> >
Mães Mohawk, as indígenas que lutam para descobrir o que aconteceu com crianças em experimento cruel da CIA

Mães Mohawk, as indígenas que lutam para descobrir o que aconteceu com crianças em experimento cruel da CIA

Um grupo de líderes indígenas vem tentando, há mais de dois anos, adiar um projeto de construção em uma terra que, segundo eles, pode conter a resposta para o desaparecimento de crianças há mais de meio século

Publicado em 4 de janeiro de 2025 às 14:44

Ícone - Tempo de Leitura 7min de leitura
Imagem BBC Brasil
Kwetiio é uma das Mães Mohawk: 'O que buscamos é desenterrar a verdade' . (Getty Images)

Leire Ventas

"Levaram nossos filhos e fizeram de tudo com eles; fizeram experiências com eles, e nunca mais voltamos a vê-los."

"Ou seja, nosso caso é muito simples: queremos saber exatamente o que aconteceu com eles, quem é o responsável e quem vai pagar por isso."

Quem explica sua situação à BBC News Mundo – o serviço em espanhol da BBC - é Kahentinetha.

Ela tem 85 anos e é oriunda de Kahnawake, comunidade indígena mohawk situada no sudoeste da cidade de Montreal, na província de Quebec, no Canadá.

"O que buscamos é desenterrar a verdade", completa Kwetiio, de 52 anos. Ela é companheira de luta de Kahentinetha à frente das Kanien'kehá:ka kahnistensera – em língua iroquesa, as Mães Mohawk.

As líderes indígenas estão convencidas de que a pista sobre o destino daquelas crianças desaparecidas pode estar embaixo da terra – especificamente, nos terrenos onde é projetada a construção de um novo edifício da Universidade McGill, com apoio do governo de Quebec.

Elas se baseiam em arquivos e testemunhos que indicam que existem no local túmulos não identificados de menores de idade internados no Royal Victoria Hospital de Montreal e no Instituto Allan Memorial, uma instituição psiquiátrica vizinha.

Imagem BBC Brasil
Kahentinetha (centro) e Kwetiio (dir.) enfrentam os tribunais há mais de dois anos, acompanhadas pelo antropólogo Philippe Blouin. (Getty Images)

Por trás dos muros da instituição, nas décadas de 1950 e 1960, a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) financiou um programa sinistro e ultrassecreto de experimentos humanos, chamado MK-Ultra.

Em plena Guerra Fria, o programa consistia em submeter os pacientes, incluindo crianças indígenas, a descargas elétricas e privação sensorial, fornecendo drogas alucinógenas com o objetivo de desenvolver procedimentos e produtos farmacêuticos eficazes para lavagem cerebral.

Com isso em mente e armadas com a responsabilidade de proteger as crianças, própria das mulheres da sua nação, as Mães Mohawk enfrentam, há dois anos, uma batalha legal para tentar postergar as obras previstas.

"Porque, se não fizermos agora e os trabalhos continuarem, recuperar a verdade será muito mais difícil para as gerações futuras", diz Kwetiio.

O programa 'mais secreto' da CIA

Conhecido como "o Allan", o instituto esteve sob a direção do escocês-americano Donald Ewen Cameron (1901-1967), considerado na época um dos psiquiatras mais eminentes do mundo.

A instituição foi o epicentro das práticas mais extremas do MK-Ultra.

O programa veio a público há mais de 45 anos, quando a CIA foi forçada a publicar documentos que confirmaram o que algumas pessoas já suspeitavam: que a agência havia financiado experimentos de controle mental, muitas vezes sem o consentimento ou o conhecimento das vítimas.

Imagem BBC Brasil
As Mohawk Mothers acreditam, com base em testemunhos e arquivos, que sepulturas não identificadas de menores de idade estão sob o terreno a ser construído. (Getty Images)

Tudo começou no início da década de 1950.

A Guerra Fria (1947-1991) estava em pleno apogeu e os serviços de inteligência americanos ficaram alarmados porque alguns prisioneiros de guerra libertados na Coreia voltaram para casa defendendo a causa comunista.

Receando que os chineses e soviéticos pudessem ter desenvolvido técnicas de controle mental e que seus agentes ou prisioneiros de guerra pudessem revelar informações, a recém-formada CIA destinou US$ 25 milhões para experimentos psiquiátricos em seres humanos.

"A ideia era tentar descobrir como interrogar as pessoas e debilitá-las, bem como proteger seu próprio pessoal contra essas técnicas", explicou em 2012 o psiquiatra Harvey M. Weinstein, autor do livro A Father, a Son and the CIA ("Pai, filho e a CIA", em tradução livre), ao programa de rádio Witness History, do Serviço Mundial da BBC.

A agência utilizou organizações como fachada para abordar mais de 80 instituições e cientistas nos EUA, Reino Unido e Canadá.

"Foi o programa mais secreto já realizado pela CIA", declarou à BBC o historiador Tom O'Neill.

Existem até hoje muitas perguntas sem resposta sobre o programa.

"Existe muito segredo em torno dos experimentos médicos, já que muitos documentos foram destruídos", disse à BBC News Mundo o antropólogo Philippe Blouin, que presta assistência às Mães Mohawk na sua busca. "E os únicos lugares onde existem provas [da sua existência] são as recordações das pessoas, os sobreviventes, a comunidade e embaixo da terra."

Paralelamente, a Universidade McGill e a Sociedade de Infraestrutura de Quebec (SQI, na sigla em francês – a agência do governo da província que administra o local) defendem que as Mães Mohawk e o interlocutor especial nomeado para a ação judicial não identificaram pacientes desaparecidos depois de receberem tratamento no Royal Victoria Hospital ou no Instituto Allan Memorial.

A batalha nos tribunais

Imagem BBC Brasil
A obra 'Os filhos do cérebro', no Hospital e Instituto Neurológico de Montreal, no Canadá. (Getty Images)

Em outubro de 2022, as Mães Mohawk conseguiram uma ordem judicial para suspender temporariamente as obras do projeto milionário, que inclui a renovação dos edifícios existentes e a construção de um novo campus universitário e centro de pesquisa.

As Mães Mohawk conseguiram a decisão sem advogados. Elas mesmas representaram a si próprias.

"Usamos as nossas formas porque ninguém pode falar por nós", explica Kwetiio.

Após a decisão, houve um acordo de conciliação em abril de 2023, que garantiu às Mães Mohawk o acesso aos arquivos da Universidade McGill, incluindo um plano arqueológico para o local, orientado por um grupo de especialistas selecionado pelas partes. Este grupo recomendaria os métodos e procedimentos a serem seguidos.

Foi assim que, em meados de 2024, cães farejadores e sondas especializadas examinaram os amplos edifícios da propriedade em ruínas. E eles conseguiram identificar três áreas de interesse para as escavações.

Mas tanto McGill quanto a SQI, que também assinou o acordo, defendem que "até o momento, não foram descobertos restos humanos".

Além disso, depois que o grupo de especialistas publicou seu último relatório, no dia 17 de julho de 2023, seu trabalho foi finalizado, conforme estabelecido no acordo.

"Mas o acordo de conciliação indica que, no caso de uma descoberta inesperada, a McGill, o SQI e Kahnistensera irão buscar o conselho do grupo", confirmou a universidade à BBC News Mundo. E "até hoje, não ocorreu nenhuma descoberta inesperada".

Seguindo a mesma linha, a SQI destacou que sempre teve a intenção de "lançar luz, em espírito de colaboração, sobre as alegações relativas à presença de corpos enterrados", mas que, até hoje, nenhum foi encontrado.

Em entrevista ao site canadense Citynews, eles destacaram que continuam "respeitando o acordo de conciliação" e que seguiram "todas as recomendações do grupo de especialistas".

Imagem BBC Brasil
Kwetiio em frente à placa que identifica a ala McConnell do Instituto e Hospital Neurológico de Montreal, em 17 de julho de 2024. (Getty Images)

Mas as Mães Mohawk acusam as duas organizações de descumprir "o espírito e o texto" do acordo. Por isso, elas recorreram novamente à justiça.

"Eles outorgaram a si mesmos o poder de dirigir a investigação de possíveis crimes cometidos por seus próprios funcionários no passado", explica o antropólogo Philippe Blouin. "Existe, no mínimo, um conflito de interesses."

As líderes indígenas também destacam que a McGill e a SGI selecionaram apenas "as recomendações do grupo de especialistas que eram convenientes para elas, rejeitando as demais". E garantem que existem evidências perdidas por esta razão.

Depois de perderem no tribunal de recursos, elas decidiram, no mês de outubro, levar o caso para a Corte Suprema do Canadá, a mais alta instância judicial do país.

"Nossos filhos são parte de nós", explica Kwetiio. "Nascemos com isso, cada uma de nós, como mulheres, nascemos com esta responsabilidade."

"É preciso também dizer isso na Suprema Corte, pois existe esse relatório da Comissão da Verdade e Reconciliação, que diz que precisamos ser ouvidos e que a verdade deve vir a público, para que haja reconciliação."

Passado de atrocidades

Apenas poucos anos atrás, começaram a vir a público no Canadá as atrocidades cometidas ao longo de décadas contra os povos originários.

Gerações de crianças indígenas foram enviadas para internatos, onde foram despojadas da sua língua, religião e identidade.

No seu relatório de 2015, a Comissão da Verdade e Reconciliação qualificou o ato de "genocídio cultural".

Entre 1831 e 1996, cerca de 150 mil menores de idade foram retirados dos seus lares e internados em 139 desses centros. Milhares deles nunca regressaram às suas comunidades de origem.

"Eles os levavam e não voltávamos a vê-los, ou regressavam depois de terem sido submetidos a procedimentos, lobotomizados e passavam os anos seguintes sentados na varanda, aos cuidados dos seus familiares", conta Kahentinetha. "Todos nós temos estas recordações permanentes."

Imagem BBC Brasil
'Proibido o colonialismo', diz o cartaz na grade em frente ao antigo Royal Victoria Hospital de Montreal, durante um protesto para recordar as atrocidades cometidas por décadas no Canadá contra os povos originários. (Getty Images)

Em maio de 2021, a descoberta dos túmulos anônimos de 215 crianças na Escola Residencial Indígena de Kamloops, na província canadense da Colúmbia Britânica, gerou uma reflexão nacional sobre este obscuro capítulo da história canadense. E também levou à busca de outros túmulos com as mesmas características em todo o país.

"Não se tratou apenas de internatos, mas também de hospitais, sanatórios, igrejas e orfanatos", denuncia Kwetiio.

"Eles queriam nos exterminar", prossegue Kahentinetha. "Mas continuamos aqui e a verdade precisa vir a público para que não volte a se repetir."

Leia a versão original desta reportagem (em espanhol) no site BBC News Mundo.

Este vídeo pode te interessar

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais