Tom Zé estava com medo.
Nem mesmo a avançada idade, nem os vários hits e prêmios como músico o tranquilizavam antes de receber a BBC News Brasil para uma entrevista em sua casa, em São Paulo.
"Quando eu era pequeno, eu era o rei do medo", ele se referiria, instantes depois, ao sentimento que o acompanha desde a infância em Irará, cidade no interior da Bahia onde nasceu, em 1936.
O músico será homenageado neste sábado (8/3) pelo bloco de Carnaval Abacaxi de Irará, que desfilará no bairro das Perdizes, em São Paulo.
Se Tom Zé der as caras, como fez em desfiles anteriores do bloco, será sua primeira aparição pública após passar 20 dias hospitalizado, em setembro de 2024, por causa de uma queda. Poucos dias antes da internação, havia sido hospitalizado por causa de uma gripe.
À BBC ele explicou o motivo de seu medo na véspera da entrevista.
"É que, aqui no Brasil, o pessoal de música gosta muito de me jogar fora", disse.
Mas o mesmo medo que paralisou Tom Zé em vários momentos de sua vida — como quando não conseguiu tocar violão para a primeira namorada — também tem sido um motor para sua criatividade, ele diz.
Uma vez, antevendo uma surra materna por jogar bola enquanto chovia, convenceu um amigo a se passar por ele para enganar a mãe e escapar da punição. Funcionou.
Décadas depois, quando estava em baixa e temia ter de abandonar a carreira, bolou uma "armadilha" para recapturar o público: comprou cordas e arame farpado e os colocou na capa do disco Estudando o samba, de 1976.
O artifício chamou a atenção do músico e produtor americano David Byrne, que se encantou pelo álbum e não só ajudou Tom Zé a se reerguer como abriu as portas para ele na Europa e nos Estados Unidos.
Foi um dos pontos altos de uma trajetória que também incluiu participação na Tropicália, movimento cultural dos anos 1960 que teve como outros expoentes os músicos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e o grupo Os Mutantes.
Mas a parceria terminou mal, e Tom Zé chegou a acusar Caetano de tentar apagá-lo do movimento. Na entrevista à BBC, ele se refere ao episódio como a segunda vez em que foi "enterrado vivo".
O primeiro "enterro" ocorreu na juventude em Irará — e a primeira ressurreição, no momento em que ouviu a cidade cantando uma de suas primeiras composições.
Também foi na cidade natal que ele diz ter sido exposto a uma de suas principais referências como artista: a cultura moçárabe.
O termo se aplica à cultura que se desenvolveu nas partes de Portugal e da Espanha que foram ocupadas por muçulmanos do norte da África a partir do século 8.
Também chamados de mouros, eles só foram completamente expulsos em 1492, com a retomada do reino de Granada, na Espanha, por reis católicos.
O domínio islâmico, porém, deixou marcas presentes até hoje nessas regiões e em seus habitantes — marcas que, segundo Tom Zé, também alcançaram o interior do Nordeste quando migrantes portugueses e espanhóis passaram a habitar a região.
Tom Zé deixou Irará no fim dos anos 1960 para viver em São Paulo, homenageada por uma de suas músicas mais famosas, Augusta, Angélica e Consolação.
No início da entrevista, ele se lembra de um episódio que marcou seu primeiro contato com a BBC News Brasil.
Aos 8 anos de idade, um professor lhe contou que a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) tinha acabado após ouvir uma transmissão de rádio da emissora.
"Tudo mudou para mim, porque a guerra metia medo mesmo. Medo constante", ele conta.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Como você lida com o medo?
Tom Zé - Quando eu era pequeno, eu era o rei do medo. O medo era o primeiro passo, a primeira coisa que estava em mim. Não sei dizer por que isso. Medo e acanhamento. Minha mãe era muito severa. Deus a abençoe, porque talvez precisasse ser, porque a gente era muito traquina.
Eu vou contar um episódio. Eu estava jogando bola. Minha mãe por acaso foi nas janelas do lado, e aí me viu jogando bola lá. Chuviscava. E jogar bola era crime e chuviscando era crime dobrado. [Ela gritou]: "Antônio José!”.
Aí eu tive um sinal de que eu era capaz de algumas coisas na vida. Eu chamei o menino que mais parecia fisicamente comigo, Carlito. Pedi a ele para botar minha boina e passar na rua de baixo, onde minha mãe estava na janela, e fazer de todo jeito que minha mãe visse ele.
E ele topou a parada. Tanto que quando eu cheguei no corredor de casa, minha mãe: "Eu já estava com a palmatória aqui". Eu fiquei tão assombrado de ter evitado a surra e de ter enganado minha mãe com tanta perfeição que parecia quase que eu ia confessar.
BBC News Brasil - Ainda tem alguma coisa que te bote muito medo?
Tom Zé - Hoje de manhã, por exemplo, eu tive um ataque de medo com esta entrevista. A Neusa [Martins, sua esposa e empresária] me acalmou: 'Deixa de ser'.
Sabe por quê? Eu li uma crônica em um jornal daqui de São Paulo. É que, aqui no Brasil, o pessoal de música gosta muito de me jogar fora. E tinha [nessa crônica] música de pessoas assim, assado, baião, xaxado, música de protesto, não sei que lá, e não tinha nada meu.
Quando acordei de manhã, acordei parecendo que eu estava condenado, porque eu ia falar com você como se você fosse cobrar isso, entendeu? Ou como se esse povo fosse chegar aqui e me interromper dizendo 'não, você não é nada'.
Tanto que eu tomei calmante de manhã, tomei fortificante. Agora tomei café, que é um fortificante que eu tomo também.
BBC News Brasil - Qual a sua idade?
Tom Zé - Eu tenho 67. [A esposa Neusa Martins o corrige: "87", idade que ele tinha no dia da entrevista]. 87. Engraçado eu baixar minha idade. Eu nasci em 1936.
BBC News Brasil - E com quantos anos você se sente?
Tom Zé - Aí depende. Eu tive covid na terceira fase COMO ASSIM TERCEIRA FASE?, mas eu fiquei com rescaldos. Eu fiquei com uma moleza terrível. Fiquei completamente diferente em minha vida. Por exemplo, agora, como que eu estou me sentindo? Estou muito excitado. Que é uma coisa que eu sinto quando estou trabalhando, quando estou para subir no palco.
Eu chego lá, eu grito duas horas, berro, luto para fazer o melhor possível. Só no outro dia de manhã é que vou sentir o cansaço.
BBC News Brasil - Tem até uma música sua, 1, 2, identificação, em que você diz que o tempo de vida previsto para uma pessoa é de 600 mil horas. Eu fiz as contas e você já ultrapassou esse número em quase 200 mil horas. Como é essa sensação?
Tom Zé - [Risos] Não pensei que eu ultrapassei em 200 mil horas e depois também nem calculei.
Essas 600 mil horas de vida dá quantos anos?
BBC News Brasil - Pouco menos de 70.
Tom Zé - Então, no Brasil, quando eu era criança, as pessoas ficavam velhas com 50 e morriam no máximo com 60. Assim foi toda a família, todos os tios, avós e tudo. Depois em todo o mundo a vida aumentou.
Eu, por exemplo, tenho a saúde que tenho porque eu fiz ginástica desde criança. Quando vim para São Paulo, aconteceu uma metamorfose. São Paulo é uma cidade oriental. Aí, a ginástica, medicina, tudo do Oriente me apanhou logo. Quem me trata agora, por exemplo, é um doutor chinês.
BBC News Brasil - Você fala muito da presença da cultura moçárabe em sua infância em Irará. Como essa cultura o influenciou?
Tom Zé - Quando os árabes, no século 5 depois de Cristo, invadiram Portugal e Espanha, eles eram o povo mais culto do mundo e inclusive estavam divulgando a invenção do zero.
Eu fui cada hora mais me interessando por essa presença árabe, porque aconteceu outra coisa também. Os bárbaros cristãos tinham subido as montanhas e ninguém pensava que as montanhas para Roma seriam atravessadas. E caíram em cima de Roma, dominaram e derrotaram Roma.
E se Roma era o mais difícil de derrotar, derrotaram o mundo todo e o mundo todo passou a ser analfabetizado, exceto Portugal e Espanha, que estavam com o povo mais culto do mundo, e um povo que amava a cultura, naturalmente divulgava e trabalhava com a cultura.
Até hoje tem 20 ou 30 instrumentos que trabalham com a terra, que o nome é árabe e que todo mundo usa e nem sabe disso. A língua portuguesa está carregada de árabe.
BBC News Brasil - Há traços dessa influência árabe em sua obra?
Tom Zé - Eu tive um disco que foi salvo por uma armadilha que eu fiz. Olha que coisa de pessoa árabe, ou de pessoa da roça. O disco chama Estudando o Samba.
Antes de mandar a capa, eu queria fazer uma armadilha na capa para ver se eu pegava alguém.
Eu fui para uma casa de construção. Comprei arame farpado e corda. Aí fui para junto do diretor da parte de capa e botamos assim, botamos assado.
O jeito que ficou mais cabível foi fazer um rodapé de arame farpado. Pois é, o [músico e produtor americano] David Byrne conta — e foi ele quem me salvou —que ele estava olhando discos brasileiros, que geralmente têm na capa praia, moça de biquíni.
De repente, ele viu Estudando o Samba, de Tom Zé, e falou: "Que maluquice é essa, com corda e arame farpado?". Não tinha tempo de ouvir, botou na mala. Eu já estava aqui muito mal de música, já tinha falado com Neusa até de me mudar para Irará para fazer alguma coisa, como no tempo que eu tomava conta da loja do meu pai.
O fato é que eu passei a falar disso quando David Byrne veio a São Paulo me visitar. conversamos mais de duas horas. Aí depois, no mês de maio desse mesmo ano, ele mandou uma carta pelo correio dizendo "Tom Zé, quero fazer um disco inteiro e queria saber se você estava de acordo".
Eu falei: "Tá bem".
BBC News Brasil - Como foi, depois de sua descoberta pelo David Byrne e do sucesso que você conquistou nos Estados Unidos e Europa, pensar que lá fora você tinha mais reconhecimento do que aqui?
Tom Zé - É claro que a gente fica feliz, né? A gente está sendo chamado para cantar, está sendo aplaudido. Os jornais estão falando bem de você.
Quando uma pessoa me chama para trabalhar agora, eu combinei com a Neusa que a gente mande quatro ou cinco notícias da Europa, porque ninguém se lembra mais que eu fiz sucesso na Europa.
BBC News Brasil - Eu queria falar de um show em Recife quando você tinha 63 anos, no Abril pro Rock, em que você foi aplaudido por 15 minutos depois do final do show.
Tom Zé - É claro que foi um dia de glória, porque grande parte da imprensa estrangeira estava aí. Esse Abril pro Rock era uma coisa extra nacional.
[Tom Zé canta:] "Meta sua grandeza no banco da esquina / Vá tomar o verbo, seu filho da letra / Meta sua usura na multinacional / Vá tomar na Virgem, seu filho da...".
Eu acho que a juventude queria dizer isso. E aí, rapaz, acabou a tarde de show naquele palco, ninguém mais pode subir no palco. Foi realmente uma felicidade muito grande, uma alegria.
BBC News Brasil - Eu li o discurso que você fez ali no final do show, de improviso, e em que você dizia: "Vocês salvaram minha vida", e disse que você foi enterrado duas vezes antes daquilo.
Tom Zé - E tanto que Gilberto Gil, uma vez no Rio de Janeiro, me perguntou assim, qual foi a primeira vez? Porque a segunda ele sabia [Tom Zé se refere ao fim conturbado de sua participação na Tropicália].
A primeira vez foi na minha vida em Irará. Eu era de um acanhamento... Ainda na escola primária, eu saí de casa, tava sempre mal, o cabelo, era pequeno demais.
E um dia, veja que coisa fantástica, rapaz. Eu comecei a fazer música. E eu fiz uma música que Irará todo cantou. A música dos doidos. "Guilherme se requebra / Rufino bota pó / Euclides morde o braço / Das Dores Fala só"...
Chega uma segunda-feira, porque era festa da padroeira, e tinha a última coisa, que é a missa. Ensinaram ao pessoal da banda a tocar essa música.
Quando você ouve uma música sua cantada através de outra mídia, você demora muito de identificar a sua música.
Eu demorei até que eu falei: "Meu Deus, a minha música". O povo cantava com entusiasmo, cantando para as janelas como se dissessem: "Hoje nós estamos cantando e nós somos os personagens".
Eu falei assim: "Agora eu sou uma pessoa". Eu, sozinho, lá dentro do clube, olhando para o clube vazio, "eu sou uma pessoa como qualquer outra". Não é que eu fosse maior, não. Aquilo me localizava como um ser humano igual aos outros. Isso, rapaz, era uma alegria.
BBC News Brasil - Como alguém que já foi enterrado vivo duas vezes encara a morte?
Tom Zé - Eu tenho medo, como todo mundo tem. Agora, posso dizer isso porque estou com 86 anos e, de vez em quando, vejo coisas que são o prenúncio. Por exemplo, quando a gente acorda de manhã, a gente não sabe mais caminhar se não prestar atenção. Você começa a perder coisas.
Eu me lembro que [o músico Gilberto] Gil fala que a morte dele ele não quer perder de jeito nenhum, essa passagem. Eu não sei. Eu não tenho medo de nenhum tipo de Deus, nenhum tipo de nada, nunca fiz mal a ninguém.
BBC News Brasil - E você sempre foi muito físico nos seus shows. Você pula, você corre... Mudou algo nisso?
Tom Zé - Quando isso se encorpou, ficou. E eu trabalhei cada hora mais porque eu não tinha confiança na minha voz. A minha voz também me fez passar por um negócio, rapaz.
Tinha 11 anos e tinha uma namorada. Ela chamava Dalma. A namorada me disse um dia: "Eu soube que você toca violão". E aí fiquei entusiasmado porque eu era complexado até com a namorada. "Então vem aqui me mostrar."
Aí um dia eu peguei o violão, fui lá na casa de uns amigos. Não consegui cantar uma música para ela. Conversava sobre uma música, teorizava, falava, botava o acorde, não cantava. Saí de lá em uma destruição total, segurando aquele violão como quem diz "como fui aprender uma coisa dessa que acaba com meus dedos? Nunca mais toco violão na vida".
BBC News Brasil - Você já disse muitas vezes que a maior felicidade da sua vida é trabalhar. Isso ainda vale?
Tom Zé - Vale. Quando eu estou muito cansado, e com o envelhecimento, tem dia que eu faço forçando. Mas vale.
Aí acontece esse mistério quando chega a hora que o show vai começar. Na hora, eu já estou com a disposição. Só Deus sabe onde é que eu arranjo. Não tem, não canso, não fico rouco.
BBC News Brasil - Você ainda tem planos? Coisas que você ainda gostaria de fazer musicalmente?
Tom Zé - Ah, tem. O que está acontecendo com a Terra agora é uma coisa que eu gostaria muito de trabalhar. Com muito respeito, muito conhecimento. Até o papa está se metendo.
BBC News Brasil - A questão ecológica, do meio ambiente?
Tom Zé - A questão de acabar a vida na Terra. Eu tenho uma preocupação porque, rapaz... A vida só é possível do jeito que o planeta existe, as plantas, as frutas, os rios que o planeta tem, isso tudo faz a vida. Querem acabar com tudo isso por causa de coisas de negócio? Como é que vai ficar?
Outro dia eu passei pelo Glicério [bairro no centro de São Paulo]. Foi nesse dia que eu não dormi. Quando eu vi aquelas pessoas andando para lá para cá sem finalidade, comendo… Uma coisa como se fosse um mundo não imaginável.
Nossa, aquele negócio me deu um pavor. Eu pensei assim: "Agora está só o Glicério. Daqui a pouco está o Glicério, a praça da Sé, a cidade de São Paulo, o mundo". Porque o ganhador de dinheiro não tem piedade, não.
BBC News Brasil - O que mais te motiva hoje a continuar trabalhando e fazendo música?
Tom Zé - Bom, uma das coisas é a solidariedade de Neusa para trabalhar, porque quando Neusa está presente, Neusa trabalha comigo mesmo.
E tem uma coisa formidável quando eu estou fazendo uma coisa: eu, antes de começar, eu levo para ela, se ela diz "não é digno de você", eu não perco tempo com aquela coisa. Isso ajuda muito a trabalhar depressa, e ela ajuda muito mesmo. Eu podia botar ela como parceira de tudo.
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