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'Fiquei presa por 35 horas no escuro, em bolsão de ar de barco afundando'

'Fiquei presa por 35 horas no escuro, em bolsão de ar de barco afundando'

Onze sobreviventes contaram à BBC o que aconteceu no Sea Story, o barco de mergulho egípcio que afundou no Mar Vermelho em 25 de novembro do ano passado.

Publicado em 14 de janeiro de 2025 às 19:44

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Imagem BBC Brasil
Hissora, Lucianna e Sarah estavam a bordo do Sea Story na noite em que o barco afundou no Mar Vermelho. (BBC)

Joe Inwood

"No final, eu só estava me perguntando como eu preferiria morrer."

Passar 35 horas presa em um bolsão às escuras, sob o casco virado de um barco, abalou fortemente Lucianna Galetta, que fica com a voz embargada ao relembrar o que passou.

Um vídeo que ela conseguiu filmar brevemente usando a luz do seu celular, agora compartilhado com a BBC, mostra o local em que ela achou que sua vida poderia acabar — e como a água do mar e os detritos flutuantes impediram que ela escapasse.

Lucianna foi um dos últimos entre os 35 sobreviventes resgatados do naufrágio do Sea Story, um barco de mergulho egípcio que afundou no Mar Vermelho em 25 de novembro do ano passado.

No total, 11 pessoas morreram ou ainda estão desaparecidas, incluindo dois britânicos, Jenny Cawson e Tarig Sinada.

Na época, as autoridades egípcias atribuíram a tragédia a uma onda enorme de até 4 metros, mas a BBC conversou com 11 sobreviventes do Sea Story que lançaram dúvidas sobre a alegação.

Isso foi reforçado por um conceituado oceanógrafo, que afirmou à reportagem que os dados meteorológicos do momento do naufrágio sugerem que uma onda não poderia ter sido responsável pelo incidente, e que uma combinação de erros da tripulação e falhas no barco foi a causa provável.

Além de descrever o terror de terem ficado presos em um barco que afundava rapidamente, os sobreviventes acusaram a empresa que administrava a embarcação, a Dive Pro Liveaboard, de várias falhas de segurança.

Também disseram que as autoridades egípcias demoraram para reagir, algo que pode ter custado vidas.

A BBC enviou perguntas à Dive Pro Liveaboard, com sede em Hurghada, e ao governo egípcio, mas não recebeu resposta.

Esta é a história de como o Sea Story afundou, contada pela primeira vez por aqueles que conseguiram sair com vida do naufrágio.

Imagem BBC Brasil
(BBC)

O barco de mergulho de luxo partiu de Porto Ghalib, na costa do Mar Vermelho, no Egito, em 24 de novembro. A bordo estavam 31 turistas internacionais — a maioria mergulhadores experientes — e três guias de mergulho, assim como 12 tripulantes egípcios.

Era uma viagem de seis dias, sendo seu primeiro destino o recife de Sataya, um popular ponto de mergulho.

Assim como muitos dos que estavam a bordo, as primeiras impressões de Lucianna sobre o Sea Story foram positivas.

"Parecia um barco muito bom, bem grande, bastante limpo", diz ela, que conversou com a reportagem de sua casa na Bélgica.

No último minuto, a empresa havia transferido Lucianna e outros passageiros de outro barco, que tinha centenas de boas avaliações online, para o Sea Story. Vários foram informados que estavam recebendo um "upgrade", mas alguns ficaram frustrados porque não iriam para o destino que haviam reservado.

As condições naquela noite eram bastante adversas, embora os sobreviventes com quem conversamos, incluindo marinheiros experientes, digam que o barco parecia mais instável do que eles esperavam.

Em um determinado momento, algumas horas antes de virar, um pequeno barco inflável escorregou da popa (parte traseira) do Sea Story. Um passageiro filmou enquanto a tripulação lutava para trazê-lo de volta — o oceanógrafo com quem a BBC conversou disse que o vídeo mostra condições que não eram incomuns, e consistentes com ondas de 1,5 metro.

"Olhando para as ondas, o tempo não estava terrível", diz Sarah Martin, médica do NHS, serviço público de saúde britânico, que estava no barco.

Segundo ela, entretanto, "os móveis estavam deslizando pelo convés — perguntamos à tripulação se isso era normal, e eles simplesmente deram de ombros, então não percebemos o perigo que estávamos correndo".

"Não dormi naquela noite porque o barco estava balançando muito", relata Hissora Gonzalez, uma mergulhadora da Espanha, cuja cabine ficava no convés inferior.

Ela conta como o barco balançou bruscamente várias vezes até que, pouco antes das 3h da manhã, virou de lado com um forte estrondo, seguido por um silêncio quando os motores pararam — e pela escuridão total.

Gritos vindos de outras cabines logo puderam ser ouvidos, enquanto as pessoas eram jogadas de suas camas.

Pertences estavam espalhados, bloqueando saídas e dificultando a fuga. Uma sobrevivente — que estava dormindo do lado de fora no convés — afirmou ter ficado presa sob móveis pesados ​​que se moviam conforme o barco balançava.

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Hissora Gonzalez é uma mergulhadora experiente da Espanha. (Hissora Gonzalez)

"Não conseguíamos ver nada. Eu não sabia se estava andando no chão, no teto, na lateral", diz Hissora.

Desorientada, ela começou a procurar coletes salva-vidas. Antes de conseguir encontrar um, seu amigo Cristhian Cercos gritou para ela correr, um aviso que pode ter-lhe salvado a vida.

A cabine deles ficava a estibordo (direita) do barco, o lado que bateu no mar. Quase todos os mortos ou desaparecidos estavam em cabines naquele lado do barco.

"Eu conseguia ouvir a água entrando, mas não conseguia ver", ela conta.

A porta da cabine deles agora estava no teto — ela só escapou porque Cristhian conseguiu, na quinta tentativa, puxá-la para cima.

Do outro lado do corredor de onde estava Hissora, também na escuridão total, estavam Sarah e sua companheira de cabine, Natalia Sanchez Fuster, uma guia de mergulho.

Elas não conseguiam encontrar a maçaneta da porta da cabine. Quando Sarah conseguiu ligar a lanterna do seu telefone, percebeu que "tudo estava a 90 graus — a porta estava no chão, e todas as nossas coisas a estavam bloqueando".

Depois de liberar a passagem, elas se juntaram a cerca de outras 10 pessoas que se dirigiam para uma saída de emergência em direção à proa (frente) do barco.

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Sarah Martin, médica do NHS, é uma ávida mergulhadora. (Sarah Martin)

Com o barco virado de lado, o grupo teve que rastejar pela escada de emergência por dois andares, passando pelo restaurante e pela sala de jantar no convés principal.

Era difícil encontrar o caminho, e parecia que o conteúdo dos armários da cozinha havia se espalhado pelo chão.

"Tivemos que escalar os batentes das portas e as vigas para sair", diz Sarah.

"O escuro desorientava a gente, e tudo estava muito escorregadio. Havia óleo de cozinha e ovos quebrados por toda parte."

Hissora, logo à frente de Sarah, conseguiu chegar ao convés superior. Ela podia ouvir as pessoas gritando atrás dela, mas não se virou.

"Eu estava com medo de olhar para trás e ver toda a água entrando", descreve.

A essa altura, o Sea Story estava afundando rapidamente. Aqueles que haviam chegado ao convés superior sabiam que teriam que pular na água — uma queda de 2 a 3 metros.

"Fiquei paralisada porque Cristhian ficava me dizendo 'não pula', porque ele podia ver que alguém estava tentando liberar o bote salva-vidas", ela lembra.

Sarah estava atrás de Hissora — e desesperada para sair.

"Havia outros passageiros segurando na lateral, bloqueando a saída", diz ela.

"Estávamos gritando para eles saírem do caminho."

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Hissora foi uma das primeiras a chegar ao convés superior, mas não tinha colete salva-vidas. (BBC)

Com a água subindo rapidamente, Hissora, Sarah e uma dúzia de pessoas que haviam chegado ao convés superior pularam na água. Elas sabiam que o perigo ainda não havia acabado.

"Se o barco estava afundando, precisávamos nos afastar para que ele não nos puxasse para baixo com ele", explica Sarah.

Natalia, que também pulou, nadou ao redor do barco — ela ouviu pessoas gritando de dentro das cabines e tentou usar detritos flutuantes para quebrar as janelas, mas não conseguiu.

Sarah e Natalia estavam entre os poucos passageiros que pegaram um colete salva-vidas antes de escapar, mas Sarah diz que eles não estavam funcionando como deveriam.

"Percebemos que as luzes não estavam funcionando. Olhando em retrospectiva, acho que não havia bateria."

Esta é apenas uma das várias falhas de segurança denunciadas pelas pessoas que entrevistamos.

No total, conversamos com sete dos sobreviventes que estavam no convés inferior. Todos eles contam uma história quase idêntica sobre o momento em que o barco virou, mas nem todos escaparam da mesma forma.

Lucianna Galetta estava em uma cabine na parte de trás do convés inferior com seu companheiro, Christophe Lemmens. O casal demorou um pouco mais a perceber o perigo. O atraso lhes custou caro.

"Começamos a nos levantar e tentamos encontrar os coletes salva-vidas", relata Lucianna.

"Abrimos a porta, mas já havia água no corredor. Acho que entramos em pânico quando pulamos e quase nos afogamos."

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Christophe e Lucianna sobreviveram em bolsão de ar. (BBC)

Sem conseguir chegar à saída de emergência na frente do barco, Lucianna e Christophe acabaram em um bolsão de ar na sala de máquinas na popa (parte traseira) da embarcação, que ainda estava fora da água.

Eles não sabiam onde estavam até que, algum tempo depois, um dos instrutores de mergulho, Youssef al-Faramawy, se juntou a eles no pequeno espaço.

Os três ficariam lá, sentados em tanques de combustível, por cerca de 35 horas.

Do lado de fora do barco, Sarah, Hissora e os outros que haviam pulado acabaram encontrando os dois botes salva-vidas, que haviam sido liberados após o naufrágio. Quando subiram a bordo, viram que o capitão do barco e vários outros membros da tripulação já estavam lá.

"Deve haver alguns suprimentos aqui", Sarah se lembra de um dos outros passageiros dizendo.

Todas as pessoas com quem conversamos se recordam de uma instrução de segurança que mencionava que os botes salva-vidas tinham comida e água — mas não tinham, conforme relatado à BBC.

"Encontramos uma lanterna, mas novamente não tinha bateria. Não tínhamos água nem comida", conta Sarah.

"Havia sinalizadores, mas eles já haviam sido usados."

Sarah também diz que dos três cobertores a bordo do bote, um deles o capitão pegou para uso próprio, deixando um para o resto da tripulação, e outro para os passageiros.

"Nós o rasgamos e nos amontoamos", recorda Sarah.

Os botes foram encontrados por embarcações de resgate por volta das 11h da manhã de 25 de novembro, cerca de oito horas após o naufrágio. Tanto eles quanto o barco haviam se deslocado para o leste.

Enquanto isso, a bordo do Sea Story, Lucianna ouviu o helicóptero de resgate, mas sua provação estava longe de terminar.

"Naquele momento, ficamos muito felizes, mas tivemos que esperar mais 27 horas", diz ela.

Apesar de o barco ter sido localizado, as equipes de resgate demoraram a chegar até eles.

"Não tínhamos comunicação com o exterior, nada. Ninguém tentou ver se havia alguém vivo lá dentro", afirma.

Ela conta que houve momentos em que a escuridão e o desespero a dominaram.

"Eu estava tão pronta para morrer. Não achávamos que alguém viria."

Depois de várias horas presos no bolsão de ar, o guia de mergulho, Youssef, quis tentar nadar pelo barco, mas Lucianna e Christophe o convenceram a não fazer isso.

"Fica com a gente, porque eles vão vir buscar nossos corpos e vão nos encontrar", Lucianna se lembra de ter dito a ele.

Finalmente, depois de quase um dia e meio presos no casco do Sea Story, uma luz apareceu na escuridão.

Um instrutor de mergulho egípcio, Khattab al-Faramawi, que era tio de Youssef, havia desbravado o naufrágio, mergulhando pelos corredores submersos à procura de pessoas.

Ele retirou Youssef primeiro e, depois de mais uma hora de atraso devido a problemas com o equipamento de respiração, voltou para levar Lucianna e seu companheiro para um lugar seguro.

"Eu o abracei com tanta força", diz Lucianna.

"Estava muito, muito feliz."

No total, cinco pessoas que estavam a bordo do Sea Story foram resgatadas por mergulhadores, incluindo um suíço e um finlandês que sobreviveram em outro bolsão de ar dentro de sua cabine no convés inferior. Quatro corpos foram recuperados.

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(BBC)

Mas Lucianna critica o fato de que a Marinha egípcia teve que depender de voluntários.

"Esperamos 35 horas. Não entendo como não há mergulhadores nos barcos militares egípcios."

Lucianna, Christophe e Youssef foram levados a bordo de uma embarcação naval antes de retornarem à costa. Eles foram os últimos a serem resgatados. Pelo menos 11 pessoas morreram ou estão desaparecidas, presumidamente mortas.

Entre eles estão Jenny Cawson e Tarig Sinada, um casal de Devon, na Inglaterra, que estava em uma cabine no convés principal, no lado do barco que bateu na água.

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Jenny e Tarig não foram encontrados. (BBC)

"Não parece real", diz Andy Williamson, um amigo do casal.

"Continuamos esperando que eles entrem pela porta."

Um mês e meio após o naufrágio, as esperanças de que isso aconteça praticamente desapareceram.

Os dois eram mergulhadores experientes que sempre pesquisavam cuidadosamente o histórico de segurança dos barcos antes das viagens. Eles também foram transferidos para o Sea Story no último minuto, o que pode ter custado suas vidas.

A BBC conversou com sobreviventes de quase todas as cabines da embarcação em que alguém saiu com vida. Todos confirmaram que o barco afundou entre 2h e 3h.

No entanto, de acordo com as autoridades locais, um sinal de socorro só foi recebido por volta das 5h30— um fator adicional que pode ter custado vidas.

Cinco sobreviventes também relataram que os móveis pesados do convés superior estavam soltos — e se moveram antes do naufrágio. A mulher que estava dormindo no convés acredita que todos se deslocaram para um lado quando o barco começou a virar, desestabilizando ainda mais o Sea Story.

A versão apresentada pelas autoridades egípcias logo após o ocorrido, noticiada por agências de notícias do mundo todo, foi de que uma onda enorme atingiu o barco. As experiências de vários sobreviventes poucos minutos após o naufrágio lançam dúvidas sobre isso.

"Quando estávamos na água, as ondas não eram tão grandes a ponto de não conseguirmos nadar", diz Sarah.

"Então ficamos nos perguntando por que o barco afundou."

Essas suspeitas são respaldadas por dados.

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No total, 35 sobreviventes foram resgatados do Sea Story. (Handout)

Simon Boxall é um renomado oceanógrafo da Universidade de Southampton, no Reino Unido. Ele analisou os dados meteorológicos do dia da tragédia, que mostram que as maiores ondas eram de cerca de 1,5 metro — ele afirma, portanto, que "não há como uma onda de 4 metros ter ocorrido naquela região, naquele momento".

A Autoridade Meteorológica Egípcia havia alertado sobre ondas grandes no Mar Vermelho — e desaconselhado atividades marítimas em 24 e 25 de novembro. Mas, de acordo com Boxall, "estas (ondas) estavam a mais de 200 quilômetros de distância ao norte de onde o barco afundou".

Ele diz que isso deixa apenas duas opções: erro do piloto ou erro no design da embarcação — ou uma combinação de ambos.

O Conselho de Investigação de Acidentes Marítimos do Reino Unido (MAIB, na sigla em inglês), que em breve vai divulgar um boletim de segurança sobre o naufrágio, alertou recentemente mergulhadores sobre problemas de segurança no Mar Vermelho após uma série de incidentes — pelo menos dois envolveram a mesma empresa, a Dive Pro Liveaboard.

A BBC enviou várias vezes todas as preocupações de segurança levantadas nesta reportagem ao governo egípcio e à empresa Dive Pro Liveaboard. E ainda não recebeu resposta de nenhum dos dois.

Após a tragédia, as autoridades egípcias abriram imediatamente uma investigação sobre o naufrágio. A conclusão ainda não está disponível, mas para os amigos de Jenny e Tarig, não se trata apenas de um barco.

"Infelizmente, tivemos que aprender sobre os perigos de mergulhar no Egito nas circunstâncias mais trágicas", diz Andy Williamson.

"Não sei como vamos superar isso."

Lucianna quer entender exatamente o que deu errado.

"Temos sorte de estar vivos", diz ela.

"Mas há tanta gente que não voltou, e eu quero que suas famílias sejam capazes de viver o luto."

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