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Espanha inventou racismo de hoje e tenta se provar mais branca, diz presidente de conselho do governo espanhol

Espanha inventou racismo de hoje e tenta se provar mais branca, diz presidente de conselho do governo espanhol

Para presidente de conselho contra discriminação na Espanha, a legislação em vigor é muito deficitária e governo precisa fazer mais contra o racismo

Publicado em 23 de maio de 2023 às 10:52

Ícone - Tempo de Leitura 8min de leitura
Imagem BBC Brasil
Vini Jr. tem sido vítima de ataques racistas durante jogos do campeonato espanhol. (Getty Images)

A Espanha tem uma longa tradição de racismo e a legislação em vigor atualmente não dá conta de fiscalizar e punir agressores de forma compatível, afirmou à BBC News Brasil o presidente do Conselho para Eliminação da Discriminação Racial ou Étnica (Cedre) do Ministério da Igualdade espanhol, Antumi Toasijé, diante dos últimos ataques sofridos pelo jogador brasileiro Vinícius Júnior em uma partida no domingo (21/5).

“O racismo tem uma longa tradição na Espanha”, diz o historiador e professor da New York University em Madri. “Mas estamos vivendo um momento de retrocesso.”

Segundo Toasijé, de origem hispano-colombiana, as normas em vigor do país não são suficientemente fortes para dar conta do crescimento do racismo e da extrema direita — e uma lei específica contra esse tipo de discriminação deve ser aprovada urgentemente.

Além disso, de acordo com o historiador, a Espanha basicamente “inventou o racismo como conhecemos hoje” durante as disputas entre cristãos e mouros da Península Ibérica na Idade Média e perpetuou por muitos anos uma política racista contra imigrantes do norte da África. Mais recentemente, ele diz, a Espanha desenvolveu uma necessidade cada vez mais forte de “provar sua branquitude”, ao se sentir excluída do restante da Europa.

Para Toasijé, esse passado está refletido diretamente na discriminação contra afrodescendentes imposta pela sociedade espanhola até hoje.

Segundo dados da Federação SOS Racismo, formada por organizações autônomas que lutam contra o racismo na Espanha, as denúncias de discriminação racial cresceram mais de 30% entre 2013 e 2021 no país.

Na prática, os casos podem ser ainda mais volumosos: segundo uma pesquisa realizada pelo Cedre, 81,8% das vítimas de racismo na Espanha não prestam queixa às autoridades.

“À medida que a extrema direita ganha espaço, criam-se todos os elementos para o crescimento exponencial do racismo em nossa sociedade — e a qualquer momento pode haver uma explosão.”

“Isso é muito problemático e o governo espanhol tem que fazer mais, especialmente no marco legislativo, porque as leis são deficitárias”, diz.

Ainda segundo o historiador, os atos de racismo que têm se repetido no futebol espanhol estão repercutindo em outros âmbitos da sociedade, especialmente entre os mais jovens.

“Os insultos proferidos contra o Vinícius têm impacto na juventude e se repetem nas escolas, por exemplo, contra crianças negras que jogam futebol”, diz o especialista. “O racismo contra uma pessoa pública se multiplica muito rapidamente.”

No domingo (21/5), a disputa entre Valencia e Real Madrid pelo Campeonato Espanhol foi interrompida no segundo tempo após parte da torcida presente no estádio Mestalla chamar o brasileiro de "macaco".

Nesta segunda-feira (22/5), o Real Madrid apresentou uma denúncia na Procuradoria-Geral da Espanha por delitos de ódio e discriminação contra seu jogador.

'Legislação deficitária'

Para Antumi Toasijé, os esforços de atendimento a vítimas de racismo empreendidos pelo Conselho para Eliminação da Discriminação Racial ou Étnica, que coordena, “são dificultadas pela inexistência de leis precisas e concretas”.

Segundo ele, não só as legislações existentes hoje na Espanha são dispersas e pouco efetivas, como a normativa que diz respeito a casos de discriminação no esporte é fraca e negligenciada pelas autoridades.

Imagem BBC Brasil
Ação contra o racismo antes de um jogo da Bundesliga, liga profissional de futebol da Alemanha. (Getty Images)

“Há uma lei contra o racismo no esporte, mas ela não oferece mecanismos imediatos de ação e se tornou totalmente obsoleta”, afirma o presidente do Cedre.

“Em um caso como o do Vinícius Júnior, está estabelecido que se deve paralisar por completo a competição, mas isso não está acontecendo. As punições aos indivíduos que cometem esse tipo de agressão também são muito escassas”.

Ainda segundo Toasijé, muitos árbitros não colaboram para os cumprimentos das normas por não entenderem o impacto e a periculosidade das ações de alguns torcedores.

A lei 19/2007, de 11 de julho de 2007, estabelece, entre outras coisas, que os juízes podem decidir a suspensão provisória das partidas para o “restabelecimento da legalidade”. A normativa também prevê multas de 150 a 650 mil euros, proibição de frequentar estádios por até cinco anos para os infratores e suspensão do direito de sediar eventos desportivos por um período máximo de dois anos para os organizadores.

“Mas não se aplica praticamente nada dessa lei. Se ela fosse cumprida, já seria um avanço”, diz o especialista

Já a legislação geral contra casos de racismo trata a maior parte dos delitos como crime de ódio, especialmente em casos de assédio ou ameaças contra uma coletividade, ou como crime de injúria ou calúnia. Mas segundo o presidente do Cedre, as denúncias feitas pelos clubes à Procuradoria-Geral muitas vezes não são levadas adiante.

Em comparação, o Brasil sancionou em janeiro deste ano uma lei que tipifica como crime de racismo a injúria racial — enquanto o racismo é entendido como um crime contra a coletividade, a injúria é direcionada ao indivíduo.

Com a mudança na lei, as condutas tipificadas como injúria passam a ser inafiançáveis e imprescritíveis. A pena para quem cometer o crime, até então de 1 a 3 anos de reclusão, pode variar de 2 a 5 anos de prisão.

Já no âmbito esportivo, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) definiu que clubes poderão perder pontos por atos cometidos por seus torcedores, entre eles ações racistas.

Imagem BBC Brasil
Ação contra o racismo em jogo do Flamengo e Grêmio em 2014. (Getty Images)

Para Antumi Toasijé, outros países europeus como Alemanha, França e Reino Unido também têm legislações mais abrangentes e preparadas para lidar com casos de racismo no esporte e em outras circunstâncias do que a Espanha.

“Cada país tem seus desafios e não há país perfeito na luta contra o racismo, mas isso não significa que a Espanha tenha que fazer muito mais esforços”, diz.

Em nota divulgada à imprensa, a Comissão Estatal contra a Violência, o Racismo, a Xenofobia e a Intolerância no Esporte, parte do Ministério da Cultura e Esporte da Espanha, repudiou os atos de racismo contra Vini Jr. e afirmou que analisa as imagens disponíveis para identificar os autores das injúrias “de forma a propor as respectivas sanções”.

“A Comissão considera necessária a colaboração dos clubes na identificação dos autores destes comportamentos execráveis ​​e, também, quer transmitir-lhes a necessidade de trabalhar na prevenção para combater a violência com suas torcidas face à indesejável normalização de comportamentos e insultos que estão muito distantes da boa ordem desportiva e prejudicam gravemente a imagem do nosso futebol e do esporte espanhol.”

Histórico de racismo

“A Espanha é provavelmente o país que inventou o racismo como conhecemos hoje”, diz Antumi Toasijé.

Segundo o professor da New York University em Madri, a Península Ibérica foi palco de uma intensa luta entre muçulmanos e cristãos na Idade Média, durante a qual “se perpetuou uma narrativa racista que não existia até aquele momento no resto da Europa”.

“Essa narrativa basicamente difundia a ideia da superioridade das pessoas brancas e cristãs”, diz o historiador. “Ela não só foi apoiada pela Monarquia e Igreja Católica, como resultou em uma série de leis que tinham como objetivo final o embranquecimento da Península.”

Entre essas políticas, estavam as práticas conhecidas como "limpeza do sangue", segundo as quais pessoas que possuíam antepassados não-brancos eram excluídas da sociedade.

Alguns desses costumes foram mantidos até o século 19 e, especialmente no período de colonização nas Américas, estabeleceu-se um sistema de castas que classificava e privilegiava os cidadãos de acordo com a cor de sua pele.

Imagem BBC Brasil
Pintura de Pere Oromig e Francisco Peralta retrata embarque de mouros em porto na região de Valência após movimento de expulsão dos muçulmanos da Península Ibérica. (PHAS/Universal Images Group via Getty Images)

Mas na história mais recente, segundo Toasijé, a população espanhola passou a se sentir excluída do restante da Europa por seu passado étnico e desenvolveu uma necessidade cada vez mais forte de “provar sua branquitude”.

“Com a entrada na União Europeia na década de 1980, a Espanha reafirma sua posição europeia e começa a estabelecer políticas muito agressivas em sua fronteira com a África e contra imigrantes africanos”, diz o historiador. “E até hoje imigrantes e refugiados afrodescendentes são tratados de forma diferente”.

“Historicamente, a Espanha conserva a ideia de que espanhol, branco e cristão são sinônimos.”

Repercussão

O caso envolvendo o jogador brasileiro virou assunto principal na Espanha e em outros países pelo mundo.

Após a partida, Vini Jr. afirmou pelas redes sociais que essa “não foi a primeira vez, nem a segunda e nem a terceira” que passou por situação semelhante.

Vini Jr. também acusou a primeira divisão da liga espanhola de futebol profissional de omissão. “O racismo é o normal na La Liga. A competição acha normal, a Federação também e os adversários incentivam. Lamento muito. O campeonato que já foi de Ronaldinho, Ronaldo, Cristiano e Messi hoje é dos racistas”, escreveu no Twitter.

“Lamento pelos espanhóis que não concordam, mas hoje, no Brasil, a Espanha é conhecida como um país de racistas. E, infelizmente, por tudo o que acontece a cada semana, não tenho como defender. Eu concordo.”

O presidente da La Liga, Javier Tebas, rebateu as críticas e afirmou que "nem a Espanha, nem a La Liga são racistas". Já o presidente da Federação Espanhola de Futebol, Luís Rubiales, defendeu Vini Jr. e afirmou que há, sim, um "problema com racismo em nosso país".

Imagem BBC Brasil
Este foi o décimo episódio noticiado como racismo contra Vinícius Junior na Espanha. (Getty Images)

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) também se pronunciou. "Não é possível que quase no meio do século 21 a gente tenha o preconceito racial ganhando força em vários estádios de futebol na Europa", disse.

"É importante que a Fifa e a liga espanhola tomem sérias providências, porque nós não podemos permitir que o fascismo e o racismo tomem conta dos estádios de futebol", acrescentou.

No domingo, o Ministério da Igualdade Racial afirmou que vai notificar autoridades espanholas e a La Liga após os ataques racistas.

Segundo o portal de notícias G1, o Ministério de Relações Exteriores também decidiu convocar a embaixadora da Espanha no Brasil, Mar Fernández-Palacios, para pedir explicações.

Em nota conjunta, os ministérios das Relações Exteriores, Igualdade Racial, Justiça e Segurança Pública, Esporte, e Direitos Humanos e Cidadania instaram ainda as autoridades governamentais e esportivas da Espanha a tomarem “as providências necessárias, a fim de punir os perpetradores e evitar a recorrência desses atos”.

O governo brasileiro também dirigiu seu apelo à Fifa (Federação Internacional de Futebol), à Federação Espanhola e à La Liga.

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