muitas dimensões. Um deles é justamente controlar essa máquina gigantesca de subsídios — problema de ordem tributária. O Brasil gasta muito mais dinheiro com ela do que com programas de assistência social, como o Bolsa Família, por exemplo.
Para enfrentar isso, será necessário passar pelo Congresso, que é parte interessada [nesse processo]. Eu entendo que essa é uma decisão politicamente delicada, mas o Congresso deve assumir sua responsabilidade. Se ele quer ter poder de governo, com mais comando sobre o orçamento público, então, precisa ter responsabilidade correspondente a esse aumento de poder.
BBC News Brasil - Se é o arcabouço tributário quem estrutura a desigualdade, qual é o papel, então, dos programas sociais nesse sistema?
Medeiros - Precisamos nomear corretamente as diferentes desigualdades. Desigualdade de renda é diferente de desigualdade de [acesso à] saúde, que é diferente, por sua vez, da desigualdade educacional. O sistema tributário afeta a desigualdade de renda por um lado e, por outro, gera mais recursos para o governo gastar com saúde e educação.
Programas de assistência social não são irrelevantes, mas têm impacto pequeno sobre a desigualdade. O dinheiro gasto com educação como um todo ou com saúde são determinantes nas desigualdades das suas duas respectivas áreas. A massa da população não vive adequadamente sem SUS e sem um sistema de ensino gratuito, sem o qual ela não chegaria ao ensino superior. E ela precisa chegar nele.
BBC News Brasil - Mas e a Previdência Social nisso?
Medeiros - Ela não é só um gasto como outro qualquer: é a combinação de uma poupança que as pessoas fazem ao longo do tempo com um seguro e com mecanismos de assistência social. Parte do que a Previdência está fazendo hoje equivale, do ponto de vista contábil, a uma poupança que vai sendo acumulada e paga.
Não estou dizendo que não existem subsídios previdenciários. A ingenuidade é achar que a Previdência é um gasto como qualquer outro. É claro que precisamos de reformas previdenciárias, porque o sistema não vai aguentar mesmo. Temos que ter idades mínimas mais altas. Tem grupos se aposentando com 55 anos! Eles podem fazer isso desde que paguem mais. Assim como é óbvia a necessidade de um mecanismo de proteção dos idosos, como vários outros países têm e que, no caso do Brasil, funciona via BPC [Benefício de Prestação Continuada].
BBC News Brasil - Que vai ser ajustado também agora.
Medeiros - Mas é claro. É mais fácil cortar de quem é pobre do que de quem é rico. Mas também é mais imoral.
BBC News Brasil - O ponto, então, não é a existência do corte, mas o objeto dele?
Medeiros - Claro. O Brasil tem que ter responsabilidade fiscal. A pergunta é quem paga por ela e quem deixa de pagar. O Congresso não está ajudando ao não fazer os ricos pagarem pelo desenvolvimento do país. Ele precisar deixar de ser um empecilho para a condução da política fiscal brasileira.
BBC News Brasil - Em meio a esse pacote, qual é o peso real dos gastos públicos sobre a desigualdade? O Índice de Gini do Brasil, por exemplo, caiu muito (para 0,481, segundo dados do Ipea) na metade de 2022, durante a pandemia, por causa do Auxílio Emergencial.
Medeiros - Não dá para medir muito bem, mas veja só: o Índice de Gini mede distribuição de renda. Quando o país corta gastos do sistema de saúde, por exemplo, isso não se mede pela desigualdade de renda, mas pela desigualdade na saúde. É por isso que essa palavra deve ser sempre conjugada no plural: desigualdades.
O Brasil tem muitas delas: na saúde, na educação e... na renda. Cada vez que há um corte de gastos, a área correspondente é a mais impactada. Tirar dinheiro da assistência impacta na pobreza, por exemplo. E é importante lembrar que o Estado não gera só efeitos diretos [com a maneira como maneja os recursos], mas também indiretos — que nós chamamos de efeitos de "segunda ordem".
Quando ele cria um gasto no presente para melhorar a qualificação da mão de obra, no futuro se espera uma produtividade melhor, ou quando ele investe em algo para tornar a população mais saudável, a expectativa é que a despesa com saúde caia lá na frente. É uma equação complexa.
BBC News Brasil - E há alguma chance de o Congresso mudar sua atuação nesse sentido?
Medeiros - Politicamente, eu não sei dizer, porque não sou analista político, mas deveria ser, porque, sem colaboração dele, o Brasil continuará instável. Tem coisas que não estão sendo sequer propostas, porque todo mundo já sabe que serão barradas.
BBC News Brasil - O que, por exemplo?
Medeiros - A reforma do Imposto de Renda que acaba com regimes especiais de tributação.
BBC News Brasil - Haddad tem tido certo sucesso em negociar os pontos do pacote de cortes com o Congresso — especialmente no Senado. Um deles é justamente aumentar a faixa de isenção do Imposto de Renda para até R$ 5 mil e tributar rendas maiores.
Medeiros - Mas não é isso que a gente realmente precisa. É algo muito pequeno diante do tamanho da reforma tributária que o Brasil tem que fazer, mudando brutalmente os regimes do Simples Nacional e do Lucro Presumido para que todos paguem impostos do mesmo jeito. Como está hoje, estamos criando condições para um grupo pagar muito menos do que o resto da população. Não pode. Está errado.
BBC News Brasil - A isenção, aliás, foi criticada por beneficiar mais uma certa classe média, do que quem está, de fato, em situação de pobreza. O recorte de renda (R$ 5 mil) definido no pacote é socialmente efetivo?
Medeiros - Não tenho cálculos para te responder melhor, mas o que posso insistir é que a reforma tributária que o Brasil precisa não é para aliviar tributação na base, mas para melhorar a tributação no topo, onde ela é muito baixa. Temos vários mecanismos que sustentam essa estrutura. Falta, por exemplo, uma tributação sobre lucros e dividendos de Pessoa Física (PF), que hoje é ruim. É fundamental mexer nos regimes especiais.
O próprio MEI [Microempreendedor individual] é um problema que precisa ser resolvido logo, assim como a série de investimentos subsidiários, como a Letra de Crédito do Agronegócio (LCA), que não paga imposto algum, e o tributo sobre aplicações financeiras, que pagam a menor alíquota possível (15%) e ainda não entram como rendimento total [na declaração do IR]. Nosso Imposto de Renda está fazendo tudo o que pode para não ser progressivo, para não cobrar dos mais ricos. Esse desenho é muito ruim.
BBC News Brasil - Quais as prioridades?
Medeiros - Resolver os regimes especiais e acabar com o Simples [Nacional], com o Lucro Presumido e com o MEI, além da tonelada de subsídios. Há muito subsídio para o agronegócio, por exemplo, e ele não precisa disso. É um setor estabelecido e nem é tão dinâmico assim. Tem também tudo quanto é subsídio para mão de obra, como a própria exoneração da folha de pagamentos, que passa ao largo do debate público porque a imprensa se beneficia dele. Isentar quem ganha até R$ 5 mil por mês de declarar o Imposto de Renda é só uma gotinha no oceano desses benefícios todos.
BBC News Brasil - Por essa lógica, a decisão de mudar a estrutura do IR, então, é paliativa.
Medeiros - A isenção parece paliativa. O Brasil tem pouca progressividade. A alíquota superior brasileira, de 27,5%, é baixa. Temos que ter alíquotas mais altas, inclusive no topo, aumentando também a base tributária. Tem que tributar todos os rendimentos de capital como renda, não de forma separada. Não tem por que ser assim. Hoje, um advogado empresário paga infinitamente menos imposto do que um advogado empregado. Isso está errado. Sem contar que é ruim até para a Previdência, porque aumenta o déficit.
BBC News Brasil - Esse é o problema que o senhor enxerga no regime do MEI também?
Medeiros - O MEI tem dois problemas. O primeiro é que ele está destruindo a proteção trabalhista brasileira. Uma pessoa que trabalha [nesse regime] é um empregado contratado sem proteções trabalhistas. É ruim para quem trabalha. Fora que essas proteções são positivas para a própria dinâmica do mercado de trabalho. Até porque o valor do MEI é muito alto: tem gente ganhando o limite dele [R$ 81 mil]. Segundo que ele não tem uma contribuição previdenciária adequada, e isso significa que os trabalhadores que são MEI vão ter se aposentar apenas com um salário mínimo. Isso também é muito ruim.
O resultado são dois trabalhadores idênticos no mercado: um pagando muito menos imposto e sem proteção, e um outro cheio de proteções trabalhistas, mas custando caro. Tem que nivelar. Não há nenhuma razão para que o MEI seja tolerado como ele é. Trata-se de uma forma legal de subemprego. Não é à toa que cresce assustadoramente.
BBC News Brasil - O argumento contrário a esse diz que, como as proteções são muito altas, o MEI dinamiza o mercado de trabalho.
Medeiros - Não conheço ninguém que tenha feito uma conta séria sobre isso. Uma coisa é justificar um pintor de parede, por exemplo, que virou MEI. Era um trabalhador que prestava serviço sem ter empresa aberta e, agora, tem. Mas o MEI virou uma relação trabalhista camuflada. Todo mundo que conheço concorda que as proteções trabalhistas são boas para garantir o funcionamento do mercado do trabalho. Agora, se custa caro ou não, é claro que tudo custa caro...
BBC News Brasil - E qual é o problema do Simples? Estão nele pequenas e médias empresas, por exemplo, que ganharam outra dimensão discursiva dentro do debate sobre a economia brasileira – como geradoras de trabalho e dinamizadoras das trocas cotidianas.
Medeiros - Em primeiro lugar, os valores do Simples Nacional são muito altos. Há empresas ganhando muito dinheiro [dentro do regime]. Segundo: tem gente abrindo duas, três, quatro empresas só para se manter dentro dos limites [de faturamento]. Tem empresa do setor da construção civil, por exemplo, abrindo uma empresa nova para cada edifício [construído] como forma de burlar a tributação. Temos uma fiscalização ruim sobre isso, sem contar a falta de clareza da legislação. Uma coisa é simplificar o mecanismo burocrático [de arrecadação dos impostos].
O que não existe é razão para se tributar menos um regime do que outro. O Simples é até mais fácil de se processar burocraticamente, mas [quem está nele] paga menos imposto. Isso é péssimo. O correto seria obrigar as pessoas donas dessas empresas a pagar para si mesmas um salário correspondente à da função no mercado, como acontece em muitos países. Caberia, então, à Receita Federal fiscalizar e multar quem não estivesse cumprindo essa regra. O Simples virou uma forma legal de burlar tributação.
BBC News Brasil - Quais seriam os ajustes necessários em ambos os regimes?
Medeiros - O ajuste seria baixar tremendamente os valores autorizáveis [de faturamento]. O MEI deveria se limitar a um salário mínimo por mês, e o Simples se limitar a um pouco mais do que isso. Ou, então, acabar com eles.
BBC News Brasil - Por quê?
Medeiros - Não tem motivo [de existirem]. No passado, fazia sentido simplificar a contabilidade, mas hoje todas as empresas do Simples mantêm a contabilidade regular necessária para estarem em outro regime tributário, enquanto processos eletrônicos atuais tornaram a manutenção dessa contabilidade mais barata. Logo, não há razão, do ponto de vista de simplificação burocrática, para ele existir mais.
O ponto é que ninguém entra no Simples porque ele é mais fácil. As empresas entram nele porque ele é mais barato do ponto de vista tributário. Elas estão entrando nele para não pagar impostos. E a questão não é nem essa, mas, novamente, o fato de o pesar dos subsídios estar indo para os mais ricos. Eles estão na tributação sobre insumos, basicamente utilizado pelo agro, ou sobre transportes, que o agro também usa para exportar. O Brasil subsidia o petróleo do agronegócio, mas não a gasolina do produtor de banana.
BBC News Brasil - São benefícios oriundos de políticas de industrialização.
Medeiros - Políticas baseadas em reduções tributárias geralmente são ineficientes. Se o objetivo for fazer política industrial, funciona melhor gastando em infraestrutura, em transferência direta, em compra direta, e não em subsídio tributário. É uma política antiga, que todo mundo já viu que não funciona, porque [o excedente] é altamente apropriado. Vira lucro em vez de investimento.
BBC News Brasil - Voltando ao pacote de gastos, o quanto aumentar impostos daqueles que ganham acima de R$ 50 mil é efetivo, considerando que, como o senhor já escreveu, o grosso da renda dos mais ricos no Brasil não vem do trabalho, mas do patrimônio?
Medeiros - Uma boa medida para resolver esse problema da tributação dos mais ricos seria fazer uma integração tributária. Funcionaria assim: o que se paga como Pessoa Jurídica (PJ) é descontado do Imposto de Renda da Pessoa Física (PF). E o contrário também: o que não for pago como Pessoa Jurídica vai para o IR. Na verdade, é como se não existisse Pessoa Jurídica, mas só Pessoa Física.
Tudo fica tributado do mesmo jeito. Nos Estados Unidos é assim. Não diferenciar renda é, inclusive, a recomendação internacional. Renda é renda e deve ser tributada da mesma forma sempre.
BBC News Brasil - O corte de gastos também estipulou um teto ao reajuste anual do salário mínimo. Qual é a sua opinião do senhor sobre isso?
Medeiros - Existe muito erro nesses cálculos sobre o impacto do salário mínimo nas contas públicas. Primeiro que o único impacto ao governo está na Previdência, porque quem paga boa parte dos efeitos do salário mínimo é o setor privado. Segundo que uma parte grande do salário mínimo vira imposto automaticamente, porque ao pagá-lo, o governo recolhe automaticamente a Previdência.
A conta que está sendo subestimada é essa: um quinto do salário mínimo vira previdência. Além disso, cerca de 15 a 17% dele vira arrecadação tributária por meio do consumo, porque as pessoas compram coisas com esse dinheiro e pagam impostos sobre elas. Ao final, portanto, quase metade do salário mínimo vira imposto antes do final do mês em que ele foi pago.
Tudo isso não são erros triviais de cálculo: eles são deliberados para não reajustar o salário mínimo. Mas o que a gente não pode esquecer é que, do Plano Real [1994] para cá, o principal mecanismo de redução de pobreza no Brasil tem sido o salário mínimo — e não o Bolsa Família ou qualquer outro programa de assistência. A queda da pobreza pós-Plano Real foi, em pelo menos metade dela da sua dimensão, derivada do aumento do salário mínimo e, de lá para cá, vem sendo assim. Isso é algo fundamental de se entender nesse debate.
BBC News Brasil - A limitação do reajuste, portanto, vai impactar na desigualdade.
Medeiros - Se vamos limitar os aumentos do salário mínimo — o que não está fora da mesa de discussão —, temos que fazer isso sabendo que se trata de uma decisão que significa parar de reduzir pobreza e desigualdade. Se está escolhendo fazer esse ajuste pelo lado dos mais pobres, o que é imoral, e não fazê-lo pelo lado dos mais ricos, mexendo nas vantagens tributárias, o que, obviamente, é moralmente aceitável.
Agora, por que isso está sendo feito assim? Por uma série de razões, mas parte delas é porque o Congresso atua como trava para fazer o reajuste no lado dos mais ricos. Ao fazer isso, ele atua como sindicato dos ricos. Isso é péssimo para a economia do país.
BBC News Brasil - O salário mínimo tem peso maior na conjuntura brasileira, considerando que ele também nivela os salários de quem está na informalidade?
Medeiros - Sim, porque afeta muita gente. No caso dos informais, ele serve como referência. Mas não só: afeta também quem presta serviços para os mais pobres, porque quando o salário mínimo aumenta, cresce também o consumo desses serviços: quem planta comida para vender ao pobre, quem pinta a parede do pobre, etc.
BBC News Brasil - Mas de que pobres estamos falando, já que há toda uma categoria de "não pobres" na literatura sociológica para se referir à população que é vulnerável, no sentido de estar a uma demissão da pobreza, por exemplo?
Medeiros - A grande massa da população brasileira ganha um salário mínimo por mês. "Não pobres" são pessoas muito parecidas aos "pobres", porque ganham algo em torno disso também. A massa dos benefícios previdenciários, da mesma forma, é composta por um salário mínimo. Ou seja, o grosso da população é afetado por esses reajustes. É por isso que, politicamente, trata-se de um grande erro restringir aumentos do salário mínimo ao invés de se pagar o preço político de fazer o ajuste entre os mais ricos.
BBC News Brasil - Há um argumento comum de que, se um país cresce e o governo possui mecanismos de distribuição justa da renda, a desigualdade cai ou se estabiliza. Mas, em 2024, o Índice de Gini do Brasil foi bastante irregular: subiu do primeiro trimestre para o segundo e, então, caiu no terceiro. Isso tudo em uma economia que está indo bem...
Medeiros - [Interrompe] ... Dizer que a economia está indo bem faz pouco sentido. O PIB, em uma economia de propriedade privada, não é apropriado pelo país. Alguém se apropria disso. A economia pode estar indo muito bem para os ricos e muito mal para os pobres ou vice-versa. São duas coisas completamente diferentes e que podem coexistir dentro da mesma taxa de crescimento. A pergunta a se fazer é: quem está ganhando? Quem está preocupado com desigualdade não olha para a taxa total do crescimento, mas para a distribuição desse crescimento.
BBC News Brasil - A explicação para esse fenômeno do Gini é que a economia dos mais pobres não está crescendo?
Medeiros - O grande determinante do desempenho do mercado de trabalho dos mais pobres é justamente o salário mínimo. Não é o único, obviamente, mas ele é muito importante. A economia brasileira pode crescer, por exemplo, caso o câmbio alto torne a venda da nossa soja mais favorável, mas isso teria pouco efeito distributivo, porque soja não gera emprego, mobiliza pouca gente, etc.
A mesma coisa com petróleo: supondo que ele suba de valor no mercado internacional e faça nosso PIB crescer, porque o vendemos. Pouca gente seria beneficiada, especialmente porque o petróleo não é tributado como deveria. Seria benéfico se ele estivesse pagando impostos sem subsídios, mas como a gente faz essas renúncias, a alta no preço dele, ainda que faça o PIB crescer, não se transforma em estabilidade econômica.
BBC News Brasil - Outra análise sua é que a riqueza dos 0,5% no topo da pirâmide social é muito distante da do resto do país. Essa distância impede qualquer efeito, de qualquer mecanismo, sobre a desigualdade?
Medeiros - Não. Precisaríamos apenas explorar mecanismos técnicos e econômicos que permitiriam fazer isso. O que impede são barreiras de natureza política, porque esses grupos não aceitariam. Eles usariam todos os mecanismos disponíveis para evitar que isso fosse mudado. É assim na própria história humana, não só no Brasil. Essas pessoas tentam derrubar governos, subornar parlamentos, várias coisas. E é claro que elas tomariam medidas radicais para garantir suas vantagens.
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