"A humanidade está a um mal-entendido, a um erro de cálculo da aniquilação nuclear". A advertência, sombria mas realista, foi feita nesta segunda (1º) pelo secretário-geral da ONU, o português António Guterres.
Ele a proferiu na abertura da décima conferência de revisão do TNP, o Tratado de Não Proliferação Nuclear, o falho mas mais amplo instrumento multilateral para controle de arsenais atômicos. "Tivemos uma sorte extraordinária até aqui. Mas sorte não é estratégia nem escudo para impedir que as tensões geopolíticas degenerem em um conflito nuclear", afirmou.
Compartilhando a avaliação dos maiores especialistas no tema, ele afirmou que o risco de tal embate hoje "não se via desde o apogeu da Guerra Fria". Sem precisar nominar, a Guerra da Ucrânia e as ameaças abertas e veladas de Vladimir Putin de utilizar suas armas nucleares norteiam essa leitura. O temor de uma Terceira Guerra Mundial voltou à moda.
Poucos dias antes de disparar a guerra, em fevereiro, o russo fez uma grande simulação usando as principais armas de seu arsenal. No dia da invasão, 24 de fevereiro, discurso e disse que quem se intrometesse iria sofrer consequências inauditas na história. Três dias depois, colocou suas forças estratégicas em alerta.
Ao longo da guerra, surgiu a especulação de que Putin poderia usar bombas táticas, de menor potência, em caso de o conflito degringolar para o Kremlin. Aqui e ali, ao negar intenções nucleares, ele e outras autoridades russas lembraram o mundo do poderio do país no setor, com sucesso relativo, já que o Ocidente não interveio com tropas, só com envio de armas a Kiev.
Hoje, Moscou e Washington detêm um arsenal semelhante, um pouco maior do lado russo, que equivale a 90% das 13 mil ogivas disponíveis no mundo. Se parece pouco ante as 70 mil do final dos anos 1980, é mais do que suficiente para obliterar a civilização.
Nesta mesma segunda, Putin disse o óbvio: "Ninguém ganharia uma guerra nuclear". Na véspera, contudo, havia lembrado que os EUA e a aliança militar Otan são as maiores ameaças a Moscou e feito a elegia da introdução do míssil hipersônico com capacidade nuclear Tsirkon na frota naval russa este anos.
Não é só a tensão na Europa que preocupa. EUA e China embarcaram na chamada Guerra Fria 2.0 em 2017, que dá sinais diários de pulsação como a visita da presidente da Câmara americana, Nancy Pelosi, à Ásia. Ela não nega nem confirma que poderá visitar Taiwan, a ilha que Pequim considera sua, e nesta segunda o governo chinês disse que suas Forças Armadas não ficariam "sentadas esperando" tal viagem ocorrer.
Os chineses têm cerca de um quinto das ogivas nucleares operacionais que EUA e Rússia mantêm em alerta permanente, e há diversos investimentos em infraestrutura militar atômica que sugerem um avanço no setor até o fim da década. Os americanos, por sua vez, seguem exercitando suas capacidades.
Na península coreana, há alguns meses há a expectativa de que a ditadura de Kim Jong-un irá fazer um novo teste nuclear para tentar provocar negociações da Coreia do Norte com a do Sul. E Índia e Paquistão seguem como arquirrivais atômicos no Sul da Ásia.
O TNP não é nenhuma panaceia, mas ajudou o mundo a estabelecer algum tipo de controle sobre as armas mais destruidoras já criadas pelo homem. Ele tem 191 aderentes, quase a totalidade do clube da ONU. Foi assinado em 1968, entrando em vigor dois anos depois.
Com efeito, entre quem não assina estão potências nucleares que emergiram depois de sua negociação: Índia, Paquistão, Coreia do Norte e Israel, sendo o arsenal do Estado judeu um segredo de polichinelo. Também não o integra o disfuncional Sudão do Sul.
Seus mecanismos de controle, operados pela AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), são complexos e dependem em muitos casos dos chamados protocolos adicionais, que visam o monitoramento mais específico do material físsil produzido por países com programas nucleares pacíficos.
Várias nações signatárias do tratado, como o Brasil, não concordam com tais protocolos e os consideram uma ameaça à sua soberania. As regras, afinal, foram escritas com a mão pesada das cinco grandes potências nucleares, todas aderentes do TNP.
EUA, Rússia, China, França e Reino Unido, não por acaso as vencedoras da Segunda Guerra Mundial e donas de assentos permanentes no Conselho de Segurança da ONU. No começo deste ano, antes da guerra, firmaram um compromisso de que nenhum deles iniciaria um conflito atômico, mas nenhuma apoia o novo e mais abrangente Tratado de Proibição Total de Armas Nucleares.
Como a Folha mostrou no mês passado, um novo capítulo do embate do Brasil está em curso com o pedido para manejo de combustível do submarino de propulsão nuclear que o país está desenvolvendo. Assim como a Austrália, que até 2024 deverá ser dotada de tecnologia anglo-americana semelhante, os brasileiros buscam provar que não haverá uso militar que não seja para fazer a embarcação navegar.
A mais recente conferência de exame do TNP foi em 2015, e acabou sem acordo. O então secretário-geral da ONU, o sul-coreano Ban Ki-Moon, escreveu um artigo na semana passada para o site Foreign Policy dizendo que aquele fracasso hoje redundou em uma naturalização do tema guerra nuclear que faz o ambiente ser mais perigoso do que durante a Guerra Fria.
Com efeito, o equilíbrio daquele período entre EUA e União Soviética era terrível, mas foi mantido justamente pela noção enunciada por Putin de destruição mútua. A nova reunião, que vai até o dia 26, é "uma oportunidade para reforçar o tratado e adequá-lo ao mundo de hoje", disse Guterres.
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