Em pouco menos de uma semana, chefes-de-Estado de diferentes partes do mundo deverão se encontrar no Rio de Janeiro para a reunião de Cúpula do G20, o grupo reúne as 19 maiores economias do mundo, União Europeia e União Africana. Entre eles estarão o norte-americano Joe Biden e o chinês Xi Jinping. A cúpula de líderes será realizada na segunda-feira (18/11) e na terça-feira (19/11).
A reunião vai marcar o fim da presidência brasileira do grupo, iniciada no ano passado, e uma tentativa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de deixar algum legado em um dos fóruns multilaterais mais importantes do mundo.
Para isso, a diplomacia brasileira tentou contornar pontos sensíveis aos diversos integrantes do G20 como os conflitos na Ucrânia e no Oriente Médio e apostou em temas com maior potencial de convergência como o combate à fome e a desigualdade.
Diplomatas e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil nos últimos meses avaliam a presidência da brasileira do grupo como positiva, mas ressaltam que a vitória de Donald Trump nas eleições norte-americanas pode representar um esvaziamento da cúpula a ser realizada na capital fluminense. Isto ocorreria porque Trump ficou conhecido em seu primeiro mandato por adotar uma política externa isolacionista e menos focada nos órgãos multilaterais como o G20.
Eles avaliam que o Brasil teve êxito em propor medidas concretas em áreas como o combate à fome — agenda que mais avançou nos meses da presidência brasileira —, mas ressaltam que o possível desengajamento dos Estados Unidos nos fóruns multilaterais será um desafio para o futuro do G20.
Desde que assumiu a presidência do grupo, o Brasil estabeleceu três prioridades:
Diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil e especialistas apontam que, das três agendas principais apresentadas pelo Brasil, a que mais avançou foi a do combate à fome e à pobreza. No primeiro dia da cúpula, o presidente Lula deverá lançar aquela que é considerada a principal entrega do país durante a presidência do G20: Aliança Global Contra a Fome.
Trata-se de um mecanismo que pretende facilitar o acesso de países pobres ou em desenvolvimento a financiamento e a políticas públicas voltadas para a redução da fome e da pobreza. A previsão é de que o mecanismo funcione pelo menos até 2030 e contará com recursos de entidades filantrópicas e bancos multilaterais de desenvolvimento.
A aposta brasileira neste tema foi explicada pelo embaixador e secretário de Assuntos Econômicos e Financeiros do Ministério das Relações Exteriores (MRE), Maurício Lyrio, principal negociador brasileiro no G20.
“Um dos objetivos da presidência brasileira foi centrar-se em resultados concretos em torno de temas que são mais capazes de angariar consenso generalizado. Não há país que considere que retirar 733 milhões de pessoas da situação de fome seja algo negativo. Vamos começar por aí", afirmou o diplomata em entrevista coletiva à qual a BBC News Brasil participou na semana passada.
A iniciativa é vista por integrantes do governo ouvidos em caráter reservado como a principal tentativa de Lula deixar um legado para o G20 em um tema em que o Brasil foi e ainda é considerado uma referência.
“O Brasil conseguiu pautar algumas discussões bastante relevantes, particularmente em um tema que era uma prioridade do Brasil, como o combate à fome e à pobreza e à miséria. Acho que essa é uma grande contribuição da presidência brasileira no G20”, diz à BBC News Brasil o professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Haroldo Ramanzini Júnior.
O Brasil também apostou em uma proposta de taxação global sobre grandes fortunas, uma bandeira antiga de Lula e que vem ganhando popularidade em diversos países.
O projeto brasileiro previa um imposto de até 2% sobre a riqueza de bilionários bilionários de todo o mundo.
Segundo as projeções feitas pelo economista francês Gabriel Zucman, que foi contratado para elaborar a proposta, a taxação seria capaz de arrecadar entre US$ 200 bilhões e US$ 250 bilhões por ano.
A ideia do governo brasileiro é que esses recursos fossem usados em políticas contra a fome e que promovam a transição energética.
Em julho, os ministros de finanças do G20 aprovaram um documento defendendo a adoção de políticas de tributação progressiva, inclusive sobre os chamados “ultrarricos”.
“É importante que todos os contribuintes, inclusive os indivíduos ultrarricos, contribuam com a sua justa parcela de impostos. A elisão fiscal agressiva ou a evasão fiscal por parte de indivíduos ultrarricos pode comprometer a equidade dos sistemas tributários, o que acarreta uma menor efetividade da tributação progressiva”, diz um trecho do documento.
A aprovação do texto foi considerada uma vitória pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, mas do ponto de vista simbólico, ainda é preciso que o assunto conste na declaração final da cúpula dos líderes. A tendência é que, como já foi aprovada pelos ministros da área econômica, a ideia sobre uma taxação sobre grandes fortunas seja aprovada pelos líderes do G20.
O problema, porém, é que, como o G20 não tem caráter decisório, não há garantias de que os países adotem, de fato, o que foi decidido durante a cúpula. Apesar disso, o professor de Relações Internacionais da Universidade de Toronto e diretor do G20 Research Group, John Kirton, afirma que há expectativa de que o assunto possa ser incorporado pelos países.
“Não há certeza absoluta no mundo político, especialmente em política internacional, onde não há chefes ou autoridades superiores [...] Mas mesmo o G20 sendo um mecanismo que não obriga os países a adotarem suas deliberações, o que temos visto é que os países acabam incorporando parte do que é decidido nas cúpulas em suas políticas domésticas”, afirma Kirton à BBC News Brasil.
As outras duas prioridades estabelecidas pela presidência brasileira, reforma da governança global e transição energética e desenvolvimento sustentável, também resultaram em declarações ministeriais, mas a avaliação dos especialistas e de diplomatas estrangeiros ouvidos em caráter reservado é de que os resultados nestes campos foram mais limitados.
Em matéria ambiental, o governo brasileiro entregou um detalhamento maior do Fundo para as Florestas Tropicais para Sempre (TFFF, na sigla em inglês), que já havia sido apresentado durante a Conferência da ONU para o Clima em 2023, a COP 28.
Apesar disso, um diplomata brasileiro ouvido pela BBC News Brasil disse avaliar que as discussões em torno do meio ambiente durante o G20 teriam sido menos intensas por conta da coincidência entre a reunião no Brasil e a COP 29, que está ocorrendo no Azerbaijão.
Com relação à reforma da governança global, o G20 aprovou uma declaração de ministros de Relações Exteriores em que os países se comprometem a “perseguir” objetivos como a reforma de instituições internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Conselho de Segurança da ONU e os sistemas financeiro e de comércio internacional.
O professor John Kirton, do G20 Research Group, avalia que as tensões globais e a disputa de poder entre países como os Estados Unidos, China e Rússia ajudam a explicar os motivos pelos quais esta agenda, apesar da declaração, teria sido a que avançou menos. O G20 Research Group é um grupo de pesquisadores, professores e estudantes que se debruçam sobre o G20 há mais de 15 anos.
“Certamente, a prioridade que vai avançar menos é a reforma da governança global. E acho que o próprio presidente Lula já sabia disso há alguns meses. Por isso o Brasil liderou esse chamado para que o assunto seja debatido no ano que vem. Não é nem para fazer a reforma em si, mas para manter o assunto na pauta”, diz Kirton.
Mas se de um lado Lula tenta deixar seu legado à frente do G20, por outro, a vitória de Trump é vista nos bastidores com preocupação uma vez que o republicano ficou conhecido por adotar uma política externa isolacionista.
“Há um esvaziamento natural da reunião do G20 com a vitória de Trump. Isso acontece porque ele tem uma plataforma que é contrária ao multilateralismo. Ele defende abertamente o protecionismo e isso vai contra o que preconiza o G20. É um duro golpe ao multilaterismo", diz à BBC News Brasil o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Belém Lopes.
Durante seu primeiro mandato à frente do governo norte-americano, Trump tirou os Estados Unidos do Acordo Climático de Paris e criticou parceiros europeus da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) por supostamente não pagarem suas contribuições.
Algumas posições de Trump também vão na contramão das declarações assinadas até o momento durante a presidência brasileira do G20.
O republicano, por exemplo, se elegeu prometendo cortar impostos e não criar mais tributos, na contramão do projeto de aumentar a taxação sobre ultrarricos.
Outro ponto sensível é a questão climática. Trump se elegeu prometendo dar novo impulso à indústria do petróleo norte-americana, o que contraria os apelos da comunidade científica mundial que defendem que o planeta precisa reduzir urgentemente o seu consumo de combustíveis fósseis para evitar as piores consequências das mudanças climáticas.
Oficialmente, a diplomacia brasileira tenta minimizar uma eventual ruptura causada pela chegada de Trump ao poder mais uma vez, mas nos bastidores há o temor, inclusive, de o governo Trump decidir pela saída do país da Aliança Global Contra a Fome e Pobreza, anunciada por Biden durante ligação com Lula na semana passada.
“Nós conhecemos as posições dos diversos países e de presidentes, como o presidente eleito Trump. Sabemos a posição (dele) e o que foi feito antes. Elas serão, objeto, naturalmente, de conversas, diálogos e negociações. É um presidente que já exerceu um mandato e agora volta. Com relação ao G20, minha impressão é de que ele, inclusive, participou de todas as cúpulas durante o seu mandato”, afirmou o embaixador brasileiro Maurício Lyrio.
Para o professor John Kirton, da Universidade de Toronto, a chegada de Trump ao poder pode “machucar” o G20, mas não destruí-lo. O professor diz acreditar que, apesar de pregar mais isolacionismo, Trump terá que se render à realidade de que os Estados Unidos não teriam condições de, sozinhos, resolver todos os seus problemas.
“Trump não pode salvar a economia dos Estados Unidos sem a ajuda concreta dos seus aliados”, afirma o professor.
O G20, ou Grupo dos Vinte, é um clube de países que se reúne anualmente para discutir questões globais nas esferas econômica e política. Ele não tem caráter deliberativo como a Organização das Nações Unidas (ONU). Os resultados das suas discussões são normalmente tomados como sugestões a serem adotadas pelos países participantes.
Ele foi fundado em 1999 após a crise financeira asiática e foi concebido inicialmente como um fórum para ministros de finanças e autoridades discutirem maneiras de restaurar a estabilidade econômica do planeta naquela época. Juntos, os países do G20 representam 85% do produto interno bruto (PIB) mundial e mais de 75% do comércio global e mais de dois terços da população mundial.
A primeira reunião de cúpula de líderes do grupo foi realizada em 2008 em resposta a uma outra crise financeira mundial: a crise da economia norte-americana. Nos últimos anos, o G20 passou a incluir questões como mudanças climáticas e energia sustentável.
Os membros do G20 são a União Europeia, a União Africana e mais 19 nações: Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, França, Alemanha, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Rússia, Arábia Saudita, África do Sul, Coreia do Sul, Turquia, Reino Unido e Estados Unidos.
Todos os anos, um estado membro diferente do G20 assume a presidência e define a agenda para a cúpula dos líderes. Neste ano, foi a vez de o Brasil organizar o evento. Em 2025, será a vez da África do Sul. Em 2026, a previsão é de que seja nos Estados Unidos.
Tradicionalmente, as negociações do G20 são divididas em dois grupos, conhecidos como trilhas. A “Trilha dos Sherpas” é a que cuida dos assuntos mais relacionados à agenda política e geopolítica. Neste ano, ela foi comandada pelo embaixador brasileiro Maurício Lyrio.
A outra é a “Trilha de Finanças”, comandada pelas pastas econômicas de cada país. Neste ano, quem comandou esta área foi a diplomata e secretária de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, Tatiana Rosito.
Em síntese, o trabalho deles é finalizar as negociações antes da reunião dos chefes-de-Estado para que a declaração final da cúpula esteja praticamente pronta quando eles se encontrarem.
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