“A Argentina começou o século 20 como o país mais rico do mundo e hoje tem 40% de pobres e 10% de indigentes.”
Esta frase, repetida diversas vezes durante a campanha presidencial pelo economista “libertário” Javier Milei – que lidera as pesquisas para as eleições deste domingo (22/10) – reproduz um conceito que está impregnado no subconsciente dos argentinos: esta nação, submersa há décadas em sucessivas crises econômicas, já soube ser uma superpotência.
Vários apelidos remetem a esse passado glorioso. O mais famoso é “celeiro do mundo”, uma referência ao poderoso modelo agroexportador que enriqueceu a Argentina há um século e hoje continua a ser o seu principal suporte econômico.
Há também “a Paris da América do Sul”, uma alusão à arquitetura de estilo europeu da capital argentina, hoje em desarmonia com a realidade de um país onde 56% das crianças são pobres.
Essas frases nostálgicas são lembranças de uma época de ouro que muitos no país idealizam. E que alguns políticos, como Milei, prometem resgatar.
“A Argentina pode voltar a ser uma potência mundial”, afirma repetidamente o economista ultraliberal.
“Se aplicarmos todas as reformas pró-mercado, nos primeiros 15 anos poderemos parecer com a Itália ou a França; em 20 anos como a Alemanha; em 35 anos como os Estados Unidos”, diz ele.
Ele não é o primeiro político a entusiasmar eleitores com promessas de volta a esse passado próspero.
O ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019) – cujo campo político é representado nestas eleições pela candidata Patricia Bullrich – propôs na época transformar a Argentina numa “nova Austrália”, um país que na primeira parte do século XX teve uma trajetória econômica semelhante à Argentina, mas que conseguiu se manter no caminho do desenvolvimento, algo que muitos argentinos tomam como exemplo do que sua nação deveria ter feito.
Mas será que a Argentina era realmente o país mais rico do mundo?
E como passou de uma das nações mais prósperas a um dos países com a maior inflação do planeta?
Comparar a riqueza de diferentes países é tarefa complexa, mas a maioria dos especialistas considera que a melhor forma de fazê-lo é medir o Produto Interno Bruto por habitante (PIB per capita, ou PIBpc).
Dado que o PIB dos países periféricos, como a Argentina, só começou a ser medido oficialmente em meados do século XX, informações anteriores a esse período devem ser vistas com cautela.
No entanto, economistas de várias ideologias concordam que a fonte mais confiável é a base de dados do Projeto Maddison, que usa diferentes estatísticas econômicas históricas para estimar o PIBpc no passado.
Em 2018, esta série estatística - criada pelo economista britânico Angus Maddison e mantida, até hoje, pela Universidade de Groningen, na Holanda - estimou que a Argentina foi o país mais rico do mundo em 1896, e que permaneceu entre os mais ricos nas primeiras décadas do século XX.
No entanto, a metodologia utilizada foi questionada por muitos historiadores econômicos, levando à publicação de uma nova série estatística em 2020 que tirou o troféu de número 1 do país sul-americano, relegando-o para o sexto lugar em 1896.
De qualquer forma, esta edição – que ainda é a mais atual – confirma que a Argentina começou o século XX como uma das nações mais ricas do mundo, uma prosperidade que a levou a estar no “top 10” das nações ricas até a Primeira Guerra Mundial (1914-18).
A partir daí, o país declinaria até atingir o atual 66º lugar.
Em 1913, antes do início da Primeira Guerra, o PIBpc da Argentina era de US$ 6.052 (a preços em dólares de 2011), segundo cálculos do Projeto Maddison.
Isso era menos que o PIBpc dos Estados Unidos (US$ 10.108), do Reino Unido (US$ 8.212) e da Austrália (US$ 8.220).
Mas era o dobro da Espanha (US$ 3.067), da qual se tornou independente há quase um século, e superior à da Alemanha (US$ 5.815), da França (US$ 5.555) e da Itália (US$ 4.057), entre outras nações europeias.
Foi também muito superior ao rendimento dos países asiáticos que hoje dominam a economia, como a China (US$ 985) e o Japão (US$ 2.431).
E este não era um fenômeno regional, como mostram os índices dos seus vizinhos e de outros países latino-americanos como o Uruguai (US$ 4.838 ), o Chile (US$ 4.836), o México (US$ 2.004) e o Brasil (US$ 1.046).
Então, quando foi que a Argentina começou a perder seu lugar privilegiado no mundo e por quê?
Se observarmos como o PIB por habitante evoluiu no mundo no século passado, veremos que a posição da Argentina no ranking mundial tem caído constantemente ao longo dos últimos cem anos.
Embora a riqueza de todos os países – incluindo a Argentina – tenha aumentado ao longo do tempo, a nação sul-americana começou o século XX com a renda de um país rico e aos poucos foi ficando cada vez mais relegada na tabela internacional.
Muitos chamam o fenômeno de “os 100 anos de declínio argentino” e afirmam que este é o único exemplo no mundo de um país que passou de desenvolvido a em desenvolvimento.
Alguns até usam o caso argentino para ensinar o que não fazer.
Isto foi feito pela revista britânica The Economist, que em 2014 publicou uma famosa reportagem de capa intitulada “A Parábola da Argentina”, na qual explicava “o que outros países podem aprender com um século de declínio”.
O artigo apontava claramente um culpado pela queda: o peronismo, o movimento político fundado por Juan Domingo Perón e sua esposa, Eva Duarte (a famosa "Evita"), que desde 1946 foi principal força a governar a Argentina.
Segundo a revista, o peronismo gerou “uma sucessão de populistas economicamente analfabetos” que levaram a Argentina “à ruína”.
Esta é uma opinião amplamente difundida entre setores liberais do país sul-americano.
Mas será verdade?
O economista Fausto Spotorno é vice-presidente da Fundação Norte e Sul, dedicada a questões de desenvolvimento, e compilou as estatísticas econômicas da Argentina desde sua fundação em 1810 até 2018.
Spotorno disse à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC, que “os dados mostram que o crescimento econômico argentino começou a desacelerar a partir de 1930”, quando o país sofreu um duplo golpe: os impactos da crise internacional, devido à quebra da bolsa de Wall Street, e seu primeiro golpe de Estado militar.
No entanto, ele observou: “Fica claro pelos números que as coisas começaram a ficar complicadas depois do peronismo”.
“A Argentina se assemelhava a uma economia desenvolvida, em termos de padrão de vida, renda per capita e taxa de crescimento, até 1946”, explicou. Ou seja: até a chegada de Perón.
“É aí que a inflação começa a aparecer”, disse ele, referindo-se ao problema mais persistente enfrentado pela Argentina.
Embora o país já tivesse tido aumentos de preços antes, esclareceu, a partir desse momento eles subiram para além de 20% pela primeira vez.
E por que a inflação começou a subir?
“Porque os gastos aumentaram muito”, explicou o economista, que destacou que “a Argentina tinha gastos públicos de 8,5% do PIB e na segunda metade da década de 1940 e isso aumentou para 12%”.
No entanto, Spotorno esclareceu que muitos dos problemas que Perón enfrentou surgiram antes da sua chegada e foram agravados pelo contexto internacional desfavorável que a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) trouxe.
Os países europeus para os quais a Argentina exportava produtos de sua agricultura atrasaram pagamentos, afirmou. E o país, que durante décadas teve um superávit primário - isto é, mais receitas do que despesas - "começou a ter um deficit na década de 1940".
Este rombo não poderia ser resolvido – como fizeram os governos anteriores – com empréstimos externos, também por causa da guerra, disse o especialista.
Mas estas limitações não frearam Perón, que, apesar do contexto, aumentou drasticamente os gastos sociais.
“A Argentina aumentou as despesas sem poder financiá-las”, disse Spotorno.
“Perón nacionalizou o Banco Central para poder imprimir dinheiro, o que desencadeou a inflação.”
Esse problema (gastar mais do que se tem) foi piorando a cada governo posterior, explicou o economista.
E as soluções adotadas por todos - seja emitindo mais dinheiro ou solicitando mais empréstimos - foram o que levou a Argentina a se tornar um dos países com mais inflação e mais incumprimentos (ou cessação de pagamentos de dívidas - os famosos calotes) do mundo.
Mas muitos também dizem que seria injusto dizer que a Argentina “perdeu o rumo” por causa do peronismo.
Afinal, as potências com as quais o país conviveu no início do século se beneficiaram pelo Plano Marshall, que depois da Segunda Guerra lhes permitiu regressar ao caminho do desenvolvimento.
Em contraposição, a Argentina, que demorou a declarar guerra à Alemanha e ao Japão, foi excluída dos mercados europeus.
Quanto à inflação, economistas lembram que Perón conseguiu reduzi-la para menos de 4% antes de ser derrubado por um golpe de Estado em 1955.
E observam que, depois desse acontecimento, o peronismo foi banido por mais de 18 anos.
Acadêmicos como Eugenio Díaz Bonilla, economista e professor da Universidade George Washington, destacam que se compararmos a trajetória econômica da Argentina com a da Austrália - que sofreu os mesmos ataques internacionais e não foi incluída no Plano Marshall - pode-se perceber que o verdadeiro colapso do país sul-americano não teria ocorrido com a ascensão do peronismo, mas décadas depois, com a chegada do último regime militar, que aplicou políticas neoliberais.
“Se compararmos os dois países tomando como referência a distância em relação à renda per capita dos Estados Unidos, vemos que a relação permanece entre 1900 e 1975. A mudança ocorreu com o golpe de 1976”, disse Díaz Bonilla à BBC Mundo após a polêmica gerada pela revista The Economist.
O historiador argentino Ezequiel Adamovsky concluiu o mesmo.
“Nos trinta anos após 1945, a Argentina dobrou sua renda per capita e expandiu seu PIB a taxas superiores às dos Estados Unidos e também às do Reino Unido, Austrália ou Nova Zelândia (embora tenha sido superada pelos de alguns países europeus)", observou numa coluna de opinião no jornal El Diario AR.
“Com todos os seus problemas, a economia argentina crescia a um ritmo mais rápido do que o das principais potências ocidentais”, observou.
“Só em 1975 é que a economia local sofreu um declínio abrupto e perdeu terreno em comparação não só com os países mais avançados, mas praticamente com o mundo inteiro. Desde 1975, sim, pode-se dizer que o país sofreu um declínio”, escreveu ele, em referência a um período marcado pela crise de hiperinflação.
Mas há algo com que analistas de várias ideologias concordam: para além das falhas de governos específicos, o problema subjacente que afetou a Argentina é uma instabilidade institucional que levou a seis golpes de Estado no século XX.
Neste ano, o país está comemorando, pela primeira vez, 40 anos ininterruptos de democracia.
Uma pesquisa conduzida pelo professor de economia da Universidade de Liubliana, Rok Spruk, destacou que esta fraqueza existe desde o início.
“Em comparação com EUA, Canadá e Austrália, a Argentina nunca completou a transição para uma democracia aberta sustentada pelo Estado Democrático de Direito”, escreveu Rok num artigo intitulado “The Rise and Fall of Argentina” (A ascensão e queda da Argentina, em tradução direta), publicado em 2019 na revista Latin American Economic Review.
“Quando os militares quebraram formalmente a ordem constitucional em 1930, a Argentina embarcou no caminho do desenvolvimento institucional instável e das frequentes transições de idas e vindas entre ditadura e democracia.”
“Em vez de embarcar no caminho do desenvolvimento institucional sustentado, a Argentina sofreu uma fraude eleitoral tumultuada com uma quase erosão do sistema de freios e contrapesos que precipitou a ascensão de líderes populistas”.
Spotorno diz que esta instabilidade democrática fez com que a Argentina perdesse a atratividade que tinha no final do século XIX e início do XX.
“Se há um golpe de Estado volta e meia e as instituições são violadas, obviamente os investimentos começam a bambear”, disse ele.
Para o economista, a Argentina começou a sofrer um declínio “quando duas coisas deixaram de ser respeitadas: as instituições e a relação básica entre receitas e despesas do Estado”.
“A falta de instituições permitiu que os governos procurassem sempre atalhos, em vez de fazerem as coisas direito, e isso culminou em sucessivas crises fiscais.”
“O país viveu um momento de ordem, entre 1860 e 1930, onde todos estavam concentrados no mesmo lado”, resume. "Depois disso, tudo se resumia a encontrar atalhos e gastos excessivos."
Há outro fator que vários especialistas destacam e que ajuda a compreender a dificuldade que a Argentina teve em decolar economicamente no último século.
O país não tem sido apenas um pêndulo político, oscilando entre democracias e governos autoritários.
Também tem ido e vindo com as suas políticas econômicas, saltando - sem parar - do nacionalismo ao neoliberalismo, do proteccionismo ao mercado livre, da ortodoxia à heterodoxia... em um vaivém interminável que ocorreu mesmo em diferentes governos do mesmo partido.
As pesquisadoras Valeria Arza e Wendy Brau, do Centro de Pesquisas da Transformação (Cenit), analisaram em 2021 “o pêndulo argentino em números” – ou seja, quantas vezes a política econômica oscilou – e constataram que nas seis décadas entre 1955 e 2018 houve houve mais de 30 mudanças de rumo, das quais 16 foram “mudanças radicais”.
Também revelaram outras evidências da falta de continuidade da política econômica argentina: “em média, os ministros da economia duraram 13 meses no cargo” durante esse período.
“A característica dominante da política econômica é a oscilação extrema”, resumiu Adamovsky na revista Anfibia.
Poucos exemplos desta característica podem ser tão claros quanto as diferentes noções sobre o papel do Estado na economia que defendem os três candidatos com mais chances de vitória no próximo domingo.
Sergio Massa, terceiro ministro da Economia do atual governo peronista, concorre à presidência com promessas de manter um Estado forte, enquanto Patricia Bullrich promete encolhê-lo e Javier Milei ameaça destruí-lo.
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