O mais recente lance de incúria diplomática do presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara, deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), ocorre num momento particularmente ruim para a ala ideológica do governo.
O filho 03 do presidente achou por bem dizer, numa postagem de rede social, que a China quer usar sua liderança tecnologia 5G para espionar países e tolher liberdades mundo afora, afinal de contas é regida por um Partido Comunista.
Até aí, é a argumentação que o próprio governo brasileiro adota, ao apoiar os princípios da iniciativa Rede Limpa, do governo falecido de Donald Trump, o ídolo de Jair Bolsonaro, de seus filhos e do chanceler Ernesto Araújo.
Só que ela desconsidera o momento das relações que ao fim importam com Pequim, principal parceira comercial do Brasil desde 2009.
Neste ano de pandemia, o saldo positivo da balança comercial com os chineses bateu recorde histórico. Até outubro, ele marcou US$ 32,5 bilhões. Em 2019 todo, foram US$ 27,6 bilhões, segundo dados do Ministério da Economia.
Isso torna o Brasil o país ocidental no senso estrito com maior superávit na relação com o gigante asiático, o que desmonta argumentações acerca de ser um parceiro desfavorecido. Só está atrás de Taiwan, Coreia do Sul e Austrália no ranking -politicamente, é possível incluir a Austrália no Ocidente, mas geograficamente e economicamente, não.
Os amados EUA dos Bolsonaro são o segundo parceiro, mas até outubro é o Brasil que está no vermelho em US$ 3 bilhões na relação.
Há casualidades nos números, claro. A disputa comercial iniciada em 2017 por Trump com os EUA direcionou os olhos chineses para cá, em especial na área de alimentos. Neste ano, 34,7% do que o Brasil exportou foi para a China, e desse valor, 79% foi em produtos agrícolas e matérias-primas.
A pandemia, surgida na China mas lá controlada muito mais rapidamente do que no resto do mundo, só fez acentuar essa curva.
A dura reação da embaixada chinesa ante as declarações de Eduardo, chamado no Twitter de "um deputado brasileiro", podem ser contestadas como prática diplomática também, mas a covardia virtual típica do clã presidencial no apagar das postagens mostra que teve efeito.
Na mais recente vez em que falou bobagem, quando condenou o manejo da pandemia por Pequim no começo do ano, Eduardo levou seu pai a ter de conversar por telefone com o presidente chinês, Xi Jinping.
Os arroubos anti-China são uma constante, apesar de a viagem do brasileiro ao país asiático em 2019 ter sido considerada pragmática e produtiva.
A representação da China falou, e não é a primeira vez que isso ocorre, em "consequências" das falas do filho presidencial. O comportamento do pai em relação à vacina chinesa comprada pelo estado de São Paulo já havia chamado atenção entre os diplomatas por misturar xenofobia com ignorância.
Os números econômicos mostram que as consequências estão à mão. É sabido que o farol chinês já está concentrado em países africanos para, como substituiu os EUA, eventualmente substituir o Brasil em alguns itens de sua pauta.
A questão do 5G traz um agravante, que é o fato de Trump ter sido derrotado nas urnas por Joe Biden. Se parece claro que o democrata continuará sua política de enfrentamento com Pequim, não é certo que ele dará o tom de Guerra Fria 2.0 que o republicano aplicou.
O cerco americano à Huawei, líder do mercado de 5G, foi bem sucedido e a chinesa foi cortada do fornecimento de infraestrutura de redes em aliados de Washington como o Reino Unido.
O Brasil, que está moldando seu leilão de frequências para o ano que vem, vinha na prática abrindo a porta para a presença de todos os competidores, até que uma ofensiva americana convenceu de vez o governo de que usar equipamentos chineses é um perigo para a segurança nacional.
É natural discutir os riscos e ingênuo achar que eles inexistem, mas sempre cabe lembrar que quem espionou uma presidente brasileira, Dilma Rousseff (PT), foram os EUA, não a China. Isso dilui um tanto a autoridade moral suposta pelo Rede Limpa.
O nó fica ainda mais difícil de desatar pelo isolamento político de Bolsonaro, que tenderá a ser o mais vistoso integrante do bloco dos populistas autoritários no poder com a saída de cena de Trump em janeiro.
Até aqui, o brasileiro podia arriscar os negócios do país, mas não estava sozinho no embate entre americanos e chineses. Se a rusga continuar em alta temperatura e insistir no seu americanismo, terá de fazer o impensável para a ala ideológica do governo e abraçar o governo Biden.
É um beco sem saída para Bolsonaro, seus filhos, ministros e acólitos em geral. Agora veremos o previsível vazamento de insatisfação do agronegócio e da ala militar do Planalto para tentar contornar a nova crise criada pelo jovem deputado.
Pode até ficar tudo bem. Mas, de arroubo em arroubo, a proverbial paciência milenar da ditadura chinesa acabará chegando ao fim.
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