A crise das enchentes em Porto Alegre entrou no sexto dia nesta quarta-feira (08/05) com boa parte da cidade na escuridão, sem água e até algumas áreas secas sendo afetadas.
Também voltou a chover na capital gaúcha, o que fez a prefeitura interromper operações de resgate de pessoas ilhadas.
Ao chegar na zona norte da cidade, a reportagem encontrou uma igreja evangélica que funciona hoje como um abrigo para 66 pessoas e ao menos dez cães.
O local, por onde já passaram cerca de 110 desalojados, segundo o pastor que coordena o projeto, oferece quatro refeições e banho quente, além de assistência médica e psicológica.
Muitos desabrigados pelas enchentes na região procuram a igreja Aliança Cristã de Porto Alegre para se alojar temporariamente enquanto não podem voltar para suas casas, muitas delas completamente cobertas pela água.
Mas quem chegou ao abrigo nesta quarta-feira deu um passo atrás após ler o aviso colado no portão: “Não temos mais vagas”.
Dentro, o ambiente de três andares da igreja possui diversos salões que hoje fazem as vezes de quartos. Os ambientes onde geralmente há oficinas hoje têm colchões no chão, roupas estendidas nas janelas e potes de ração para os cães.
Para evitar que eles fujam, a porta de um dos quartos dá outro aviso em uma folha de sulfite: “Favor não abrir! Tem cachorro”.
Chorando, Roselaine da Silva conta à reportagem que está alojada na igreja com os três filhos, um deles autista, e dois cães.
As lágrimas correm do rosto quando lembra dos dois gatos que deixou para trás no bairro do Sarandi, na zona norte de Porto Alegre. Os felinos estão no telhado da casa da família, a única parte que não foi engolida pela água.
“Eu não sabia que a água tomaria essa proporção toda. Eles [gatos] estão no telhado, mas são muito ariscos. Meu filho tentou pegá-los hoje, mas não conseguiu. Já chorei muito, me culpo muito por isso. Eu os deixei num local seguro, com água e comida, e mesmo assim aconteceu isso”, diz emocionada.
Ela também chora ao responder que uma das coisas mais importantes que ficou para trás na enchente foi o álbum de figurinhas da Copa do Mundo do filho dela, que é autista.
“Ele chegou a levar o álbum para outra casa porque pensou ser um local mais alto e seguro, mas esse lugar também alagou. Ele está arrasado”, conta a mãe.
O pastor Dari Pereira diz que estuda ampliar a quantidade de pessoas abrigadas na igreja.
“Enquanto isso, nós recebemos um boletim de área dos locais que têm vagas. Então quando alguém chega aqui, dizemos que não tem vaga, mas falamos onde tem. E fazemos essa realocação”, explica, enquanto coordena dezenas de voluntários.
Enquanto parte dos voluntários estocam a água, outros separam as roupas doadas por tamanho e parte da equipe distribui as dezenas de marmitex quentinhas que acabaram de chegar, também como doação.
O pastor Dari faz parte de uma rede de 24 igrejas evangélicas de Porto Alegre.
Todas estão funcionando como abrigos e acolhem 1.600 pessoas no momento. A rede de igrejas ainda tem seis centros de distribuição de doações.
Para o pastor, foi essencial abrigar não apenas as pessoas, mas também seus animais de estimação. Ele afirma que isso é essencial no processo de recuperação psicológica das famílias.
“A gente não separou as pessoas dos animais porque separá-los era retirar tudo o que elas tinham. Hoje, a veterinária avaliou que esses animais não podem ficar aqui dentro sob o risco de transmitir doenças. Mas a escola aqui na frente nos cedeu o ginásio para que a gente construísse um canil e um gatil”, conta Dari.
Enquanto o pastor conversava com a reportagem, ele observava com olhar de preocupação a chuva nas ruas da cidade de Porto Alegre.
Ao ser questionado sobre um possível agravamento das enchentes, ele diz que se sente apreensivo, mas que ele e os voluntários da igreja estão preparados para um trabalho a longo prazo.
“Desde ontem, a gente está trabalhando com a possibilidade de ser um abrigamento prolongado de pelo menos 30 dias, e estamos trabalhando para isso”, diz o pastor.
Dari afirma que os interessados podem fazer doações para esse projeto que ajuda os desabrigados por meio da chave Pix: 93.315.992/0001-27. O beneficiário é a Igreja Aliança Cristã - POA.
Na quarta-feira, a Defesa Civil do Rio Grande do Sul já havia emitido um alerta para "chuva forte, vento isolado acima dos 90 km/h, descargas elétricas e eventual queda de granizo" em áreas do Estado.
Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), em algumas regiões a precipitação prevista para os próximos dias poderá passar de 100 milímetros diários.
À medida que o grande volume de água do norte e do centro do Rio Grande do Sul escoou para áreas mais populosas, na região metropolitana de Porto Alegre e na Costa Doce das lagoas dos Patos e Mirim, produziu-se um efeito que agravou o quadro no Estado.
Mesmo tendo se passado dois dias sem uma quantidade de chuva significativa nessa região, foi crescente o número de habitantes que passaram a sofrer com a falta de luz e de água potável, a incomunicabilidade em razão do colapso das comunicações, a impossibilidade de locomoção e a insegurança nos arredores.
Foi o caso dos moradores de um condomínio na divisa dos bairros Menino Deus e Cidade Baixa que foram resgatados por vizinhos e voluntários entre segunda-feira (06) e quarta (08).
O local, com 60 apartamentos distribuídos em duas torres, começou a ficar isolado pela enchente na manhã de segunda.
Naquele momento, a enchente já castigava outras regiões de Porto Alegre havia quatro dias.
Todos os que deixaram o prédio só se molharam nos últimos minutos, ao chegar ao térreo para deixar o local.
Na segunda-feira, era possível transitar pelo local na ponta dos pés. À tarde, já atingia a altura dos joelhos de um adulto. Na quarta, a água já chegara a 1 metro e 70 centímetros.
"Quando saí para trabalhar, na segunda, meu automóvel, um Chrysler Cruiser, ainda atravessava a água acumulada na calçada. À tarde, o resgate já estava sendo feito por um caminhão do Exército e uma caminhonete", relata a moradora Magda Moura, fisioterapeuta de 45 anos.
"Na quarta, o resgate estava sendo feito por barco."
Por dois dias, Magda, casada com o construtor Angelo Tarouco, 49 anos, síndico do condomínio, envolveu-se no socorro a moradores.
O último resgate ocorreu às 16h de quarta-feira. Segundo a fisioterapeuta, de todos os ocupantes das torres, apenas um casal jovem permaneceu no local com dois gatos de estimação.
"O casal diz que tem mantimentos para sete dias", relata Magda.
Um dos temores com os que decidiram permanecer no local é o de que o prédio — sem luz e câmera de segurança e com água no nível da cerca de proteção — seja alvo de assaltantes.
O condomínio fica a poucas quadras de distância das sedes do Ministério Público e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e de unidades da Brigada Militar, incluindo um quartel do Corpo de Bombeiros.
Apesar da tensão, a fisioterapeuta diz que nada se compara à sensação de alívio de salvar os vizinhos.
"Estamos fazendo isso por todos. Tu não tens noção da alegria de ver alguém saindo de lá", desabafa Magda.
Outro exemplo é o de Dorenir da Silva Constante, 54 anos. Na madrugada do dia 26 de abril, ela escapou de um incêndio em uma pousada da rede de acolhimento a vulneráveis da prefeitura que deixou mais de 10 mortos e 13 feridos.
Em seguida, ela abrigou-se com a filha em um prédio do bairro Floresta. No sábado (04), foi desalojada pela segunda vez, desta vez em razão da água que tomou o bairro.
Em 2023, o Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) divulgou um estudo com três cenários para cheias do Guaíba, que atinge a cota de inundação a 3 metros.
O mais conservador considerava um nível de 5 metros; o intermediário, de 5 metros e 50 centímetros; e o pessimista, de 6 metros.
O nível máximo atingido pelo lago foi de 5 metros e 35 centímetros, na madrugada de domingo (05). O número ficou entre o cenário intermediário e o pessimista.
Nesse caso, porém, o modelo previa que a água poupasse parte dos bairros Menino Deus, Cidade Baixa e Azenha.
Nesses locais, que estão entre os bairros mais populosos da capital — o Menino Deus, com cerca de 100 mil habitantes, é mais povoado do que cerca de 95% dos municípios brasileiros —, a água avançou além do perímetro estimado em razão do desligamento imprevisto de uma casa de bombas de drenagem junto à Avenida Beira-Rio.
Com a medida, o conteúdo da tubulação que deveria ser devolvido ao Guaíba foi despejado nas ruas.
As bombas são alimentadas pelo sistema elétrico abastecido pela concessionária de energia CEEE Equatorial. Decidido às pressas para evitar curto-circuito e descargas elétricas, o desligamento pegou a população desses bairros de surpresa, dificultou a evacuação e deixou a região às escuras.
O geólogo Carlos Augusto Brasil Peixoto, 62 anos, morador do Menino Deus que participou da elaboração do primeiro mapa de risco de desastres naturais da Capital, entregue ao prefeito Sebastião Melo (MDB), em 2012, ficou perplexo diante do avanço da água no bairro.
"A gente tem um conjunto de obras para conter inundações: o Muro da Mauá, um talude do Gasômetro ao Pontal do Estaleiro e casas de bombas que servem para tirar água do Guaíba e lançá-la no Arroio Dilúvio. Não entendo por que essas casas de bomba não são mais altas. Elas operam com os motores afogados, como se diz em engenharia", afirma à reportagem enquanto caminha pela Avenida José de Alencar, uma das vias centrais do Menino Deus.
No sábado, a água da primeira fase da enchente estava perto do Hospital Mãe de Deus. Na quarta-feira, já tinha progredido por pelo menos duas quadras, até a rua Bastian.
Em 1941, lembra o geólogo, a água levou 31 dias para chegar ao nível normal.
"Agora, vai levar quanto tempo? 45 dias?", questiona.
A tragédia na região metropolitana extrapola em muitos quilômetros a área coberta pela água e pela lama vista em imagens de satélite registradas no início das inundações.
Parte da população em áreas secas não conseguiu ou não quis deixar as residências, onde permanece sem água e luz.
Em algumas dessas regiões, o isolamento ocorre em razão do bloqueio de vias próximas.
Na terça-feira, mais de 85% dos bairros da capital estavam sem água em razão do desligamento de estações de tratamento de água do Departamento Municipal de Águas e Esgotos (Dmae).
Uma dessas estações, no bairro Moinhos de Vento, deixou sem abastecimento as regiões de maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da capital e também as com população mais velha.
Em alguns condomínios de várias regiões, moradores foram obrigados a usar água das piscinas para higiene.
Muitas vezes, a orientação para isso partiu da própria administração dos condomínios, uma vez que caixas d’água deixaram de receber água do sistema municipal de abastecimento já no sábado.
Empresas de caminhões-pipa, que costumam ser acionadas em casos semelhantes, tinham deixado de responder a chamados no final de semana em razão do aumento da demanda.
Outro problema, esse recorrente no Estado, é o apagão. Um número incerto de bairros da capital está sem luz ou com abastecimento oscilante.
Idosos e crianças, sobretudo em andares altos, têm com dificuldade para deixar suas residências.
O calor, a água empoçada e a lama agravam o risco de proliferação de doenças como leptospirose e dengue.
Para piorar o quadro, a frente fria que avança pelo sul do Estado deve trazer temperaturas baixas — que já são esperadas em condições normais nesta época do ano e podem afetar pessoas ilhadas e em abrigos que conseguiram até agora escapar dos piores efeitos da cheia.
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