A nova Guerra Fria, protagonizada por Estados Unidos e China, ganhou uma nova fase com a escalada nas ameaças mútuas de sanções entre as duas maiores economias do mundo.
Em dois dias, Washington disparou três ataques frontais aos interesses de Pequim, dando continuidade lógica à disputa que se acentuou com a ascensão de Donald Trump ao poder, em 2017.
Analistas se questionam, contudo, sobre os limites de tais ações, dada importância da China em um mundo em que ela é a maior responsável pelo comércio, com 12,4% do total de importações e exportações em 2018.
Impulsionado por uma campanha à reeleição em que está numa posição difícil contra o democrata Joe Biden, e parece decidido a fazer barulho na frente externa, o republicano Trump foi em frente.
Na segunda (13), o secretário de Estado, Mike Pompeo, fez o mais duro ataque às pretensões territoriais do regime comunista sobre o mar do Sul da China -a principal rota de comércio de Pequim, que tem 20% do PIB ligado às exportações.
No dia seguinte, o aliado americano Reino Unido baniu a gigante chinesa Huawei de suas redes de 5G, a tecnologia que embasará a internet do futuro, algo que Trump se gabou de ter "feito sozinho".
E o presidente americano arrematou o dia cumprindo sua promessa de acabar com o status de parceiro comercial privilegiado com Hong Kong devido à nova lei de segurança chinesa sobre o território devolvido por Londres em 1997.
A legislação, que na prática tolhe o dissenso na região conturbada por protestos pró-democracia desde 2019, é também um dos motivos para a decisão do governo de Boris Johnson sobre o 5G. O outro foi a pressão de Trump, que proibiu em maio o fornecimento de chips com tecnologia americana, a maioria no mercado, para a Huawei.
Além disso, os EUA prometeram aplicar sanções a quem "oprimir o povo" honconguês sob a nova lei, uma ampliação de ato já aprovado no ano passado, no auge dos protestos.
O resultado foi uma dura reação de Pequim, que nesta quarta (15) prometeu aplicar sanções a pessoas e instituições americanas ligadas ao que considera interferência em seus assuntos internos.
"O governo chinês se opõe resolutamente e condena" as ações de Washington, segundo comunicado do Ministério das Relações Exteriores.
Na prática, o modelo que deverá ser aplicado é o já visto quando os EUA aplicaram sanções a quatro autoridades chinesas acusadas de repressão contra muçulmanos na província de Xinjiang: medidas idênticas e proporcionais contra políticos americanos envolvidos em atos congressuais sobre o tema.
Assim, os senadores que criaram o Ato de Autonomia de Hong Kong, sancionado na terça por Trump, deverão sofrer as sanções.
O ato por enquanto é mais político, e ambos os países podem absorvê-lo. Não é muito diferente das expulsões mútuas de espiões entre EUA e União Soviética durante a versão 1.0 da Guerra Fria, encerrada com o fim do império comunista em 1991.
O mesmo se dá na arena da pandemia da Covid-19, em que ambos os países trocam acusações sobre o manejo da crise. Nesta quarta, Mike Pompeo disse que a investigação sobre a origem do novo coronavírus, a ser feita pela Organização Mundial da Saúde, servirá para "lavar" a reputação de Pequim. Os EUA deixaram a OMS.
A coisa muda de figura com o acirramento da disputa comercial envolvendo a Huawei, por outro lado. Londres havia resistido à pressão de Trump até aqui, só limitando parcialmente a presença da empresa, que já é dominante nas tecnologias atuais, como o 4G.
Em mais uma ameaça, Mike Pompeo afirmou nesta quarta que os EUA poderão aplicar sanções a funcionários da Huawei. Ele irá a Londres na semana que vem para discutir o assunto.
A Huawei nega a alegação central dos EUA, de que redes da empresa podem servir de vertedouros de dados para a espionagem chinesa. A chancelaria em Pequim ressaltou a fala de Trump, de que havia logrado uma vitória com a decisão de Boris, como prova de que foi um ato meramente político.
"É desalentador. A forma com que o Reino Unido tratou a Huawei, simplesmente a chutando, está sendo observado bastante de perto por outras empresas chinesas, e será muito difícil ter confiança para mais investimentos", resumiu o embaixador chinês em Londres, Liu Xiaoming, num evento do Centro para Reforma Europeia, nesta terça.
O Reino Unido é o país europeu com mais investimento chinês, 24% do total aplicado no continente em 2018.
A interdependência comercial é ainda maior no caso dos EUA, ainda que o volume de investimento direto de um país no outro tenha caído sob Trump, que promoveu uma guerra comercial baseada em tarifas de importação por ora congelada.
De 1990 a 2019, a China investiu US$ 150 bilhões em empresas nos EUA, segundo a ONG US-China Investment Hub. No caminho contrários, os americanos colocaram US$ 284 bilhões em território chinês. O pico das transações ocorreu em 2016, último ano antes de Trump.
Também nesta quarta, o mar do Sul da China voltou à baila. O secretário-assistente de Estado para a Ásia Oriental, David Stilwell, afirmou que "tudo está na mesa, e há espaço" para sanções devido à presença militar da China em ilhotas que visam garantir sua reivindicação sobre 85% das águas.
O chefe de Stilwell, Pompeo, foi além. "Vamos usar todas as ferramentas que temos e apoiar todos os países que reconhecerem que a China violou suas reivindicações territoriais legais", afirmou a jornalistas.
Pompeo evitou falar em ações militares, claro, dizendo que buscaria ajudar dentro do fórum da Asean (Associação das Nações do Sudeste Asiático), que une dez países, inclusive aqueles em disputa com a China naquele mar: Vietnã, Filipinas, Brunei e Malásia.
Nem precisaria: na semana passada, dois grupos de porta-aviões americanos se exercitaram na região, no mesmo momento em que os chineses conduziam manobras perto das ilhas Paracel. Se uma guerra é considerada altamente improvável hoje, o estado de tensão constante pode levar a confrontos acidentais.
O governo Trump é visto como um "bully" na comunidade internacional, já tendo causado episódios diversos de mal-estar entre aliados.
Mesmo nesta terça, Pompeo prometeu estender sanções a sócios ocidentais de dois gasodutos que ligam a rival americana Rússia à Europa: o Nord Stream 2 (via Alemanha) e o Turkstream (Turquia). "Saiam agora ou encarem as consequências", disse.
Apesar disso, há uma crescente percepção contrária à China entre aliados nominais de Washington.
Além das queixas no mar do Sul da China, onde o Tribunal de Haia já deu razão às Filipinas em 2016 ante as pretensões chinesas, a questão de Hong Kong tem causado bastante desconforto.
Até aqui, EUA, Austrália e Canadá suspenderam seus tratados de extradição com Hong Kong. Reino Unido, Finlândia e Nova Zelândia também estudam fazer o mesmo.
O motivo é o temor de que o artigo 55 da nova lei chinesa permita que pessoas extraditadas sejam levadas ao Judiciário do continente, algo não previsto nos termos dos acordos vigentes entre Hong Kong e outros 20 países.
Além disso, rivais regionais da China se manifestaram duramente contra a lei de segurança, como o Japão e Taiwan, que Pequim considera uma província rebelde. A aliança de compartilhamento de dados de espionagem Cinco Olhos (EUA, Austrália, Reino Unido, Nova Zelândia e Canadá) também o fez.
O governo chinês tem opções políticas limitadas na região, apesar de seu grande investimento em parceiros como o Paquistão.
Nesta quarta, o presidente Xi Jinping ligou para o premiê de Singapura, Lee Hsien Loong, para parabenizá-lo pela vitória nas eleições do dia 10. Aproveitou e pediu que ele "superasse as distrações" para cooperar pela estabilidade regional, o que foi visto como uma sutil ameaça por sua política de equidistância de Pequim e Washington.
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