O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou que pretende enviar ao Congresso, ainda neste mês de agosto, um projeto para taxar fundos exclusivos.
Também conhecidos como "fundos dos super-ricos", eles exigem investimento mínimo de R$ 10 milhões e têm um custo de manutenção anual que pode chegar a R$ 150 mil, segundo assessores de investimento consultados pela BBC News Brasil.
Com a medida, o governo espera gerar cerca de R$ 10 bilhões em receitas, parte de um esforço de aumento da arrecadação, na tentativa de zerar um déficit (diferença entre receitas e despesas) estimado em mais de R$ 100 bilhões nas contas públicas em 2024.
A proposta, junto a duas outras já anunciadas – a taxação de investimentos nos exterior através de offshores e o fim do JCP (Juros Sobre Capital Próprio, uma modalidade de distribuição de lucros que permite às empresas pagarem menos impostos) –, antecipam pontos da segunda etapa da reforma tributária, que deve mexer com os impostos sobre renda e patrimônio.
"Estamos falando de 2,4 mil fundos que envolvem patrimônio de R$ 800 bilhões", disse Haddad, durante entrevista no fim de julho, sobre a taxação dos fundos exclusivos.
"É uma legislação anacrônica, que não faz sentido nenhum. Não é tomar nada de ninguém, é cobrar rendimento deste fundo, como qualquer trabalhador paga imposto de renda."
Os números citados por Haddad podem, no entanto, estar superestimados.
Levantamento feito pela empresa de serviços financeiros TradeMap, a pedido da BBC News Brasil, chega a um total de 1,6 mil fundos exclusivos com um único cotista no Brasil, com patrimônio de R$ 245 bilhões.
A própria TradeMap havia divulgado em meados de julho um levantamento em que contava 2,5 mil fundos exclusivos, com patrimônio de R$ 756 bilhões – valores próximos aos citados por Haddad e que tiveram ampla repercussão na imprensa.
Mas o autor do levantamento, Einar Riveros, avaliou posteriormente que os números estavam inflados, por incluírem fundos exclusivos geridos por fundos previdenciários. Esses veículos de investimento, apesar de terem um só cotista, atendem planos de aposentadoria de milhares de pessoas – estariam, portanto, fora do objetivo do governo de taxar os "super-ricos".
Para Riveros, o universo menor de fundos pode dificultar o objetivo do governo de arrecadar os R$ 10 bilhões esperados. Mas outros economistas avaliam que o objetivo é factível, embora o efeito para a arrecadação possa ser pontual e não recorrente. (Veja mais detalhes abaixo)
"Os fundos abertos são como um clube em que todo mundo pode participar, basta comprar cotas desse clube e participar dos rendimentos que ele vai proporcionar", diz Michael Viriato, assessor na Casa do Investidor.
"Já o fundo exclusivo é como se fosse um clube fechado, que pertence a uma única pessoa ou grupo familiar", exemplifica o especialista em investimentos.
Desenhados sob medida, dependendo do perfil de risco e dos objetivos de rendimento do investidor, esses fundos são muito usados por famílias ricas em processos sucessórios.
Para um milionário transmitir uma herança, por exemplo, basta doar cotas do fundo para os herdeiros ainda em vida, evitando os custos e burocracias do processo de inventário.
No fundo exclusivo, há algumas restrições quanto ao número de aportes e resgates que o investidor pode fazer e quanto à periodicidade dessas retiradas.
Mas a grande vantagem desse tipo de fundo – antes da mudança agora proposta por Haddad – era a isenção do chamado "come-cotas", uma antecipação do Imposto de Renda cobrada semestralmente (normalmente em maio e novembro de cada ano) sobre os rendimentos, a uma alíquota de 15% para investimentos de curto prazo e 20% para os de longo prazo.
Sem a incidência do come-cotas, o investidor pode obter até 30% a 40% de retornos a mais do que teria em fundos com a cobrança do imposto, estima Viriato. Isso porque o valor que seria descontado na forma de tributo segue rendendo no fundo, ampliando os ganhos.
Por exemplo, se uma pessoa investir R$ 10 milhões, com um rendimento de 12% ao ano, ela teria R$ 182 milhões após 30 anos num fundo com a cobrança de come-cotas, ou R$ 256 milhões num fundo isento, calcula o assessor financeiro.
Nos fundos exclusivos, o Imposto de Renda é cobrado apenas no momento do resgate e de forma regressiva, o que significa que, quanto maior o tempo de aplicação, menor a tributação.
A ideia do governo é igualar os fundos exclusivos aos demais fundos de investimentos. Com isso, os fundos dos "super-ricos" passarão a ter a cobrança periódica do come-cotas.
Havia uma dúvida no mercado financeiro se a cobrança de impostos se dará também sobre os estoques – rendimentos passados, acumulados desde a criação desses fundos.
Uma fonte do governo disse à BBC News Brasil que provavelmente o modelo adotado será semelhante ao da Medida Provisória 1171/23, que tratou da tributação de investimentos no exterior ("offshore").
Por esse modelo, os contribuintes teriam a opção de antecipar o pagamento do imposto sobre o estoque, a uma alíquota reduzida. Quem não quiser, fica na sistemática antiga, pagando o imposto quando e se resgatar o investimento.
Essa não é a primeira vez que o governo federal cogita tributar os fundos exclusivos.
Em 2017, o ex-presidente Michel Temer chegou a editar uma medida provisória instituindo a cobrança a cada deis meses do IR sobre os fundos dos super ricos. Mas a MP sofreu resistência do Congresso e acabou perdendo a validade.
A proposta também foi incluída pelo ex-ministro da Economia, Paulo Guedes, no projeto de reforma tributária enviado ao Congresso em 2021, mas não avançou.
Num exercício matemático simples, Einar Riveros, da TradeMap, avalia que o governo pode ter dificuldade de chegar aos R$ 10 bilhões de arrecadação pretendidos apenas com a incidência do come-cotas.
Considerando os quase R$ 250 bilhões de patrimônio nos fundos exclusivos que não pertencem a fundos de previdência, se esses fundos tiverem um rendimento de 10% ao ano (o que não é certo), daria cerca de R$ 25 bilhões de rendimentos.
Levando em conta a alíquota de 20% da incidência do come-cotas sobre rendimentos de longo prazo, isso daria uma arrecadação anual de cerca de R$ 5 bilhões, calcula.
Mas Riveros destaca que isso é apenas um exercício, já que ainda não se sabe como será efetivamente o modelo de tributação que será apresentado pelo governo, nem qual o universo de fundos que serão objetivamente afetados pela mudança.
Michael Viriato, da Casa do Investidor, observa que a mudança na tributação pode levar muitos investidores a buscarem escapar do imposto, transformando seus fundos exclusivos em fundos previdenciários ou fundos de ação, que são isentos de come-cotas. Isso reduziria a base de arrecadação do governo com a tributação dos fundos dos "super-ricos" à frente.
Já Yihao Lin, economista na gestora de recursos Genial Investimentos, acredita que os R$ 10 bilhões de arrecadação são factíveis, considerando a possibilidade de tributação dos estoques.
"Víamos com ceticismo estimativas mais altas – o governo chegou a falar em uma arrecadação potencial de R$ 17 bilhões com a instituição desse tributo sobre os fundos exclusivos –, mas a estimativa de R$ 10 bilhões é próxima do que foi previsto pelo governo Temer", lembra Lin.
Ele observa, porém, que esse efeito da tributação sobre os estoques seria pontual, com a arrecadação proveniente da incidência semestral do come-cotas sendo pouco significativa.
Assim, a tributação dos fundos dos super ricos pode ajudar a reduzir o déficit em 2024 – estimado pela Genial em 1,2% do PIB (Produto Interno Bruto) ou R$ 120 bilhões –, mas o problema do equilíbrio fiscal nos anos seguintes permanece.
"Nos próximos anos, o governo vai ter que correr atrás de receitas para conseguir sanar os déficits, e a taxação dos fundos exclusivos é parte desse trabalho de formiguinha", diz Lin.
Ele observa, porém, que um equilíbrio fiscal sustentável dependerá de o governo conseguir fontes de arrecadação permanentes – o que é difícil, pois dependeria de maior crescimento ou de um aumento da carga tributária num país onde os impostos já são bastante elevados.
Ou então seria necessário reduzir o volume de gastos, o que não parece estar nos planos do governo petista, eleito com a promessa de retomada de políticas públicas em diversas frentes.
Se discordam quanto ao potencial de arrecadação da mudança na tributação dos fundos dos "super-ricos", os especialistas consultados concordam quanto à justiça da medida.
"Essa medida deveria ter sido aprovada há anos, não faz o menor sentido essa brecha que foi criada", diz Viriato, da Casa dos Investidores.
"Não é que eu seja a favor de tributar os mais ricos, é que foram criados dois veículos de investimentos similares [o fundo exclusivo e o fundo aberto] com impostos diferentes, não faz sentido algum", afirma o assessor de investimentos.
"De fato existem distorções, então realmente é uma medida que visa tornar mais igualitária a tributação da renda, mas acredito que essa medida e outras que estão sendo pensadas pelo governo [na tributação de renda], como o fim do JCP, vão enfrentar resistência significativa no Congresso", diz Lin, da Genial Investimentos.
O auditor fiscal Dão Real Pereira dos Santos, presidente do Instituto Justiça Fiscal e coordenador da campanha "Tributar os Super-Ricos", acredita que será preciso vencer essa resistência para tornar o sistema tributário brasileiro mais progressivo – isto é, com ricos pagando mais impostos e pobres pagando menos.
Ele defende que, além das medidas já anunciadas pelo governo de mudanças na tributação da renda, são necessários outros avanços, como o aumento da faixa de isenção do IR para rendas de até R$ 5 mil (uma promessa de campanha de Lula), a taxação de lucros e dividendos e a criação de um Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), conforme previsto na Constituição.
"Sem ampliar a tributação dos mais ricos, fica muito difícil para o Estado conseguir reduzir os tributos sobre os mais pobres", diz o auditor fiscal.
"É preciso enfrentar a iniquidade do sistema tributário para conseguirmos resolver nossos problemas sociais históricos, enfrentar a desigualdade e promover o desenvolvimento econômico."
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