SÃO PAULO - O presidente da Rússia, Vladimir Putin, determinou pela primeira vez a mobilização de até 300 mil reservistas para lutar na Guerra da Ucrânia, uma protelada admissão de que sua campanha de 210 dias para subjugar o vizinho fracassou em seus objetivos — não derrubou o governo de Volodimir Zelenski e sofreu reveses recentes.
Em pronunciamento pré-gravado na TV na manhã desta quarta-feira (21) (madrugada no Brasil), o russo disse também que irá proteger as populações de território ocupados que pretende anexar após referendos a serem feitos em quatro regiões ucranianas no leste e no sul do país a partir de sexta (23). E que está disposto fazer isso com armas nucleares contra os EUA e aliados que apoiam Kiev.
Segundo o presidente, a Rússia enfrenta 1.000 km de linhas de frente contra o Ocidente na Ucrânia — uma referência ao fato de que os EUA e aliados forneceram bilhões de dólares em armas e inteligência a Kiev. "Na sua política agressiva antirrussa, o Ocidente cruzou todas as linhas", disse Putin.
"Chantagem nuclear tem sido usada, e não estamos falando apenas do bombardeio da usina de Zaporíjia. Mas também de pronunciamentos de altos representantes da Otan sobre a possibilidade de usarem armas de destruição em massa contra a Rússia", afirmou o líder — no domingo (18), o presidente americano Joe Biden havia alertado o russo a não usar a bomba, insinuando reação proporcional.
"Eu gostaria de relembrar que nosso país também tem vários meios de destruição, e em alguns casos eles são mais modernos do que aqueles de países da Otan. Quando a integridade de nosso país é ameaçada, é claro que que nós iremos usar todos os meios à nossa disposição para proteger a Rússia e seu povo. Isto não é um blefe."
Aqui, Putin se referia ao movimento que levou à escalada dramática, esperada desde que o Ocidente se reuniu em coro para condenar Putin e sua guerra no debate da Assembleia-Geral da ONU, iniciado nesta terça (20) com críticas ao russo feitas inclusive pelo secretário-geral António Guterres.
A resposta russa veio na forma do anúncio de que administradores das duas repúblicas separatistas do Donbass, o leste russófono da Ucrânia composto pelas províncias de Lugansk e Donetsk, promoveriam um referendo pedindo a anexação. Ali, boa parte do território está fora do controle de Kiev desde 2014, na esteira da anexação da Crimeia por Putin, que reagia à derrubada de um governo aliado em Kiev.
Em Lugansk, a ocupação é quase total, salvo algumas vilas perto da fronteira com Kharkiv, mas a situação em solo é fluida. A dúvida maior é sobre a fronteira que os russos deverão reclamar em Donetsk, cuja capital provincial homônima é governada por separatistas desde a guerra civil iniciada em 2014, na esteira da anexação da Crimeia, por sua vez uma resposta de Putin à queda do governo pró-Kremlin em Kiev.
Em Donetsk, cerca de 60% do território está em mãos rebeldes e russas, e as forças ucranianas têm posições bem defendidas na província. Na noite de segunda, o presidente Volodimir Zelenski afirmou em Kiev que as tropas russas estão "fugindo em pânico" em vários pontos das frentes de batalha.
O embaixador de Lugansk em Moscou, Rodion Mirochnik, deu inclusive pistas do verniz legalista do processo: ele seria submetido à Organização de Segurança de Xangai, a entidade multinacional criada pela China que sediou o encontro Putin-Xi, e aos países do Brics, bloco que une Brasil, Rússia, Índica, China e África do Sul.
É de se especular qual seria a reação do governo de Jair Bolsonaro (PL) a um pedido desses, dado que ele manteve a boa relação com Putin ao longo da guerra e recebeu agradecimentos russos por isso, ainda que o Brasil condene a invasão em si.
Como seria previsível, a Duma (Câmara baixa do Parlamento russo) apoiou com entusiasmo a iniciativa. Significativamente, ela também aprovou nesta terça uma lei endurecendo o regime de punição para quem desertar durante situações de combate ou mobilização geral --deixando assim mais um instrumento pronto para Putin caso ele altere sua política, o que de todo modo parece difícil dado à impopularidade de tal movimento.
O presidente russo está sob pressão. Membros mais linha-dura de sua elite têm se pronunciado em favor de uma guerra mais ampla e destrutiva, envolvendo os números de soldados necessários para alguma vitória — o fracasso em tomar Kiev na primeira semana do conflito se deveu, entre outras coisas, à escassez de tropa.
Os movimentos desta semana parecem ampliar o leque à disposição do líder, que aposta no confronto com o Ocidente para galvanizar o apoio que segue recebendo apesar das críticas pontuais.
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