Uma disputa muito mais apertada que a prevista pela Presidência dos Estados Unidos deu status de urgência a algo que vinha sendo tratado como uma vaga intenção da União Europeia: conquistar autonomia estratégica em relação às duas potências globais, China e EUA.
Seis horas à frente do horário de Washington, a Europa acordou na quarta-feira (4) quando a apuração noturna nos EUA mostrava vitórias do presidente Donald Trump em estados importantes como Flórida e Texas e avanços na chamada "parede azul" de Wisconsin, Michigan e Pensilvânia.
No meio do dia, um post em rede social resumiu o recado ouvido em vários países e diferentes correntes políticas. "Qualquer que seja o resultado final, a Europa precisa crescer, e crescer rápido", escreveu a eurodeputada holandesa Sophie in't Veld, do grupo de centro Renova Europa.
"Em qualquer caso, a Europa tem seus próprios interesses a representar", afirmou à TV o ministro da maior economia europeia, o alemão Peter Altmaier. "É chegada a hora de a Europa assumir suas responsabilidades", ecoou em uma rádio francesa Bruno Le Maire, ministro da Economia da França, um dos países mais envolvidos em conflitos com Trump.
Com os números mostrando maior chance para o democrata Joe Biden no começo da noite, persistia a sensação de alguém que escapou de um acidente sério e ainda oscila entre alívio e choque.
O fantasma de uma reeleição de Trump deveria ser "o impulso que faltava para que os europeus deixem de falar apenas em soberania e comecem a agir", defendeu Susi Dennison, diretora do programa European Power do Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR).
"Vale para a digitalização e a proteção do clima, os investimentos em nossa segurança e na construção da Europa após a crise da Covid-19", disse em um seminário online Martin Selmayr, chefe da representação da Comissão Europeia na Áustria.
Se os europeus antes podiam contar com o socorro americano, "isso acabou para sempre", disse Selmayr: "Nenhum presidente dos EUA fará o trabalho pela Europa. Não há como voltar para a zona de conforto".
Apesar do abuso da expressão "seja qual for o resultado", porém, o resultado afeta várias das prioridades europeias em áreas como meio ambiente, liberdades individuais, multilateralismo, regulação e tecnologia.
A derrota de Trump enfraquece líderes autocratas como o premiê da Hungria, Viktor Orbán, e o líder do partido governista polonês, o vice-primeiro-ministro Jaroslaw Kaczynski, envolvidos em disputas com a União Europeia pelo respeito ao Estado de Direito.
Também esfria o discurso populista ou francamente xenófobo, como o da expoente da extrema-direita francesa Marine Le Pen, que não escondia sua preferência por Trump: "Um líder que clama pelo retorno da nação, do patriotismo, das fronteiras e da soberania está caminhando na mesma direção da história".
Vários políticos europeus ressaltaram na internet a importância de fortalecer os valores do bloco para evitar uma corrosão da democracia como a que enxergaram na possibilidade de vitória do republicano.
O ex-premiê da Bélgica Guy Verhofstadt afirmou ver "o caos do outro lado do Atlântico", o que tornou clara "a importância da união em um mundo incerto": "A UE precisa assumir o controle de seu próprio destino".
A derrota de Trump é um alívio para organizações multilaterais importantes como as Nações Unidas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), com reflexos em blocos baseados na cooperação multilateral, como a União Europeia.
Abertamente antimultilateralismo, Trump tirou os EUA do Acordo do Clima de Paris e ameaçou sair da Otan (aliança militar entre países europeus e norte-americanos). Também cortou o financiamento à Organização Mundial da Saúde em plena pandemia de Covid-19, e seu projeto orçamentário previa condicionar programas de ajuda externa a compromissos com interesses americanos.
É esperado que Biden também defenda os interesses dos EUA nas negociações internacionais, mas ele já declarou na campanha que o país não pode enfrentar seus desafios sem cooperação de instituições internacionais e parceria com aliados.
Em entrevista à imprensa alemã nesta sexta (6), o ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Heiko Maas, afirmou que o Ocidente "deve voltar a jogar como um time novamente".
A eleição de Biden dá um cavalo de pau na política americana em relação ao meio ambiente, uma das prioridades europeias. O democrata prometeu recolocar os Estados Unidos no Acordo de Paris em seu primeiro dia de mandato, introduzir uma meta de zero emissões líquidas para os EUA até 2050 e investir US$ 2 trilhões em um pacote de estímulo climático.
Para o ministro alemão, Heiko Maas, "ter o país com a segunda maior emissão a bordo seria muito, muito importante".
A Europa e os EUA se envolveram em vários conflitos nos últimos anos sobre regulação e tributação das companhias de tecnologia americanas, as big techs (Facebook, Google, Amazon, Apple e Microsoft).
Vários países ameaçam tributar operações das big techs em seus territórios, liderados pela França, e a União Europeia também tem agido para limitar o poder comercial das companhias no bloco e manter em território europeu os dados que trafegam por elas.
Ao anunciar que levaria adiante o tributo sobre big techs, o ministro das Finanças francês, Bruno Le Maire, disse que uma Presidência de Biden poderia ajudar a acalmar as tensões crescentes sobre o imposto.
Especialistas argumentam, porém, que o governo de Biden dificilmente adotará uma abordagem muito diferente em relação à defesa das companhias americanas. Trump já havia prometido retaliar a França com aumento de tarifa sobre produtos franceses como queijos, vinhos e perfumes.
Talvez o mais profundo suspiro com a perspectiva de vitória de Biden tenha sido ouvido na Organização Mundial do Comércio (OMC), com sede em Genebra.
A organização foi seriamente golpeada por Trump ao longo de 2020, a ponto de analistas perguntarem se ela seria capaz de sobreviver a mais quatro anos do republicano.
Trump paralisou o principal tribunal de solução de controvérsias sobre comércio global, o Órgão de Apelação, ao bloquear a nomeação de juízes. A imobilização do pilar de julgamentos acabou afetando por tabela as negociações, já que segurança jurídica é básica para acordos comerciais.
Há poucos dias, a gestão Trump atrapalhou a governança futura da OMC, ao vetar a candidata preferida da maioria dos 164 países membros para dirigir a organização, a nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala. A campanha democrata não falou sobre a disputa, mas espera-se mais boa vontade com o futuro da OMC.
Uri Dadush e Guntram B. Wolff, analistas do centro de estudos Bruegel, argumentam que uma vitória de Biden não significa um retorno rápido às negociações comerciais abrangentes com a União Europeia, mas haverá muito mais espaço para cooperação, principalmente na reforma da OMC.
A Alemanha também havia se tornado alvo frequente do presidente republicano, incomodado com a balança comercial muito favorável ao país europeu. Desde 2015, os EUA se tornaram o maior mercado para as exportações alemãs de bens.
Acusando a Alemanha de protecionismo econômico, Trump ameaçava cobrar tarifa de 35% sobre carros alemães, embora grandes montadoras, como Volkswagen, Daimler ou BMW, tenham fábricas nos EUA.
Para o coordenador de cooperação transatlântica do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha, Peter Beyer, ainda que Biden mantenha exigências sobre a Europa, as perspectivas se ampliam. "Haverá comunicação melhor, respeito mútuo e intenção de cooperar", disse ele em entrevista.
Sam Lowe, do Center for European Reform, é menos otimista. "Haverá muitos desacordos transatlânticos à frente; e a prioridade de Biden será os interesses dos EUA e de seus eleitores, não a promoção de um comércio transatlântico mais livre", escreveu.
Os EUA são o parceiro comercial mais importante da UE: no ano passado, comprou o equivalente a 384 bilhões de euros de produtos europeus e vendeu bens equivalentes 232 bilhões de euros.
A relação é forte também em serviços: os americanos compraram cerca de 179 bilhões de euros, e a UE, por sua vez, importou serviços dos EUA de 196 bilhões de euros em 2018.
Trump estava em rota aberta de colisão com parceiros na Otan, aliança militar entre países europeus e norte-americanos, e chegou a ameaçar sair da organização. A iniciativa foi contida por uma votação no Senado, em dezembro de 2019, que tornou o consentimento dos senadores obrigatório para uma retirada dos EUA.
Ainda assim, a Europa se preocupava com pressões americanas sobre a aliança. Trump, que queria maior investimento dos parceiros europeus, entrou em confronto especificamente com a Alemanha, que acusou de caloteira e gastadora, e de onde retirou 12 mil soldados.
A vitória de Biden não muda completamente o clima de insatisfação com os gastos da aliança militar, ainda que o relatório anual da Otan, divulgado em outubro, mostre um aumento do número de aliados que contribuem com 2% do PIB, de 3, em 2014, para 10 entre os 30 membros.
Diplomatas já propuseram uma reunião no primeiro semestre, para tentar aparar arestas com a nova gestão americana e reaproximar os EUA de seus aliados europeus.
Países do entorno da Rússia, principalmente a Polônia e os estados bálticos, são os principais defensores de uma Otan forte, no qual o compromisso dos EUA seja garantido. Estônia, Lituânia e Letônia viam com preocupação os ataques de Trump à aliança e as relações cordiais com o presidente russo, Vladimir Putin.
Biden se pronunciou na campanha de modo mais firme em relação à Rússia, ao menos em relação à interferência nas eleições americanas em 2016 e em ações de defesa.
"Não entendo por que este presidente não está disposto a enfrentar Putin, que está envolvido em atividades que tentam desestabilizar toda a Otan", disse o democrata.
Essa é uma área em que uma aproximação entre Europa e Estados Unidos já é esperada, independentemente de quem ocupar a Casa Branca. O responsável por política externa da UE, Josep Borrell, já havia concordado em se juntar a um diálogo sobre a China com o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, e a cooperação deve ser mantida sob Biden.
Desde 2018 Trump trava uma guerra comercial contra o domínio do país asiático na tecnologia 5G, e os países devem trabalhar em padrões e regras conjuntas para reduzir a influência chinesa nessa área.
O republicano já conseguiu tirar a Huawei de mercados europeus, o que favorece as empresas Ericsson (da Suécia) e Nokia (da Finlândia), concorrentes da chinesa pela tecnologia de comunicação móvel.
A campanha de Biden não foi clara sobre como abordará a questão do 5G, mas ele se comprometeu a trabalhar com "outras democracias" para desenvolver regras sobre crimes cibernéticos, proteção de dados e roubo de propriedade intelectual.
A derrota de Trump aumenta a pressão sobre o Reino Unido para chegar a um bom acordo com a União Europeia até o final deste ano. O republicano apoiava abertamente o brexit desde a campanha do referendo e prometia um ambicioso acordo comercial entre EUA e Reino Unido.
Embaixadores britânicos afirmam acreditar que a Presidência de Biden se inclina mais para a União Europeia. Em um evento em 2018, o democrata afirmou que, "se fosse cidadão britânico, teria votado contra a saída", e a presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, a democrata Nancy Pelosi, já avisou Boris que um acordo comercial com os EUA não será aprovado se ele continuar ameaçando quebrar o acordo de retirada e o pacto sobre as fronteiras da Irlanda.
Já na política ambiental a vitória de Biden favorece o Reino Unido, que presidirá a próxima conferência internacional sobre mudanças climáticas COP26, em 2021. O ambientalismo pode ser a ponte para estreitar o relacionamento com a Casa Branca democrata.
"Pode-se imaginar que um desses candidatos estaria mais entusiasmado como presidente do que o outro", disse na noite de quarta (4) o secretário britânico de Transportes, Grant Shapps, respondendo a pergunta sobre trabalhos conjuntos dos dois países contra a mudança climática.
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