"Pai, não entendo por que estou aqui", questionou Emil a seu pai, Nasir Aliyev.
Na manhã do dia 15 de janeiro de 2018, em vez de comemorar o aniversário da filha, Nasir e o filho foram para a capital do Azerbaijão, Baku.
Poucos dias antes, Emil havia recebido um telefonema da Procuradoria-Geral da República do país e intimado a prestar depoimento sobre as circunstâncias de seu serviço militar em 2011.
Às 13h do dia 15 de janeiro, ele já estava detido. Foi algemado na frente de seu pai.
"Ele foi considerado um inimigo do povo", diz Nasir.
Emil foi acusado de espionar para a Armênia, país com o qual o Azerbaijão está em guerra há mais de 30 anos.
Era uma acusação pesada — e uma vergonha para toda a família.
Com as últimas palavras de Emil na cabeça e lembrando de seu olhar confuso, Nasir acreditou no filho e decidiu lutar por ele.
"Disse a mim mesmo que não desistiria até investigar o caso", lembra.
Agora, esse episódio é conhecido por todos no Azerbaijão como "Terter".
Nove meses antes da prisão de Emil, em maio de 2017, o MP azeri anunciou a descoberta de uma rede de espiões armênios no Exército do Azerbaijão.
Anos mais tarde, soube-se que, durante maio e junho de 2017, soldados foram presos e torturados.
Eles foram levados para um antigo edifício administrativo na região de Terter, no oeste do Azerbaijão, e torturados até confessarem que espionavam para o inimigo.
Sobreviventes e seus familiares compartilharam os momentos de terror com a BBC e outros meios de comunicação.
Segundo os testemunhos, soldados eram atirados pelas janelas, espancados com paus, tiveram unhas arrancadas e levaram choques elétricos em suas feridas ainda abertas.
Agora, a tortura em massa no Exército do Azerbaijão está sendo investigada pelo próprio MP daquele país, mas em 2017 e 2018 poucas pessoas sabiam o que de fato tinha acontecido.
Tortura e maus-tratos de prisioneiros não são novidade no Azerbaijão, mas esse caso atingiu uma escala sem precedentes.
Até hoje, mais de 400 pessoas foram oficialmente reconhecidas como vítimas de tortura em massa, não só em Terter, mas também em outras regiões do país.
Segundo ativistas dos direitos humanos, pelo menos 11 pessoas morreram em consequência de tortura.
Anteriormente, a versão oficial era que apenas uma havia morrido. O MP azeri não respondeu às perguntas da BBC.
Nasir não sabia do "caso Terter" quando decidiu ficar em Baku e lutar por seu filho.
Ele vendeu as terras que possuía em sua cidade natal, Bostanchi, na região de Khachmaz, abandonou a vida no campo e mudou-se com a esposa e a filha para a capital azeri.
A família alugou um apartamento no subúrbio, começou a procurar trabalho e levava comida para o filho na prisão.
Durante muitos meses, à medida que a investigação se desenrolava, Nasir procurou provas da inocência de Emil.
Mas ele não conseguiu ter acesso aos detalhes do processo porque o tribunal estava fechado.
Em junho de 2018, Emil Aliyev foi condenado a 12 anos de prisão por alta traição.
E teve que cumprir os quatro primeiros em regime fechado em um presídio de segurança máxima.
Então, quando finalmente teve acesso à condenação, Nasir descobriu coisas estranhas.
Os documentos judiciais diziam que, em maio de 2011, na linha de frente entre os Exércitos do Azerbaijão e da Armênia, o seu filho tinha passado para o lado do inimigo, mas Nasir sabia que Emil tinha ido para a reserva em abril.
Após o veredicto, Nasir conseguiu ver o filho — pela primeira vez desde a sua detenção — que lhe contou que tinha sido espancado e obrigado a confessar o crime que não cometeu.
"Queria encontrar mais provas e comecei a procurar outros pais cujos filhos foram acusados de traição", diz.
No outono de 2018, perto do edifício da administração presidencial, onde muitos azeris vêm exigir justiça, Nasir conheceu várias pessoas em situação semelhante, trocaram números de telefone e começaram a manter contacto.
Segundo ele, muitos não conheciam as acusações contra os filhos; só sabiam que estavam presos nos termos do artigo 274 ("alta traição") .
Mas todas as histórias guardavam semelhanças: os pais alegavam que os seus filhos foram torturados e obrigados a confessar serem culpados.
Nasir tinha esperança de que, como seu filho não era um caso único, poderia ser salvo.
No início de 2019, o ativista dos direitos humanos Oktay Gyulalyev abordou Nasir.
Juntos, eles criaram o Comitê contra a Repressão e a Tortura e assumiram a investigação do "caso Terter", compreendendo gradualmente a sua dimensão.
"Aqueles primeiros meses foram os mais difíceis", lembra Nasir.
"Fomos literalmente de casa em casa, procurando as vítimas, convencendo-as a nos acompanhar nas ações, em busca de documentos".
E era difícil acreditar numa história sem provas ou documentos.
A maioria dos ativistas de direitos humanos e jornalistas, com exceção dos canais de televisão independentes Turan e MeydanTV, tentou ficar fora desse caso.
Alguns tinham medo, outros simplesmente não acreditavam que no Exército — orgulho do país — centenas de soldados pudessem ser torturados.
Na primavera de 2019, Nasir e Oktay Gyulalyev foram convocados ao Gabinete do Procurador-Geral por participarem em programas de televisão em que discutiam a suposta tortura.
"Ficamos muito preocupados, porque já havíamos falado muito: que pessoas eram torturadas, mas não tínhamos em mãos documentos que confirmassem isso", diz.
E pior: naquela altura, a repressão no Azerbaijão tinha se intensificado.
Desde 2014, as autoridades começaram a perseguir ativistas de direitos humanos. Muitos deles acabaram na prisão, deixaram o país ou pararam de trabalhar por medo de tratar de casos perigosos.
Nasir admite que às vezes ficava desesperado.
"Quando ouvimos o que as pessoas estavam dizendo, a princípio ficamos até um pouco em dúvida se poderia haver tamanha crueldade, a ponto de um pesadelo estar acontecendo ali".
Segundo ele, no MP, Oktay Gyulalyev foi encorajdo a desistir do caso.
Mas naquela mesma manhã eles tiveram a primeira evidência física do que aconteceu com seu filho e centenas de outros jovens.
"Quando Valida Khanum apareceu naquela manhã e apresentou a decisão do tribunal, posso dizer que as nossas vidas mudaram", lembra Nasir.
O filho de Valida Akhmedova, Elchin Guliyev, morreu na prisão sob tortura em 2017.
Ela entregou a Nasir e Oktay os documentos, tanto a decisão judicial sobre o caso da morte de Elchin, quanto os depoimentos de testemunhas e as conclusões do exame de corpo de delito.
Os arquivos listavam os nomes de 101 vítimas, 16 pessoas foram consideradas culpadas de tortura e abuso de poder.
Os resultados dos exames descreveram detalhadamente os métodos cruéis de tortura, mas o próprio artigo sobre tortura, que prevê punições mais severas, não havia sido aplicado.
Valida era bem conhecida dos familiares de outras vítimas de tortura: eles se reuniram na casa dela, onde discutiram planos para a ação coletiva.
A mulher escreveu cartas ao MP e ao presidente exigindo que os responsáveis pela morte de seu filho fossem encontrados e punidos.
Ela diz não ter certeza se suas cartas ajudaram a iniciar o primeiro processo criminal sobre o caso em 2017.
"Fui a todos os tribunais, não perdi nenhum, recolhi todos os documentos que consegui", afirma.
"Valida foi muito ativa. Posso dizer que lutamos ombro a ombro", diz Nasir.
Graças ao seu arquivo, Nasir ficou mais confiante: "Comecei a falar mais duramente, porque já tinha provas em mãos. Percebi que tudo isso era verdade".
Ele começou a ligar para os familiares das vítimas e aos poucos começaram a se unir.
E, quanto mais pessoas estavam dispostas a colaborar, maior era a cobertura da imprensa.
Em 2019, a primeira reportagem sobre o filho de Nasir foi publicada na BBC; depois disso, um deputado mencionou casualmente o caso numa sessão no Parlamento.
Foi a primeira vez que a tortura em massa nas forças armadas foi discutida a nível oficial.
Nasir diz que houve duas pessoas-chave na investigação do "caso Terter": Valida Akhmedova, que apresentou as primeiras provas, e Oktay Gyulalyev, que contatou Nasir e levou o caso adiante.
Mas no final de outubro de 2019, Oktay foi atropelado por um táxi enquanto atravessava a rua na faixa de pedestres.
O ativista sofreu ferimentos na cabeça que lhe causaram danos cerebrais irreversíveis o deixaram em estado vegetativo.
"Éramos amigos, e é claro que o que aconteceu foi um grande choque", diz Nasir.
"Depois disso, o comitê parou de funcionar, porque Oktay cuidava de tudo: ele conhecia as leis e os endereços das organizações estrangeiras".
Depois do que aconteceu com Oktay, Nasir voltou a procurar organizações de direitos humanos e a enviar cartas.
"Basicamente, tivemos que começar de novo", diz ele.
Nasir teve que trabalhar sozinho durante quase um ano.
Durante esse período, encontrou casos semelhantes nos distritos de Aghjabedi e Gazakh. Ele viajou para as regiões para se encontrar com os sobreviventes e suas famílias. E foi ajudado pelos pais de outros presidiários.
"Há veículos de comunicação que agora falam sobre este caso, mas antes ficavam em silêncio", lembra Nasir.
Foi difícil encontrar outros ativistas dos direitos humanos, e o "caso Terter"ficou paralisado durante um ano.
"Não havia ninguém, exceto Oktay — todos fugiram, não importa a quem recorresse", diz Nasir.
Durante todo esse tempo, seu filho esteve na prisão.
"Sabia que Emil não era culpado e, portanto, não tinha o direito de desistir dele", diz.
No final de 2020, Nasir reuniu-se com o ativista dos direitos humanos Fikret Jafarli, e o caso finalmente avançou: outros ativistas dos direitos humanos começaram a juntar-se a ele, incluindo Rasul Jafarov, um famoso advogado do Azerbaijão.
Ele começou a juntar listas de militares que sofreram tortura no período de 2016 a 2018 e intensificou sua relação com a imprensa.
A partir de então, cada vez mais jornalistas passaram a falar sobre o caso.
Segundo Nasir, como resultado, a opinião pública começou a mudar: as pessoas começaram a acreditar que, em vez de espiões, o Estado estava prendendo inocentes.
"As vítimas começaram a aparecer em vários meios de comunicação, mostrando suas feridas da tortura. Há quem ainda sofra", diz Nasir.
Em novembro de 2021, o "caso Terter" foi discutido na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (PACE, na sigla em inglês).
Khanlar Veliyev, vice-chefe do Gabinete do Procurador-Geral, alegou então que todos os culpados de praticarem a tortura já tinham sido punidos e acusou o que chamou de inimigos do Azerbaijão, pessoas "com essência armênia", de inflarem o caso na imprensa.
Um mês depois, em janeiro de 2022, as agências de aplicação da lei — a Procuradoria-Geral da República, o Ministério da Administração Interna e o Serviço de Segurança do Estado — emitiram inesperadamente uma declaração conjunta sobre o início de uma investigação preliminar sobre a tortura em massa.
Pela primeira vez, os casos individuais foram combinados num só.
As vítimas e suas famílias vinham tentando conseguir isso há cinco anos.
"Hoje, vejo que eles (as agências) estão interessados na investigação. Vejo que os interrogatórios das vítimas às vezes seguem até meia-noite", diz Nasir.
"Eu mesmo encontro essas pessoas que vêm das regiões, às vezes ficam comigo, acompanho-as até o Ministério Público e volto. Mantenho contato com elas para que o caso avance, procuro ajudar na investigação".
Ao longo de 2022, o caso ganhou novos contornos: o número de vítimas oficiais começou a crescer, os torturadores voltaram a ser julgados (muitos tinham cumprido penas curtas) e, o mais importante, vieram a luz testemunhos de quem confessou espionagem sob tortura.
Assim, as primeiras pessoas envolvidas no "caso Terter" começaram a ser libertadas.
Em setembro de 2022, a Procuradoria-Geral da República iniciou a revisão dos casos de 19 pessoas condenadas por traição. Entre eles estava Emil Aliyev.
No dia 6 de dezembro, às 10h, Nasir foi ao Ministério Público para saber como andava a investigação.
"Eu estava lá em uma reunião com o chefe da investigação e perguntei a ele quando nossos meninos seriam libertados, e ele falou ‘por que você está com pressa? e riu", lembra Nasir.
"E então ele disse que meu filho sairá pela prisão a qualquer minuto."
No dia 6 de dezembro, por decisão do Supremo Tribunal do país, 10 das 19 pessoas foram absolvidas, os processos contra as nove restantes foram arquivados. Eles foram libertados no mesmo dia.
"De alguma forma, eu nem pensei que meu filho seria libertado... esqueci completamente", lembra Nasir envergonhado.
Seu irmão foi mais rápido e ele mesmo tirou Emil da prisão.
Nasir, que chegou em casa uma hora depois, foi o último da família a ver o filho.
"Eu o abracei, falei para ele: tudo vai passar, tudo vai ser esquecido, tudo vai acabar, vai ser difícil, mas acabou".
Em maio deste ano, mais quatro pessoas condenadas por traição receberam indulto por decreto presidencial.
Continuam na prisão 11 pessoas que, segundo ativistas dos direitos humanos, foram torturadas entre 2016 e 2018 nos distritos de Shamkir, Gazakh, Tovuz e Aghjabadi.
Mas a libertação delas não significará o desfecho do "caso Terter".
Os ativistas dos direitos humanos estão tentando obter indenização para aqueles que foram condenados injustamente além de dinheiro para tratamento e assistência de reabilitação.
Além disso, resta saber quem exatamente deu as ordens para torturar os militares.
Em setembro de 2022, o general Bekir Orudzhev e quatro outros oficiais foram presos neste caso, e o julgamento deles começou em abril.
Os cinco são acusados de terem sido os mandantes da tortura. Se condenados, podem cumprir até 11 anos de prisão.
Nasir lembra que, até 2018, ano em que seu filho foi preso, não sabia sequer usar a internet. Cinco anos depois, ele é vice-diretor do Centro de Pesquisa da Tortura.
Segundo o ativista de direitos humanos Rasul Jafarov, Nasir desempenhou um dos papéis principais na investigação do "caso Terter".
"Em primeiro lugar, ele coletou informações gerais sobre o caso, pois antes só havia testemunhos de ex-militares. E descobriu como esses casos estavam interligados, ajudou a coletar provas", diz Jafarov.
"Em segundo lugar, Nasir não queria provar apenas a inocência de seu filho, mas de todas as vítimas de tortura".
Nasir diz que não retornará à sua cidade natal até que o "caso Terter" seja finalmente resolvido, até que todos os responsáveis sejam punidos.
"Todos devem exigir seus direitos. Passei cinco anos fazendo isso, minha casa ficou na cidade, meus jardins apodreceram, vendi o terreno", diz.
"Não fiquei pensando se teria problemas. Sabia que meu filho não era culpado e deveria ser libertado. É meu dever como pai."
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