Três anos atrás, o Estado do Oregon, na Costa Oeste dos Estados Unidos, embarcou em um experimento pioneiro, recebido na época como um modelo que poderia ser seguido pelo resto do país.
Em fevereiro de 2021, após consulta popular aprovada meses antes com 58% dos votos, o Estado descriminalizou a posse para uso pessoal de pequenas quantidades de drogas ilegais, entre elas heroína, cocaína, fentanil e metanfetamina.
O objetivo era tratar a dependência de drogas não como crime, mas como problema de saúde pública, focando em tratamento em vez de punição e prisão de usuários.
No entanto, desde que as novas regras entraram em vigor, o Estado registrou aumento significativo nas mortes por overdose, bem acima da média nacional, e também na população em situação de rua e na taxa de crimes.
Em locais como Portland, a maior cidade do Oregon e considerada uma das mais progressistas do país, cenas de pessoas usando drogas abertamente nas calçadas se tornaram cada vez mais comuns.
No início do ano, o prefeito, o democrata Ted Wheeler, declarou estado de emergência.
Defensores da descriminalização afirmam que não se pode culpar a medida pelo aumento das overdoses e do uso de drogas em público, que são fruto de vários fatores que ocorreram ao mesmo tempo, entre eles a chegada do fentanil à região e a pandemia de Covid-19.
A crise no Oregon não é um evento isolado, e ocorre em meio a uma epidemia de overdoses que deixa mais de 100 mil mortos por ano nos Estados Unidos, principalmente por fentanil, um opioide sintético 50 vezes mais potente que a heroína.
O Oregon adotou a nova abordagem no momento em que o fentanil, inicialmente restrito à Costa Leste americana, entrou com força no mercado da Costa Oeste.
A diretora-executiva da Health Justice Recovery Alliance, Tera Hurst, cuja organização representa dezenas de prestadores de serviços de tratamento para dependência de drogas no Oregon e acompanhou de perto a implementação das medidas, destaca que todos os Estados da Costa Oeste registraram aumento nas mortes por conta da chegada do fentanil.
“E eles não tinham descriminalização. Tinham penas rígidas”, diz Hurst à BBC News Brasil.
A descriminalização também coincidiu com a pandemia de Covid-19, que aprofundou o já grave problema da falta de moradia no Estado.
A implementação da estratégia foi marcada ainda por inúmeras falhas, entre elas atraso de 18 meses no repasse de verbas para ampliar serviços de tratamento.
Muitos especialistas dizem que, nesse contexto, o Estado não foi capaz de testar se a descriminalização realmente pode funcionar.
“Não se deu ao Oregon tempo suficiente para testar o tipo de descriminalização abrangente que é promissora”, diz à BBC News o especialista em política de drogas Brandon del Pozo, professor das universidades de Georgetown e Brown.
Em meio aos problemas, porém, moradores e políticos que haviam apoiado o plano inicialmente mudaram de opinião. Uma pesquisa de agosto passado revelou que 64% dos entrevistados queriam que a descriminalização fosse revogada, pelo menos em parte.
Diante da pressão, legisladores estaduais aprovaram um projeto de lei que torna a posse de drogas pesadas novamente um crime, com punição de até seis meses de prisão para usuários que não cumprirem algumas regras, entre elas aceitar tratamento.
A proposta recebeu apoio tanto de políticos democratas quanto de republicanos.
“Podemos finalmente encerrar esse capítulo”, disse o líder da minoria republicana no Senado estadual, Tim Knopp, defendendo a necessidade de sanções para garantir que as pessoas busquem tratamento em vez de permanecer na rua.
“(A nova lei) colocará o Oregon no caminho da recuperação e significará o fim do movimento nacional de descriminalização. Eu chamo isso de vitória”, afirmou Knopp.
No início de abril, a governadora do Estado, a democrata Tina Kotek, que havia apoiado a descriminalização, sancionou a nova lei.
Críticos consideram a decisão um retrocesso que não vai solucionar a crise e pode até agravar a situação.
“Temos décadas de evidências de que a criminalização não funciona”, afirma Hurst.
O Oregon foi o primeiro Estado americano a descriminalizar a posse de pequenas quantidades de maconha, em 1973. Em 2015, o Estado legalizou seu uso recreativo para adultos.
Atualmente, o uso recreativo da maconha é legal em 24 dos 50 Estados americanos e na capital, Washington. Outros 14 Estados permitem apenas o uso medicinal.
No entanto, ao descriminalizar a posse de drogas pesadas, o Oregon foi além do que qualquer outro Estado já havia feito, adotando a lei de drogas mais liberal do país.
O Estado transformou a maneira como o sistema criminal tratava o uso de drogas ilegais, diante de evidências de que punir usuários não solucionava a crise e de que pessoas pertencentes a minorias raciais eram desproporcionalmente punidas com prisão.
O objetivo era oferecer tratamento de forma voluntária a usuários e recorrer à penalização apenas para grandes traficantes. Milhões de dólares de impostos sobre a venda de maconha foram direcionados para financiar e ampliar serviços de tratamento de dependência.
Usuários pegos com pequenas quantidades de drogas ilegais passaram a receber uma multa de US$ 100 (R$ 520). Também recebiam o número de uma linha direta para onde poderiam ligar para obter informações sobre tratamento e passar por uma avaliação de sua necessidade de reabilitação.
Caso entrassem em contato e aceitassem se submeter à avaliação, a multa era cancelada, mesmo que decidissem não ir adiante com o tratamento. No entanto, se ignorassem a multa e não telefonassem para a linha direta, também não recebiam punição.
Segundo dados do governo estadual, a linha direta recebia em média apenas 10 ligações por mês relacionadas às multas. Com esse baixo volume, calcula-se que o custo operacional era de cerca de US$ 7 mil (aproximadamente R$ 36 mil) por chamada.
No primeiro ano após a implementação das mudanças, somente 1% dos usuários que receberam multas buscaram ajuda pela linha direta.
Uma crítica comum é a de que a ameaça de punição é fator importante para motivar tratamento. Sabendo que não iriam enfrentar consequências, muitos simplesmente não queriam deixar de usar drogas.
No entanto, apoiadores da descriminalização ressaltam que muitos usuários queriam tratamento, mas não encontravam vagas.
A descriminalização entrou em vigor sem a infraestrutura necessária. Na época, o Oregon era o último Estado no ranking nacional de capacidade para tratamento de dependência de drogas.
Apesar dos milhões de dólares reservados à ampliação dos serviços, houve atraso de 18 meses na distribuição das verbas. Era comum que, mesmo os que necessitassem de ajuda imediata, fossem colocados em lista de espera por uma vaga.
“Quando olhamos para exemplos bem-sucedidos de descriminalização, basicamente em Portugal, a capacidade de encaminhar as pessoas diretamente a tratamento eficaz e sem demora é crucial”, ressalta del Pozo.
O prefeito de Portland, Ted Wheeler, foi um dos que criticaram a maneira como o Estado levou adiante a implementação. Em entrevista ao jornal The New York Times, o democrata disse que “descriminalizar o uso de drogas antes de ter os serviços de tratamento foi obviamente um grande erro”.
Muitos usuários não tinham onde morar, contribuindo para os números já altos da população em situação de rua no Oregon. A descriminalização coincidiu com o fim de proteções contra despejo em vigor durante a pandemia, e várias cidades viram uma proliferação nos acampamentos de sem-teto.
No ano passado, a imprensa americana publicou várias matérias com depoimentos de moradores de Portland. Alguns contavam que tinham de “evitar agulhas, vidros quebrados e fezes humanas” nas calçadas a caminho do trabalho e falavam de crianças presenciando overdoses no trajeto até a escola.
Outros relatavam encontrar pessoas inconscientes, deitadas na calçada, bloqueando a entrada de estabelecimentos comerciais. Vários diziam ver um aumento no número de traficantes, atraídos pelo grande mercado de usuários livres para consumir drogas nas ruas sem risco de punição.
“Muito do uso de drogas, quando feito em público, é genuinamente perturbador”, afirma del Pozo que, antes de se tornar pesquisador, foi policial por mais de duas décadas. “As pessoas não estão erradas (em reclamar).”
Segundo del Pozo, a descriminalização, da maneira como foi feita no Oregon, enfraqueceu o poder da polícia de agir nos casos de uso de drogas e outros comportamentos perturbadores em público.
“Podemos discutir até que ponto as pessoas culparam a descriminalização por coisas que não tinham nada a ver”, afirma. “Mas, quando as pessoas viram o que estava acontecendo nas ruas, ficaram alarmadas, e passaram a encarar a descriminalização como parte do problema, não da solução.”
Outra falha citada por quem acompanhou a implementação foi a falta de treinamento adequado para que policiais entendessem o propósito da lei e o novo papel que teriam de desempenhar, usando as multas para interagir com usuários e conectá-los com serviços
Há indícios de que, como não havia punição, vários policiais passaram a emitir menos multas. Em relatos na imprensa local, alguns disseram estar cansados de abordar repetidas vezes os mesmos usuários, que ignoravam a promessa de ligar para a linha direta e logo voltavam a usar drogas em público.
Segundo dados do CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde), nos 12 meses encerrados em fevereiro de 2021, quando a descriminalização entrou em vigor, o Oregon havia registrado 861 mortes por overdose.
Nos 12 meses encerrados em outubro de 2023, dado mais recente disponível, foram 1.683 overdoses fatais, um salto de 95%. No mesmo período, o número de mortes por overdose em todo o país aumentou menos de 10%.
A maioria dos estudos sobre o tema rejeita a ideia de que o aumento de overdoses no Oregon tenha sido fruto da descriminalização. Um dos únicos a relacionar a nova abordagem ao aumento nas overdoses fatais foi feito por um economista da Universidade de Toronto e estima que a medida levou a 182 mortes adicionais em 2021.
Essa análise, porém, foi recebida com cautela, por não levar em conta a entrada de fentanil no Oregon. Grande parte do aumento das mortes no Estado está relacionada ao fentanil, opioide sintético extremamente potente, que começou a inundar a Costa Oeste americana na mesma época em que a descriminalização era implementada.
A versão farmacêutica e legal do fentanil pode ser prescrita para tratar de dor, em doses controladas. No entanto, o fentanil fabricado e distribuído clandestinamente é considerado o principal responsável pela crise de overdoses nos Estados Unidos.
Segundo a Oregon Health Authority, a agência do governo estadual na área de saúde, as mortes acidentais por overdose de opioides no Oregon passaram de 280 em 2019 para 956 em 2022.
Del Pozo e outros especialistas salientam que, quando o fentanil entra com força em um mercado, há uma explosão no número de overdoses fatais, independentemente da política de drogas adotada.
Segundo del Pozo, o aumento no Oregon seguiu uma tendência já verificada em outras partes do país, com a diferença de que esses locais haviam sido inundados por fentanil mais cedo e, por isso, o salto nas overdoses ocorreu em anos anteriores.
Na Costa Oeste, outros Estados que viram a entrada do fentanil ao mesmo tempo que o Oregon registraram aumentos semelhantes nas mortes por overdose.
Como comparação, a taxa de mortes por overdose de opioides no Oregon passou de 7,6 para 18,1 mortes por 100 mil habitantes entre 2019 e 2021. A Califórnia, que não descriminalizou drogas pesadas, teve aumento semelhante, de 7,9 para 17,8 no mesmo período.
Além disso, apesar do aumento, a taxa no Oregon em 2021 era menor que a de outros Estados e que a taxa nacional, de 24,7 por 100 mil habitantes.
Mesmo com as dificuldades, análises iniciais mostram redução nas prisões e maior acesso a tratamento, que eram os objetivos da descriminalização. Segundo a Oregon Health Authority, houve aumento de 298% no número de pessoas em busca de avaliação para transtornos por uso de substâncias.
“A iniciativa não fracassou”, afirma Hurst. “A política era sólida e fez o que deveria, que era reduzir os danos da criminalização, mantendo as pessoas fora da prisão, o que sabemos que aumenta significativamente os riscos de overdose.”
“Também ajudou a desestigmatizar a dependência e o uso de drogas, para que mais pessoas se sentissem confortáveis em acessar cuidados”, observa.
Mas, apesar desses avanços, os problemas dos últimos anos aumentaram a pressão sobre as autoridades. Durante debates para decidir se o Estado voltaria ou não a criminalizar a posse de drogas pesadas, centenas de moradores, policiais e especialistas deram depoimentos.
Alguns afirmavam que não se sentiam mais seguros nas suas comunidades. Outros advertiam que a recriminalização significaria um retrocesso, com uma abordagem que já havia fracassado anteriormente.
Entre as autoridades que apoiavam a descriminalização inicialmente e mudaram de opinião diante dos problemas está Mike Schmidt, promotor-chefe do condado de Multnomah, do qual Portland faz parte. Schmidt foi eleito em 2020 com uma plataforma progressista que incluía críticas ao fracasso da “guerra às drogas”.
“O que vimos nos últimos anos, quando o fentanil atingiu a Costa Oeste, é inaceitável, e precisamos tomar medidas para ajudar aqueles que lutam contra o vício”, disse Schmidt durante os debates.
“Em Portland, vemos o uso aberto de drogas pesadas nas nossas ruas – em frente às nossas empresas, parques e escolas. Não podemos continuar a tolerar isso. Podemos abordar o vício como o problema de saúde que é, ao mesmo tempo que responsabilizamos as pessoas pelo impacto que causam na nossa comunidade.”
A nova lei traz em parte uma resposta a críticas de que, sem ameaça de punição, muitos dependentes simplesmente ignoravam as multas e não buscavam tratamento.
A partir de 1º de setembro, quando a lei entrar em vigor, pessoas flagradas com pequenas quantidades de drogas pesadas poderão pegar até seis meses de prisão. A nova lei não afeta a legalização da maconha.
A pena poderá ser evitada caso aceitem receber tratamento, sendo transformada em liberdade condicional enquanto completam o programa. Desse modo, a ideia continuaria sendo dar preferência a tratamento em vez de prisão, e a lei prevê a destinação de verbas para ampliar o acesso a esses serviços.
Críticos afirmam que tratamento compulsório não é eficaz, e lembram que o Estado continua sem capacidade para tratar todos os que precisam.
“Essa foi uma resposta política às pressões de uma onda conservadora esmagadora”, diz Hurst. “Um dos resultados é que vamos regressar à criminalização da pobreza e das pessoas que precisam de ajuda.”
Hurst considera a nova lei um retrocesso. “Passamos os últimos três anos e meio tentando solucionar o problema de como conectar as pessoas aos cuidados de saúde, como nosso principal objetivo. E agora voltamos à conversa sobre como manter as pessoas fora da prisão”, afirma.
Defensores da lei salientam que, apesar de voltar atrás na criminalização, o Oregon ainda é o Estado americano com a política de drogas mais progressista.
A decisão ocorre em um momento em que mesmo cidades governadas por democratas, como San Francisco e Washington, têm adotado leis mais rígidas.
Muitos especialistas dizem que o fim do experimento no Oregon deverá inibir iniciativas semelhantes no resto do país.
“Não só as pessoas perderam o apetite, mas os políticos foram muito castigados por isso”, afirma del Pozo. “Acho que (novas iniciativas de descriminalização) ficarão fora de questão por um bom tempo. Talvez décadas.”
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta