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Mesmo que Trump perca eleição, trumpismo sobreviverá, diz historiadora

Mesmo que Trump perca eleição, trumpismo sobreviverá, diz historiadora

Outros populistas povoaram a política do país, mas ninguém desafiou de forma tão aberta as normas democráticas, disse Jill Lepore

Publicado em 21 de outubro de 2020 às 07:36

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O presidente dos EUA, Trump, realiza um comício de campanha no Aeroporto de Sanford em Sanford, Flórida
O presidente dos EUA, Trump, realizou um comício de campanha no Aeroporto de Sanford, Flórida. (Reuters/Folhapress)

Com o primeiro mandato de Donald Trump prestes a terminar, estudiosos e jornalistas se dedicam a fazer um balanço dos últimos quatro anos de um governo turbulento. As expressões mais usadas para descrever o líder americano são "sem precedentes", "nunca antes", "inaudito" e "surpreendente".

Mas será que o republicano e seu governo realmente não têm paralelo na história dos EUA? Para Jill Lepore, professora de história americana na Universidade Harvard, não há exagero. Outros populistas povoaram a política do país, mas ninguém desafiou de forma tão aberta as normas democráticas, diz.

E mesmo que Trump perca a eleição, o trumpismo não vai morrer. "A história americana não começou em 2016, e esse momento bizarro da história não vai acabar se ele perder daqui a duas semanas. Os apoiadores de Trump vão continuar sendo uma parte decisiva da política americana", diz a historiadora.

Lepore acaba de lançar no Brasil "Estas Verdades", livro que, em 1.072 páginas, aborda cinco séculos de história americana do ponto de vista dos avanços e retrocessos no país em relação às verdades postuladas por Thomas Jefferson - igualdade política, direitos naturais e soberania do povo.

A senhora aborda em seu livro vários líderes populistas na história dos Estados Unidos, como o democrata William Jennings Bryan. Em que sentido Trump é diferente de outros populistas que o antecederam?

  • Ele é muito diferente. Primeiro, o populismo dele, assim como muito do que se refere a ele, é só um teatro, não é genuíno. Ele não está realmente interessado em implementar as reformas que prometeu aos apoiadores. Houve figuras políticas na história americana que se assemelhavam a Trump, mas nunca houve um presidente como ele. As pessoas o comparam a Huey Long [ex-governador da Louisiana, populista de esquerda que se opunha ao presidente Franklin Delano Roosevelt] ou a George Wallace [ex-governador do Alabama, populista que defendia a segregação racial]. Mas acho que não é instrutivo fazer essas comparações. Tudo o que Trump fez até agora, há uma tradição para isso, mas, ao mesmo tempo, a eleição dele foi totalmente inesperada e, se ele for reeleito daqui a duas semanas, será inesperado.

Tive a experiência muito estranha de escrever a maior parte do livro antes de Trump ser eleito, e aí tive que acrescentar uma parte sobre a eleição dele, porque foi uma surpresa enorme... A história americana tem muito nacionalismo, supremacistas brancos, que são alimentados pelas pessoas que ficam para trás, resultado dos efeitos da desigualdade econômica. Então, nesse sentido, esses aspectos do governo Trump têm um longo histórico na história americana, não são algo surpreendente. Mas o fato de haver um presidente como Trump, que é simplesmente maluco, isso é bem surpreendente.

As pessoas sempre caracterizam o governo Trump e o presidente como sem precedentes. A senhora acredita que houve algum outro presidente que desafiou tão abertamente as normas democráticas?

  • Não. Se pensarmos em alguém como [o ex-presidente Richard] Nixon, ele entendia a importância da Constituição, estava determinado a não criar uma crise constitucional. Quando ele concorreu à eleição em 1960 e perdeu para John Kennedy, em uma das eleições mais apertadas da história do país, seu partido o instou a não aceitar o resultado e exigir recontagem de votos.

Nixon disse: não, não vou fazer isso, não vou criar uma crise constitucional. Já Trump ultrapassa todos os limites aceitáveis. Até Roosevelt, na esquerda: ele se candidatou a um terceiro e a um quarto mandatos, e venceu, era uma coisa extraordinária a se fazer, mas não era contra a Constituição na época [a 22ª Emenda da Constituição, que estabelecia limite de dois mandatos, foi aprovada em 1947]. Era incomum concorrer, mas foi no meio da Grande depressão, da Segunda Guerra Mundial. Não tem como comparar com Trump, Roosevelt estava resgatando o país e implementando mudanças importantes.

A senhora acredita que a onda de protestos contra a violência policial contra negros e a rejeição da opinião pública à maneira como Trump administrou a pandemia de Covid-19 indicam que há uma fadiga com o tipo de governo populista do presidente?

  • Essa oposição a Trump tem uma história muito anterior. A história americana não começou em 2016, e esse momento bizarro da história não vai acabar se ele perder a eleição daqui a duas semanas. Os apoiadores de Trump vão continuar sendo uma parte decisiva da política americana. Os fatores que levaram à ascensão de Trump continuam aí.

O Black Lives Matter tem raízes no século 18, na oposição dos quakers à escravidão. Remete às rebeliões de escravos, a séculos de protestos contra a injustiça racial. Simplesmente se tornou mais visível neste momento particular, devido a episódios de brutalidade policial que ganharam a atenção. Mas são parte de algo muito maior. Em relação à administração catastrófica que o governo fez na pandemia, desde os anos 1980, com o a eleição de Ronald Reagan, conservadores tentam convencer as pessoas de que o governo não é a solução para os problemas, o governo é o problema. Se você fala isso durante 40 anos, vai haver um monte de gente achando que o governo não deveria ter nenhuma atuação em uma crise de saúde pública. No início dos anos 1980, conservadores já começaram a minar a autoridade das pesquisas científicas e dos cientistas, como uma forma de combater regulação ambiental. Se você faz isso durante 40 anos, vai ter um monte de gente achando suspeita uma aliança entre ciência e governo.

A senhora discute no livro os erros da mídia na cobertura eleitoral em 2016 e como isso ajudou a eleger Trump. A senhora acha que a mídia está cometendo os mesmos erros nesta eleição?

  • Sim, porque a mídia continua fazendo um julgamento público contra Trump, em vez de cobrir a eleição, mais até do que em 2016. Há quatro anos, havia certas vozes na mídia dizendo que isso não é ético. Acho que violamos alguns dos pontos do nosso próprio código de ética ao fazer a cobertura dessa maneira, nós ajudamos a criar este candidato ao dar tanta atenção a ele, porque isso trazia tantos leitores para nossos sites.

Nós contribuímos para isso. Não houve nenhum balanço, nenhum ajuste de contas após isso. Quando se discute como entender o que transformou a eleição de 2016 em algo com pouca legitimidade, fala-se sobre a interferência russa, o papel do Facebook, mas não se examina o papel da mídia tradicional na ascensão de Trump ao poder. Ao não analisar os erros cometidos, a mídia tradicional continuar fazendo esse julgamento público contra Trump, o que só energiza seus apoiadores e dá força a ele.

Quais foram os erros cometidos pelos progressistas que contribuíram para a atual polarização nos EUA?

  • Um dos principais problemas de governos recentes é que Barack Obama, por exemplo, não conseguiu implementar as reformas econômicas que iriam aliviar o sofrimento da classe trabalhadora. Então, essa classe trabalhadora pensou: alguma coisa precisa mudar, vou votar nesse cara maluco.

ESTAS VERDADES

Preço: R$ 99,90 (livro físico), R$ 69,90 (e-book); 1.072 págs.

Autor: Jill Lepore

Editora: Intrínseca

Tradução: André Czarnobai e Antenor Savoldi Jr.

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