Em um tempo no qual o presidente dos Estados Unidos fala em risco de guerra mundial envolvendo a Rússia devido à tensão nas fronteiras da Ucrânia e tambores belicistas são tocados por toda a Europa, Oksana Antonenko não se abala muito.
"Eu vejo as autoridades ocidentais falando que há risco de uma invasão iminente. Eu não vejo nenhum sinal disso", afirmou ela, por vídeo, de Cambridge (Reino Unido). Ela é a diretora de riscos políticos globais da Control Risk, consultoria britânica que aconselha empresas e governos.
Antonenko é russa e, como o sobrenome indica, tem ascendência ucraniana. "Sou um produto da União Soviética. Meu pai veio da Ucrânia de família belarussa, minha mãe é meio russa, meio polonesa", diz ela, que tem 56 anos e estudou relações internacionais em Harvard e economia política na Universidade Estatal de Moscou.
Crítica do governo de Vladimir Putin, vê o deslocamento de mais de 100 mil soldados russos em torno das fronteiras ucranianas como algo "sem custo e sem risco" para o presidente. "Ele pode manter isso por muito tempo, seis ou oito meses", diz.
Mas isso não o enfraqueceria internamente? "O público já comprou a ideia de que quem quer fazer guerra na Ucrânia é o Ocidente. Isso está na TV russa o dia todo. Ele domina a narrativa."
Segundo Antonenko, é mais negócio para o Kremlin manter o Ocidente em alarme permanente. "Ele conta com o aumento da distância das posições americana e europeia. Todos falam que Putin uniu o Ocidente, mas a realidade é outra", pondera.
Ela aponta para os alemães, que com o novo líder, o chanceler Olaf Scholz, dão sinais contraditórios em relação ao que fazer com Moscou. O motivo é banal: o gás natural russo, vital para aquecer as casas germânicas no inverno. "Além disso, se você desconecta os russos do continente, muitas empresas alemãs, que investem em projetos energéticos conjuntos, vão sofrer."
Com efeito, até aqui o presidente Joe Biden falou ao lado de Scholz na quarta (9) passada que o Nord Stream 2, gasoduto Rússia-Alemanha que simboliza o poderio de Putin no setor e está à espera da autorização para funcionar, iria "acabar" se houvesse conflito.
"Scholz ficou calado neste particular", aponta a especialista, que de 1996 a 2011 foi a chefe do programa de Rússia e Eurásia do prestigioso Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, de Londres.
Ela também cita Emmanuel Macron, o presidente francês que buscou protagonismo ao viajar a Moscou e Kiev, mas encontrou ao fim o papel de apoiador velado das pretensões de Putin, ao defender os termos dos chamados Acordos de Minsk.
Há nuances: Macron enfrentará eleições em abril e a imagem de negociador lhe cai bem, além do fato de que a França não engoliu ainda ter tido um multibilionário contrato de venda de submarinos para a Austrália jogado no lixo quando os EUA ofereceram um pacto militar que incluía modelos nucleares para a ilha-continente.
Assinados em 2014 e 2015, os Acordos de Minsk visam acabar com a guerra civil ora congelada no leste ucraniano, onde separatistas pró-Rússia dominam uma grande área --inspirados, sem tanto sucesso, na anexação promovida por Putin da Ucrânia há oito anos.
O russo quis evitar que o novo governo em Kiev, que havia derrubado o anterior mais próximo do Kremlin, entrasse na Otan (aliança militar ocidental), já que o clube não admite sócios com pendências territoriais de monta.
"Por isso digo que não há sentido em Putin fazer uma invasão limitada, no Donbass [áreas rebeldes no leste]. Ele precisa do Donbass em litígio para manter os Acordos de Minsk vivos. Se entrasse e anexasse, perderia um ativo de negociação", sustenta Antonenko.
E uma invasão total? "As pessoas não têm noção quando falam nisso. Nas ações na Geórgia [2008], na Ucrânia [2014] e na Síria [2015], ele usou muita força indireta, para evitar fotos de caixões russos. Agora, morreriam milhares de soldados, seria impossível esconder."
Ela também lembra os laços históricos, como seu próprio sobrenome registra, que remontam ao tempo em que Kiev era a mãe de todas as cidades russas. "Para ser efetivo, Putin teria de bombardear Kiev pelo alto. Quantos morreriam?", questiona.
Para Antonenko, Putin se aproveita da fraqueza que atribui ao governo Biden. "Em abril, quando ele concentrou tropas em torno da Ucrânia, conseguiu a cúpula em junho [em Genebra, com o americano]. Naquele encontro, Biden traçou suas linhas vermelhas, em especial em cibersegurança. Agora, Putin explicitou as suas", afirmou.
Ela se refere ao ultimato feito pelo russo na crise. Ao mesmo tempo que nega uma invasão, deixa suas forças prontas para uma e diz que não quer ver a Ucrânia na Otan --e pede a retirada de tropas da aliança de países ex-comunistas que absorveu a partir de 1999.
Biden ainda enfrentará eleições parlamentares neste ano, e poderá ver seu partido perder o controle das duas Casas do Congresso. "Por isso acredito que ele queira tirar essa questão da Ucrânia do noticiário o mais rapidamente possível", disse.
Mas isso não contradiz a retórica militarista e alarmista dos EUA, sempre um tom acima dos colegas europeus da Otan, com exceção do Reino Unido. "Ele me parecer querer assustar Putin, pois sabe que qualquer ação militar russa teria péssimo impacto para sua imagem", afirmou.
No meio de tudo isso, a Ucrânia. Antonenko vê o fraco governo de Volodimir Zelenski à mercê de forças muito acima de suas capacidades, e considera uma "tragédia" para Kiev ter Biden anunciando que os cidadãos americanos devem deixar o país.
"Que empresa ou investidor colocará dinheiro lá? O comércio vai acabar desta forma", aponta. De fato, Zelenski tem alternado denúncias das ameaças russas com acusação de que o Ocidente está agindo de forma a semear "pânico desnecessário" no país.
A médio prazo, a crise pode acabar se tornando perene, acredita a especialista. Para ela, a chave é o quanto Putin terá de apoio enquanto ela durar. "Eu não me surpreenderia se ele mantiver parte das tropas mobilizadas, não na Belarus, mas junto ao leste ucraniano."
Com isso, claro, fica mantido o risco de algum acidente, um tiro disparado fora de hora, uma escaramuça naval no mar Negro.
Na visão de Antonenko, a linha de contato próxima que o russo estabeleceu com a China de Xi Jinping, formalizada em um acordo entre ambos na sexta retrasada (4), foi um gol diplomático de Putin, mas seus efeitos precisam ser relativizados.
"O comunicado não cita nominalmente a Ucrânia, apesar do apoio claro de Xi à Rússia, o que foi ótimo para Putin. Mas cita Taiwan e Aukus [o pacto militar EUA-Reino Unido-Austrália], ou seja, uma agenda chinesa. Mesmo os propalados acordos energéticos por ora não saíram muito dos planos", diz.
Antonenko também relativiza o isolamento de Putin, vendido como líquido no Ocidente. Lembra que ele já recebeu Macron e alguns atores regionais importantes, irá receber Scholz. Até Jair Bolsonaro passará por lá de terça (15) a quinta (16). "Por que motivo o brasileiro irá agora?", questionou, algo incrédula.
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