Assim como no Brasil muito se discute sobre violência policial dirigida aos negros, nos Estados Unidos esta é uma questão antiga. Mais do que isso, está intrínseca ao histórico da sociedade americana, em que a escravidão, embora tenha durado menos que no caso brasileiro, deixou marcas ainda mais profundas. O caso que levou à morte de George Floyd por meio da ação policial, um homem que, em virtude da pandemia, perdeu o emprego como segurança de um restaurante em Minneapolis, no noroeste do país norte-americano, acendeu um movimento de protestos que entoaram dizeres e cartazes com a frase quase reprimida da vítima: "Eu não consigo respirar". O flagrante do crime foi registrado pela moradora Darnella Frazier, que passava pelo local no momento crítico.
O fato que vitimou o homem de 46 anos, nascido em Houston, no Texas, aconteceu na última segunda-feira (25). O vídeo do incidente, que circulou por todo o mundo, mostra Floyd no chão de uma rua, algemado e sem condições de se defender, sendo pressionado pelo joelho de um dos policiais brancos que o cercava, Derek Chauvin, um agente que apresenta histórico de outras agressões, segundo informações da Associated Press.
De acordo com o site The Guardian, na noite de segunda-feira (25), um funcionário de uma mercearia ligou para a polícia dizendo que Floyd teria tentado pagar uma compra com uma nota falsa de 20 dólares. Pouco tempo depois, a equipe policial chegou ao local e iniciou a repressão violenta ao homem considerado suspeito.
Na noite da última sexta-feira (29), a onda de protestos que ocorrem em todo o país norte-americano, em razão da morte de George Floyd, chegou ao quarto dia seguido e, desta vez, deixou duas pessoas mortas, dentre elas, um agente federal, na Califórnia, e um jovem de 19 anos, atingido depois que uma pessoa passou atirando de dentro de um carro contra uma multidão em manifestação em Michigan. A informação foi divulgada pela televisão americana CNN.
Segundo o jornal O Estado de São Paulo, na noite de sexta (29) ocorreram também manifestações em frente à Casa Branca, em Washington. O presidente Donald Trump estava na sede do governo americano no momento do ato. Os manifestantes seguravam cartazes com dizeres como "Parem de nos matar".
Em Minneapolis, local onde o incidente aconteceu, atos violentos seguem, inclusive desafiando o toque de recolher imposto, decretado às 20h no horário local. Cerca de 50 pessoas já foram presas.
Sobre o assunto, o embaixador aposentado José Vicente de Sá Pimentel, que já atuou como diplomata em locais como Washington, Santiago, no Chile, e Paris, e que hoje é Secretário de Meio Ambiente em Vila Velha, comentou que falar da questão racial nos Estados Unidos é complexo e que remete à história. "Na verdade, a questão racial americana vem de muito tempo. Aconteceu algo peculiar no caso deles, os negros que eram escravizados, viviam nos estados do sul. Os estados do norte, industrializados, não tinham espaço para mão de obra negra. Na guerra da Secessão o sul queria se separar do restante do país e manter a estrutura escravocrata, e, Lincoln, presidente à época, aguentou a barra e que o país não se separasse", iniciou.
Em uma situação em que os negros norte-americanos ainda formam uma parte grande da população mais pobre no país, as ideias libertárias cresceram mais do que em outros países da América. "No Brasil observamos uma situação um pouco melhor. Nos Estados Unidos, desde os anos 60 vimos líderes negros como Martin Luther King e Malcom X. Hoje há, no entanto, uma situação curiosa: tivemos um presidente negro (Barack Obama) e depois um presidente anti-Obama (Donald Trump), que não se opôs às lideranças de supremacia racial, mesmo tendo havido manifestações nesse sentido, de um povo superior ao outro, ele não disse nada. E, neste caso, quem cala consente", afirmou.
De acordo com Pimentel, há um fenômeno profundo, que hoje toma uma conotação política. Quando vêm ao debate questões raciais nos Estados Unidos, elas aparecem dentro de um contexto novo, reunindo negros e brancos a favor dos direitos humanos, que se opõem ao governo Trump, e que querem igualdade racial, lutar por valores éticos.
Neste sentido, é possível falar em omissão do governo atual, de Donald Trump. "É diferente do tempo do Obama, o qual estava sempre presente. Trump não fala sobre o tema. Há então um cansaço de uma parte importante da população com esses abusos todos, não é de agora. A polícia, em uma democracia, existe para manter a lei e a ordem, deve ter a preocupação em manter os direitos das pessoas, tratar a todos com igualdade, independente de religião ou cor, mas isso muitas vezes não acontece", disse.
E é nesta situação que o diplomata insere o caso George Floyd. "Desta vez havia alguém filmando uma situação com um policial que já tinha um histórico de violência. Isso requer alguma providência imediata. Os policiais envolvidos foram imediatamente afastados, mas foi pouco, as pessoas querem um basta, elas estão esgotadas. Tudo isso é somado ao problema de pandemia, dos direitos humanos e da política. A polícia está a flor da pele e ainda é ano de eleições por lá. Tudo isso se junta e faz com que esse tipo de episódio assuma uma proporção enorme", explicou.
Brunela Vicenzi, professora de Direitos Humanos e presidente da Comissão Permanente de Direitos Humanos pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), além de entender que o caso Floyd assume conotações políticas, traça um paralelo com o momento atual vivenciado no Brasil.
"Acredito que também vivemos esta violência policial no Brasil e que a retórica do Trump é semelhante à utilizada pelo Bolsonaro. Muito se falar em prender bandidos e em combater à violência, e este discurso acaba por autorizar o uso indiscriminado da força. Se é suspeito, prende e joga no chão. E no Brasil esta violência ocorre porque tem amparo da sociedade, as pessoas querem que a polícia aja dessa forma, reagem positivamente aos excessos", afirmou.
Para ela, este acontecimento específico, no caso George Floyd, não deve gerar uma represália violenta por parte do povo negro americano. "Eu acredito mais na maturidade da democracia americana. Desde o movimento Black Lives Matters, em 2015, momento em que houve um caso semelhante em Baltimore, que não levou os policiais envolvidos à prisão, há um grupo de artistas que são atuantes, além de ativistas e políticos, que debatem de forma democrática, sem violência. Ao contrário do que ocorre no Brasil, onde não temos essa estrutura democrática antiga, eles têm mais maturidade democrática", esclareceu.
O embaixador aposentado também considera que há semelhanças entre os momentos vividos nos dois países e entre os dois chefes do executivo. "Trump foi lento ao identificar o perigo da Covid-19, hesitante ao organizar a política do governo federal a respeito da pandemia, imprudente ao se apegar a curas milagrosas, como a cloroquina, excessivo ao subordinar os direitos dos infectados pelo vírus aos interesses das grandes empresas. Talvez a maior semelhança entre os dois presidentes é a prioridade que concedem à reeleição. No caso americano, porém, a pressão é mais compreensível, porque as eleições presidenciais serão em novembro próximo, as nossas ainda estão longe".
De acordo com Pimentel, Derek Chauvin, policial que matou George Floyd, tem no seu currículo várias violências, das quais foi absolvido. "A possibilidade de ser mais uma vez inocentado pelas autoridades judiciais está motivando muitos dos protestos atuais em Minneapolis. Em suma, há uma sensibilidade aguçada nas populações americanas, como nas de outros países, em decorrência do estresse provocado pelo isolamento social, pelos problemas econômicos decorrentes, e pelas eleições que se aproximam. É preciso que as lideranças tenham prudência e sabedoria nesses momentos difíceis. Nem sempre isso vem acontecendo", afirmou.
Segundo Vicenzi, há uma diferença entre as punições levadas a cabo nos Estados Unidos, quando comparado ao Brasil. No país norte-americano, os policiais infratores podem ser demitidos, e, neste caso, perdem o direito à pensão, salário de aposentadoria e demais benefícios. "Mas em alguns casos, assim como aqui, ocorre apenas o afastamento e corre um processo na corregedoria, sem ir para o judiciário comum. Com o afastamento do cargo, acaba indo ocupar outra função e continua recebendo salário", pontuou.
No caso do segurança americano, de acordo com ela, o que acontecerá é o julgamento por crime comum. "Diferente do Brasil, em que se fosse um policial militar haveria julgamento pela Justiça Militar. O que se discute no caso George é se será homicídio culposo - quando não há intenção de matar - ou doloso. O indiciamento, por enquanto, é por homicídio culposo, o que, ao meu ver não caberia".
Ainda ao comparar com o Brasil, a professora universitária diz que nos Estados Unidos a força policial também é muito dura contra negros e pobres. "Lá também há um estereótipo, como no caso da nossa PM. O vídeo das agressões a George mostra ele andando com o carro e a polícia fazendo ele sair. Chegaram a afirmar que ele tinha reagido, mas já foi visto por câmera de segurança que não, ele estava quieto. Isso se repete há muito tempo e os policiais não eram penalizados. Acho por conta da pandemia, as forças policiais estão agindo mais duramente, o que pode agravar ainda mais a situação. Somou o histórico com a situação de stress, mas não dá para negar que é o fruto de uma polícia racista", concluiu.
Em um estudo divulgado pela Violence Policy Center (VPC) em 2019, foi apontado que os negros representam apenas 13% da população norte-americana, no entanto, correspondem a 51% das vítimas de homicídio. No país, 87% dos negros vítimas de homicídio são mortos por armas de fogo.
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