O total de casos e o de mortes por país na pandemia geram rankings diferentes: EUA e Brasil lideram nos dois casos, mas a coisa muda do terceiro lugar em diante.
Índia, Rússia e África do Sul estão em terceiro, quarto e quinto na contagem de infecções, mas Reino Unido, México e Itália registraram mais mortes. A diferença gera questionamentos e levou os governos britânico e chileno alterar a forma de contar e de informar os dados.
A própria ideia de um ranking está em xeque, pois não existe uma padronização sobre como as mortes devem ser averiguadas. Há apenas recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde) - e não uma auditoria internacional sobre os números.
Isso abre espaço para distorções involuntárias e para que regimes autoritários escondam dados indesejados.
Mesmo em situações normais, a contagem de óbitos varia. Há registros nos cartórios e dos órgãos de saúde, e pode ocorrer divergência.
No Chile, a soma diária de vítimas de Covid-19 era feita com dados de cartórios. Em julho, passou a se basear em um relatório de um departamento de estatísticas em saúde.
"Na maioria dos países, a concepção desses sistemas de informação sobre mortes não permite ter informação em tempo real e não foi feito para emergências", avalia Eliseu Waldman, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP. "Os dados costumam ser confiáveis, mas morosos. Para ter as coisas rápido, é preciso fazer adaptações."
A demora ocorre porque pode levar tempo para confirmar a causa da morte, como nos casos em que um resultado de coronavírus chega depois do enterro.
No Brasil, em casos de suspeita de Covid-19, o prontuário fica em aberto até um funcionário dos serviços de vigilância epidemiológica checar o resultado e atualizá-lo.
"É um trabalho manual, pois os sistemas de óbitos e dos resultados de laboratórios não se conversam", explica Marcelo Gomes, coordenador do Infogripe (sistema nacional de monitoramento de doenças respiratórias, ligado ao Ministério da Saúde) e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz.
Aqui, o registro é feito pelas secretarias municipais de saúde, que os enviam para sistemas estaduais e federais.
Em uma tentativa de agilizar o processo, a contagem de mortes na Inglaterra era feita com o cruzamento de duas listas: a de testes positivos para Covid-19 e a de mortes. Quando uma pessoa que teve o vírus morria, mesmo que meses após o diagnóstico, entrava para a conta de vítimas.
"Por esse método, ninguém jamais poderia se curar da Covid-19", questionaram os professores Yoon Loke, da universidade de East Anglia, e Carl Heneghan, de Oxford.
Em 17 de julho, o ministro da Saúde britânico anunciou uma revisão dos dados a contagem feita até então contraria determinação da OMS.
A entidade criou um guia, cujas diretrizes o Brasil adotou, sobre como relatar as mortes por Covid-19.
O material prevê três situações. Na primeira, entram pessoas com teste positivo que morreram por complicações da Covid-19, como pneumonia. Assim, o atestado deve apontar a causa da morte (Síndrome Respiratória Aguda Grave, por exemplo) e os fatores que a causaram (Covid-19).
No segundo caso, o paciente tem muitos sinais de Covid-19, mas não foi feito um teste. A OMS recomenda registrar como "diagnóstico clínico". Se houver confirmação depois, o registro muda.
Na terceira situação, a pessoa pegou Covid-19, mas a infecção não teve relação com a morte um paciente que sofreu um acidente após o diagnóstico, por exemplo. A OMS indica que essa morte não pode ser atribuída à pandemia.
Essas regras enfrentam uma série de obstáculos. Em um paciente acometido por vários problemas, pode ser difícil definir qual deles teve maior peso. A questão se agrava em UTIs lotadas, com equipes sobrecarregadas, que precisam registrar as mortes em meio a tarefas mais urgentes.
Outro ponto é que são feitos poucos testes. Alguns países só o aplicam em casos graves e que chegam aos hospitais. O Reino Unido levou semanas para incluir na conta as mortes em asilos, por exemplo.
A contagem de óbitos é ainda mais complicada onde não há sistemas eficientes de registros nem fora da crise sanitária, como em parte da África. Em lugares pobres sem acesso a médicos, aumentam as chances de que as pessoas morram sem diagnóstico.
O jornal The Washington Post mostrou que na Índia, em tempos normais, até 20% das mortes não são nunca registradas, a maioria por ocorrerem em áreas rurais.
O governo indiano, do nacionalista Narendra Modi, cita o baixo número de mortes (33 mil diante de 1,4 milhão de casos) como sinal de que o país lida com a doença melhor do que os outros e que é menos afetado por ter muitos jovens.
Na Rússia, terceira do ranking global de casos, foram registradas 13 mil mortes em meio a mais de 800 mil infectados. O governo também defende que o número se deve a uma boa gestão da crise.
"Países com tendências autocráticas têm mecanismos de contagem de mortes programados para subestimar os dados", diz Waldman, da USP.
No Brasil, o governo de Jair Bolsonaro buscou dificultar a divulgação dos dados diários em junho. Depois disso, um consórcio de veículos de imprensa passou a somar os números das secretarias estaduais e a divulgar boletins todos os dias.
Nos EUA, a falta de coordenação federal levou os estados a adotarem métricas diferentes entre si para avaliar o avanço da doença. A entidade Prevent Epidemics, com sede em Nova York, defende o uso de 15 critérios para monitorar a situação e avalia que nenhum dos 50 estados americanos os atende de forma completa.
No Colorado, um legislador republicano acusou o estado de inflar os dados. Na Flórida, há suspeitas contrárias: reportagens apontam que o governo estadual tem ocultado números.
Em geral, especialistas concordam que as informações sobre infectados e mortos pelo novo coronavírus pelo mundo estão subestimados e deverão aumentar conforme forem feitas revisões.
"Nós definitivamente pensamos que há mortes que não foram contadas", disse Jennifer Nuzzo, pesquisadora da universidade John Hopkins, ao New York Times.
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