Um controverso estudo francês publicado na semana passada sugerindo que a nicotina possa ter efeito protetor contra o novo coronavírus causou alarde na comunidade científica internacional.
A partir de uma revisão de artigos recentes e da observação de casos em um hospital francês, o trabalho apontou a baixa da taxa de fumantes entre os pacientes de Covid-19 (5% entre um total de 500 analisados).
Outros pequenos estudos já tinham observado que o índice de tabagistas entre os infectados varia entre 1,4% e 12,5%. Mas são meras associações, já que nenhum ensaio clínico controlado sobre o tema foi publicado até agora.
A hipótese levantada pelos pesquisadores é de que o vírus não consiga penetrar na célula porque a nicotina está usando o mesmo receptor celular.
No entanto, especialistas no assunto rebatem essas conclusões. Para eles, há uma grande fragilidade científica no trabalho francês e não é possível apontar nenhum benefício associado ao tabagismo.
Além de não ser controlado, o trabalho foi publicado em um periódico não indexado em bases de dados científicas e não passou por revisão de experts.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) também tem publicado informes dando conta de que "as evidências atuais sugerem que a gravidade da Covid é maior entre os fumantes".
Um relatório de março do Centro Europeu de Controle de Doenças (ECDC) identificou os fumantes como um "grupo vulnerável" à infecção pela Covid-19.
Para a OMS, muitos fumantes também já podem ter doença pulmonar ou capacidade pulmonar reduzida, o que aumentaria muito o risco da forma grave da Covid-19.
O consumo de tabaco mata cerca de 8 milhões de pessoas todos os anos. Os efeitos nocivos à saúde, como câncer ou ataques cardíacos, são irrefutáveis.
Em entrevista à agência AFP, o grupo francês disse que pretende seguir com o estudo e administrar adesivos de nicotina em três ensaios clínicos.
Um deles, preventivo, será voltado a profissionais da saúde e terá como objetivo identificar o papel protetor da substância.
Os outros dois pretendem estudar o eventual papel terapêutico da substância no tratamento de pacientes hospitalizados e doentes mais graves em unidades de terapia intensiva. Essa fase depende de autorização e de apoio do Ministério da Saúde francês.
É a segunda vez que a França se vê envolvida em estudos polêmicos durante a pandemia de Covid-19 e em ambas pela mesma razão: a publicação de trabalhos que fogem ao chamado padrão ouro da ciência, que são os estudos controlados randomizados duplo-cegos, ou seja, nem os pesquisadores nem os pacientes sabem se estão tomando o medicamento ou o placebo, para evitar viés.
A primeira situação envolveu o estudo do infectologista francês Didier Raoult que apontou benefícios no uso da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19, mas foi mundialmente criticado por cientistas.
Em 3 de abril, a sociedade científica responsável pelo periódico que o publicou, a International Society of Antimicrobial Chemotherapy, disse que a pesquisa "não atendia aos padrões esperados, especialmente pela falta de explicações dos critérios de inclusão e triagem dos pacientes."
Na comunidade científica, há uma percepção de que, em razão da emergência do coronavírus, estão sendo publicados artigos sem revisão ou de modo mais apressado e que jamais seriam publicados em situações normais.
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