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Explosão em Beirute ocorre no pior momento da história recente do país

Explosão em Beirute ocorre no pior momento da história recente do país

A combinação entre fracasso gerencial e a dinâmica de disputa regional, na qual historicamente é um joguete de potências externas, agora foi temperada pela tragédia

Publicado em 4 de agosto de 2020 às 17:38

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Pessoas, muitas delas feridas, circulam pelas ruas cobertas de escombros após uma forte explosão na área portuária de Beirute, no Líbano
Pessoas, muitas delas feridas, circulam pelas ruas cobertas de escombros após uma forte explosão na área portuária de Beirute, no Líbano. (HASSAN AMMAR / AP / ESTADÃO CONTEÚDO)

A violenta explosão que parece ter devastado parte da área portuária de Beirute, de natureza ainda incerta, ocorre em uma hora dramática para o país árabe.

Pior: evoca para os moradores da capital as piores lembranças do evento formativo da geração hoje no poder, a guerra civil de 1975, que durou 15 anos e deixou a cidade em ruínas.

A coluna de fumaça enorme lembrou a mais famosa de toda aquela guerra, quando em outubro de 1983 duas explosões arrasaram quartéis de americanos e de franceses: 307 pessoas morreram, 241 delas fuzileiros navais americanos, um dos maiores golpes já sofridos pelos EUA.

A antiga potência colonial, a França, e os novos líderes do Ocidente estavam lá para tentar garantir o fim de uma das etapas do conflito, que envolveu a invasão israelense do país, com apoio dos falangistas -uma das dezenas de fações, neste caso secular mas com apoio cristão, que disputavam o poder no país.

Nunca se soube o real autor do ataque, embora as suspeitas tenham convergido para o então recém-criado Hizbullah (Partido de Deus), surgido no vale do Bekaa no ano anterior a partir de uma operação do Irã para expandir sua influência entre comunidades xiitas na região.

A presença estrangeira seguiu, com anos de ocupação pelos sírios e, até hoje, a manutenção de uma força de paz das Nações Unidas. Seu destacamento marítimo é liderado pelo Brasil desde 2011.

Entre militares e diplomatas estrangeiros baseados em Beirute, circulou logo após a explosão a hipótese de ela ter ocorrido num depósito de armas do grupo, hoje uma força militar poderosa e partido político expressivo no Líbano.

Israel, inimigo existencial tanto do Irã quando de seu preposto, correu para dizer que não tinha nada a ver com isso e que, por suas informações, se tratava de um acidente com material explosivo provavelmente apreendido em um navio.

Pessoas, muitas delas feridas, circulam pelas ruas cobertas de escombros após uma forte explosão na área portuária de Beirute, no Líbano(HASSAN AMMAR / AP / ESTADÃO CONTEÚDO)

Seja o que for, não haveria hora pior para a tragédia se abater sobre a cidade. O país se viu colhido no meio da disputa geopolítica entre Irã e Arábia Saudita: em 2017, o então premiê Saad Hariri anunciou que renunciaria desde Riad, acusando Teerã de querer matá-lo.

Os iranianos disseram que os sauditas haviam tomado o político, filho do poderoso premiê Rafic Hariri (morto pelo Hizbullah em 2005), como refém. Ao fim, Saad Hariri voltou para o país e seguiu no cargo.

A crise institucional continuou, agravada por inépcia na condução econômica do país, conhecido por suas ilhas de riqueza entre a miséria generalizada da população.

Os anos de reconstrução haviam transformado a cidade numa das pérolas do Oriente Médio, revivendo parcialmente seu passado mais glamuroso, com restaurantes à beira-mar lotados e uma tolerância de costumes que só tem paralelo regional com Tel Aviv (Israel).

Mas isso vem se perdendo nos últimos anos, com o acirramento das dificuldades políticas e econômicas.

Em 2019, foi descoberto um esquema de pirâmide envolvendo o Banco Central e casas bancárias para tentar manter a cotação da libra libanesa fixa.

O resultado foi um derretimento do mercado de câmbio, encarecendo produtos de primeira necessidade. A partir de outubro, a população foi às ruas, em uma série de enormes protestos contra o establishment.

Eles foram alimentados também pela percepção de ineficácia do Estado no combate a uma série de grandes incêndios florestais e pela proposta típica de solução: aumentar impostos, inclusive taxando ligações gratuitas via WhatsApp, o que deu um toque de contemporaneidade à revolta.

Segundo o Banco Mundial, o desemprego subiu a 25%, um terço da população vive abaixo da linha da pobreza.

Hariri, por fim, renunciou, dando lugar a Hassan Diab, apoiado tanto pela França, principal parceira ocidental do país, quanto pelo Hizbullah. O grupo já tem ascendência sobre o presidente do Parlamento, Nabih Berri, que está no cargo desde 1992.

O antigo líder miliciano Berri é xiita, segundo a divisão de poder do país vigente no acordo de Taif, que pôs fim à guerra civil: o presidente é um cristão maronita e o premiê, muçulmano sunita.

O governo Diab está tentando manter o país acima da linha d'água, mas tudo sugere um fracasso sistêmico agravado pela pandemia da Covid-19. Os "lockdowns" vigentes de março a maio estagnaram ainda mais a economia.

Diab ainda negocia um pacote de US$ 10 bilhões (R$ 53 bilhões no câmbio desta terça) com o Fundo Monetário Internacional.

A insuficiência do sistema de saúde ficou explícita, mas por ora o novo coronavírus teve um impacto reduzido: são 742 casos e 10 mortos por milhão de habitante, ante quase 13 mil e 447, respectivamente, no Brasil, por exemplo.

Os atos contra o governo continuaram, e um jovem foi morto na repressão a eles em abril. O desgoverno fez com que o chanceler do país, Nassif Hittis, pedisse demissão na segunda (3). Confrontado com relatos de falta até de pão nos mercados de Beirute, ele afirmou que a nação "é quase um Estado falido".

A combinação entre fracasso gerencial e a dinâmica de disputa regional, na qual historicamente é um joguete de potências externas, agora foi temperada pela tragédia crua da explosão desta terça.

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