Apesar da decisão unânime do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pela cassação do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR), juristas divergem sobre se houve correta aplicação da lei da Ficha Limpa.
Na visão do ex-juiz eleitoral Márlon Reis, considerado o "pai" dessa lei, a decisão do TSE foi "irretocável".
Já Marco Aurélio de Mello, ministro aposentado do Superior Tribunal Federal (STF), disse à reportagem estar "perplexo" com a pena imposta, enquanto o jurista Miguel Reale Júnior chamou a decisão de "arbitrária".
Segundo a lei da Ficha Limpa, membros do Ministério Público que tenham sido demitidos ou aposentados compulsoriamente em um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) ficam inelegíveis por oito anos.
Além disso, para evitar que promotores e procuradores pedissem demissão antes da conclusão de um PAD para se livrar da inelegibilidade, a lei também estabelece que essas autoridades não podem disputar eleição caso peçam exoneração com um processo em andamento.
No caso de Dallagnol, não havia PAD aberto quando ele pediu seu desligamento do Ministério Público, em novembro de 2021, visando disputar a eleição de 2022.
O que havia eram dois processos já finalizados, que resultaram em pena de censura e advertência, e outros 15 procedimentos preliminares contra ele que, em tese, poderiam resultar na abertura de novos PADs.
Os sete ministros do TSE votaram pela cassação porque entenderam que Dallagnol pediu exoneração antes do prazo limite para poder disputar a eleição, justamente para evitar a abertura de outros processos administrativos disciplinares que poderiam lhe deixar inelegíveis.
Na visão da Corte Eleitoral, essa conduta do ex-chefe da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba foi uma fraude contra a aplicação da lei da Ficha Limpa.
"Dallagnol antecipou sua exoneração em fraude à lei. Ele se utilizou de subterfúgios para se esquivar de PADs ou outros casos envolvendo suposta improbidade administrativa e lesão aos cofres públicos. Tudo isso porque a gravidade dos fatos poderia levá-lo à demissão", decidiu o ministro Benedito Gonçalves, relator da ação, em voto acompanhado pelos demais.
Dallagnol ainda pode recorrer ao STF, mas é incomum que o Supremo derrube decisões do TSE. A Corte Eleitoral é formada por sete ministros, sendo três deles integrantes do STF – no momento, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Nunes Marques.
Ministro aposentado do STF, Marco Aurélio de Mello criticou a decisão.
"Particularmente, fiquei perplexo com a situação jurídica. Eu tenho sérias dúvidas quanto à constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, que sinaliza no sentido de que o simples processo administrativo gera a inelegibilidade", disse à BBC News Brasil.
"E, pelo que eu li hoje no noticiário, sequer haveria um processo administrativo, e o Tribunal Superior Eleitoral acabou simplesmente imaginando a existência e pré-julgando até o que seria o processo administrativo e declarando a inteligibilidade", disse ainda.
Embora seja crítico da autuação de Dallagnol como procurador, o jurista Reale Júnior também considerou errada a cassação do mandato.
"O TSE, a meu ver, errou. Sempre fui muito crítico ao Dallagnol e sua posição messiânica, que rompeu com regras obrigatórias do processo. Não gosto do trabalho do Deltan, mas gosto menos do arbítrio. A Lei da Ficha Limpa é bastante precisa ao dizer que quem pede exoneração tendo processos administrativos disciplinares pode ser declarado inelegível. Não era o caso do Deltan, que tinha apurações em andamento", disse em entrevista ao portal Uol o ex-ministro da Justiça (no governo de Fernando Henrique Cardoso) e autor do pedido de impeachment que cassou Dilma Rousseff.
"Houve uma decisão unânime e acho muito difícil reverter. O Deltan tem outros críticos no Supremo Tribunal Federal com posições políticas fortes. O país caminha totalmente para um campo de abuso de direito. É um absurdo. Isso não vai ajudar de forma alguma que o país encontre um pouco de harmonia e respeito pela autoridade e pelas instituições. Na base do calor, da paixão, o país não prospera", acrescentou Rele Júnior
Já Márlon Reis disse à BBC News Brasil que a decisão é "irretocável". O ex-juiz participou da elaboração da Lei da Ficha Limpa e da mobilização para aprová-la no Congresso, o que ocorreu em 2010.
Ainda que não houvesse PAD aberto contra o então procurador no momento de sua exoneração, para ele a decisão do TSE está bem fundamentada em mostrar que o pedido de demissão teve intenção de evitar a abertura de um processo que poderia provocar sua inelegibilidade.
Nesse sentido, os ministros da Corte avaliaram a gravidade dos procedimentos preliminares que tramitavam contra Dallagnol e o fato de ele ter se exonerado em novembro de 2021, cinco meses antes do prazo previsto na legislação eleitoral – integrante do Ministério Público é obrigado a se demitir do cargo apenas seis meses antes da eleição.
Outro elemento considerado é que o pedido de exoneração ocorreu dezesseis dias após outro procurador da Lava Jato ser demitido em um processo administrativo disciplinar, por ter pago a instalação de um outdoor em homenagem à força-tarefa.
Para Reis, a decisão do TSE seguiu o "espírito da lei", que busca evitar que autoridades driblem as hipóteses de inelegibilidade.
Ele lembra que, no caso de parlamentares, a Lei da Ficha Limpa deixa inelegível aquele que renunciar ao mandato quando há uma representação para abertura de processo de cassação – ou seja, mesmo antes da abertura do processo, quando ele ainda está em análise.
"O que foi muito bem abordado no voto do relator (ministro Benedito Gonçalves) foi a verificação de que o PAD seria aberto porque as matérias eram muito graves. E com o volume de conhecimento do deputado sobre o tema, ter antecipado o pedido de exoneração para evitar a abertura do PAD poderia ser reconhecido como abuso de direito, fraude à lei ou desvio de finalidade", ressalta.
Não sua visão, isso "autoriza a decisão do tribunal, porque (se isso não gerasse inelegibilidade) daria o poder imenso para pessoas investigadas, de decidir a hora de sair ou não, justamente para não se tornar inelegível".
Letícia Kreuz, professora Substituta de Teoria do Estado da UFMG, também vê elementos suficientes para o TSE considerar que houve fraude à lei por parte do deputado.
Ela considera que alguns trechos da Lei da Ficha Limpa ferem a presunção da inocência, por exemplo ao impedir que pessoa condenada em segunda instância (ou seja, que ainda podem recorrer da sentença) fiquem impedidas de disputar eleição.
No entanto, a professora defende as regras mais duras para inelegibilidade no caso de condutas indevidas de juízes e de membros do Ministério Público, justamente para evitar que autoridades que trabalham com a aplicação das leis atuem de forma política, mirando uma possível eleição.
Na sua visão, seria importante, inclusive, que o Congresso aprovasse uma quarentena mais longa que forçasse essas autoridades a se afastarem dos seus cargos com uma antecedência maior que o limite atual de seis meses.
"São pessoas que estão em cargos com poderes e funções muito importantes, muito específicos dentro dessa estrutura constitucional e, sendo assim, a elas recaem também alguns deveres que diferem dos deveres que outros servidores públicos terão, inclusive alguns ônus quanto a inelegibilidade", explica.
O objetivo, nota a professora, é impedir que essas pessoas possam "instrumentalizar o cargo" politicamente.
"Vamos dizer que essas autoridades tivessem uma atuação política ao longo do cargo e que isso importasse em processos administrativos. E aí elas, simplesmente, após vários atos que contrariam aquilo que se espera do dever funcional, deixam o cargo e concorrem a um cargo eletivo. Nesses casos, elas se beneficiariam justamente do mau comportamento na condição de magistrados e membros do Ministério Público que ensejou", avalia a professora.
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