Em meio à crescente tensão com os militares americanos, o presidente Donald Trump fez o discurso de formatura na academia militar de West Point neste sábado (13).
Mais de 1.100 cadetes de West Point, localizada 66 km ao norte de Nova York, foram obrigados a retornar à academia em maio e ficar de quarentena por duas semanas para acomodar a decisão de Trump de comparecer pessoalmente à formatura. As famílias dos formandos não puderam comparecer. Os testes para Covid-19 de pelo menos 15 cadetes deram positivo.
Trump, como esperado, inseriu política na formatura: "Não é dever das tropas dos EUA resolver conflitos antigos em terras longínquas das quais muita gente nem ouviu falar", afirmou.
O discurso, que o presidente leu num teleprompter, teve tom moroso. Trump errou a pronúncia dos nomes de dois dos mais lendários comandantes militares da história americana: o ex-presidente e general Ulysses S. Grant, que liderou a vitória do Norte na Guerra Civil (1861-1865), e Douglas MacArthur, comandante supremo das forças aliadas no Pacífico durante a Segunda Guerra.
Quase 700 ex-alunos de West Point assinaram uma carta na quinta-feira (11) acusando graduados da academia que atualmente integram o governo Trump, como o secretário de Defesa, Mark Esper, e o secretário de Estado, Mike Pompeo, de minar a credibilidade dos militares e trair o caráter apolítico das Forças Armadas.
"Meus generais" era o termo usado por Trump para se referir aos militares que alistou para integrar seu gabinete mesmo antes de tomar posse, em janeiro de 2017.
Na quinta-feira, o mais importante militar da ativa no país deixou claro que o Exército não vai terceirizar um general para Trump chamar de seu.
O Chefe do Estado Maior Conjunto, general Mark A. Milley, gravou um vídeo pedindo desculpas ao povo americano e às Forças Armadas por ter participado da encenação promovida pelo presidente no dia 1º deste mês, quando pessoas protestando pacificamente contra a morte de George Floyd foram dispersadas com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha para que Trump saísse numa caminhada em direção a uma igreja episcopal que não frequenta e onde posou com uma Bíblia.
Milley foi visto conversando com o público em uniforme de camuflagem, uma cena que reforçou a imagem de inserção oficial do Exército num artifício de propaganda política presidencial.
O pedido de desculpas de Milley foi um recado cristalino para Trump e a classe política, diz à reportagem o historiador e autor Richard Kohn, professor emérito da Universidade da Carolina do Norte. Mas não foi, para ele, ao contrário do que sugeriram comentaristas, um momento de ruptura na relação entre civis e militares como não se via desde a guerra do Vietnã.
"Milley lembrou ao país que o militar é o servo neutro do Estado," lembrou Kohn, "sem recorrer a um ataque pessoal ao presidente" que, nos Estados Unidos, é o comandante-chefe das Forças Armadas.
Para os militares americanos na ativa ou veteranos, um ponto de virada pode ter sido a declaração do general Jim Mattis, o condecorado ex-secretário de Defesa da Trump, que renunciou em dezembro de 2018 por discordar da retirada de tropas americanas da Síria mas se manteve calado. Pelo menos 60% dos veteranos americanos votaram em Trump em 2016. E eles foram cruciais para o republicano em chamados estados pêndulo em que a vitória foi apertada.
Depois que Trump ameaçou convocar o Exército para reprimir os protestos contra o assassinato do cidadão negro George Floyd, asfixiado por um policial branco em Minneapolis, Mattis deu uma entrevista contundente à revista The Atlantic, defendendo os manifestantes e condenando o uso das Forças Armadas na política interna. "Devemos rejeitar e responsabilizar aqueles eleitos que zombam da nossa Constituição," disse Mattis.
Donald Trump obteve cinco deferimentos para não servir no Vietnã, alguns com base num fantasioso "esporão do calcâneo" no pé. Ele se referiu a ter escapado da Aids no período de esbórnia nas discotecas de Nova York, nos anos 1980, como "o meu Vietnã".
Um episódio dos dias finais do governo de Richard Nixon voltou a ser citado com alguma frequência, desde que Donald Trump chegou ao poder tentando ignorar a separação de Poderes e usando as Forças Armadas como suporte cenográfico para suas fantasias de patriotismo.
Em agosto de 1974, pouco antes de Nixon renunciar para não sofrer o impeachment pelo escândalo Watergate, seu secretário de Defesa, James Schlesinger, preocupado com o comportamento paranoico do presidente, disse ao chefe do Estado-Maior Conjunto, George Brown, para conferir primeiro com ele qualquer ordem militar emitida por Nixon. Tecnicamente seria um golpe branco contra a autoridade constitucional do chefe de Estado?
Timothy Naftali dirigiu a Biblioteca Nixon de 2007 a 2011. Numa conversa por telefone com a reportagem, ele diz que a iniciativa de Schlesinger foi motivada pela covardia de Nixon, que delegava a subordinados decisões controversas. Segundo Naftali, Schlesinger temia que um renegado chefe de gabinete desse ordens malucas em nome do presidente.
"Jantei com Schlesinger nos anos 1990 e perguntei a ele sobre agosto de 1974," lembra Richard Kohn. "Ele se debruçou, misterioso, e apenas disse: 'Alguém tinha que proteger a Constituição'."
Tensão entre presidentes e o comando militar não é novidade na história americana, mas Tim Naftali comenta que o que Nixon dizia atrás das portas Trump tuíta. "Nixon tinha algum senso de proteção da dignidade da Presidência. Trump não tem respeito por ela," diz.
Até a década de 1980, mal se ouvia falar de militares, ainda que na reserva, endossando candidatos políticos. Em 2016, as convenções da campanha presidencial engajaram militares para apoiar Hillary Clinton e Donald Trump.
O principal trunfo militar de Trump, o general da reserva hoje em desgraça Michael Flynn, durou 24 dias como assessor de segurança nacional, antes de cair pelo crime de mentir para o FBI sobre suas tratativas com a Rússia, país adversário dos EUA.
Richard Kohn acredita que o momento de maior tensão nas últimas décadas aconteceu quando o recém-eleito democrata Bill Clinton anunciou, antes de tomar posse em 1993 e assumir o posto de comandante-chefe, que autoidentificados gays iam servir nas Forças Armadas. Não era uma questão de ir contra uma cultura homofóbica, diz o historiador.
Ele critica comandantes militares da década de 1990 por não entenderem que as tropas, na maioria, não alimentavam preconceito contra gays na Força. Acha que Bill Clinton era ignorante sobre a cadeia de comando e culpa o general Colin Powell, Chefe do Estado Maior Conjunto do então presidente George Bush pai, por não ter aconselhado Clinton no período de transição entre a eleição e a posse.
Em seguida, Powell lançou uma campanha apócrifa contra a integração de gays, que resultou no enfraquecimento político de Clinton na proposta conhecida como "não pergunte e não conte", para que gays servissem sem se identificar como gays.
O candidato democrata Joe Biden sugeriu na quinta-feira que Trump ia tentar roubar a eleição de novembro. Ao ser perguntado se, a exemplo de 1974, os militares discutem a cadeia de comando sob um presidente tão instável, Richard Kohn diz ter certeza. "Desde o começo desse governo, eles conversam sobre cenários incomuns," diz Kohn.
Mas lembra também que, ao meio dia de 20 de janeiro de 2021, se o perdedor da eleição presidencial estiver morando na Casa Branca, deve ser discretamente escoltado pelo Serviço Secreto para um helicóptero. E não terá qualquer poder constitucional, seja de apertar o botão nuclear ou pedir mais um hambúrguer.
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