O Brasil tinha 236,4 mil pessoas em situação de rua inscritas no Cadastro Único (CadÚnico, registro do governo da população de baixa renda do país) em 2022.
Isso significa que pelo menos 1 em cada mil brasileiros estava vivendo nas ruas no ano passado, segundo relatório divulgado em setembro pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC).
Mas a população de rua total do Brasil deve ser ainda maior, alerta Rita Cristina de Oliveira, secretária-executiva do MDHC – ou a "número 2" da pasta liderada por Silvio de Almeida.
"Pela condição mesmo de situação de rua – de pessoas em grande parte indocumentadas –, a gente estima que esses números estejam subnotificados", diz Oliveira, em entrevista à BBC News Brasil.
"Porque o CadÚnico pressupõe que as pessoas tenham tido não só acesso aos serviços públicos da rede, mas que tenham também documentos", afirma a defensora pública de carreira, que em 2021 também fez parte da Comissão de Juristas Negros e Negras, instituída pela Câmara dos Deputados.
"Como sabemos que boa parte dessa população não tem acesso ao serviço de documentação ou teve documentação perdida, extraviada, entendemos que o cadastro não lê toda essa população."
Contar devidamente essas pessoas, através de um Censo específico, será uma das medidas do plano que o governo federal pretende lançar até novembro para a população em situação de rua.
O pacote deve contar com uma série de eixos: habitação; trabalho, renda e cidadania; combate à violência institucional; assistência social; produção de dados; saúde; e fortalecimento da rede de atendimento são os principais deles, segundo a secretária-executiva.
Ainda não há, no entanto, orçamento definido para a execução do conjunto de medidas.
"Como o Orçamento de 2024 não está fechado, as pastas estão definindo seus recursos, mas obviamente, pelo tamanho do problema, sabemos que vai ser um aporte robusto", diz Oliveira.
Entre as pastas que deverão estar envolvidas na execução do plano, além do MDHC, estão Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome; Saúde; Trabalho e Emprego; Justiça; Cidades; Educação; Gestão e Inovação em Serviços Públicos; e Cultura.
À BBC News Brasil, a secretária-executiva do ministério falou ainda sobre o inquérito aberto pelo Ministério Público Federal para investigar o envolvimento do Banco do Brasil na escravidão e preferiu não comentar o impasse quanto à recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidas Políticos.
O lançamento do plano atende à decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou em julho que municípios, Estados e a União apresentem medidas específicas voltadas à população em situação de rua. A decisão foi uma resposta a uma ação movida pelos partidos Rede e PSOL e pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Para o governo federal, o STF deu 120 dias para a apresentação de um plano para a "efetiva implementação" da Política Nacional para a População de Rua, criada em 2009.
Esse prazo vence em 24 de novembro mas, segundo a secretária-executiva do MDHC, a intenção do governo é lançar seu pacote antes disso, embora ainda não haja uma data definida.
"Uma data precisamente não tem, porque a ideia é que [o plano] seja apresentado pelo próprio presidente Lula. Então vai depender da agenda do presidente. Mas obviamente vai ser dentro do prazo e a ideia que seja até antes", diz Oliveira.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) passou por cirurgias de quadril e pálpebra em 29 de setembro e deve ficar três semanas trabalhando na residência oficial do Palácio do Alvorada.
Segundo a secretária-executiva do MDHC, a habitação deve ser o eixo principal do pacote a ser anunciado pelo governo.
"É o direito essencial que vai garantir todos os outros direitos para enfrentar o problema das pessoas da situação de rua", diz Oliveira.
Nessa área, o governo planeja ampliar a oferta de locação social, com a disponibilização de moradias para aluguel a preços subsidiados.
Também pretende criar cotas do programa Minha Casa, Minha Vida para pessoas em situação de rua.
E oferecer uma modalidade de aluguel social assistida, acompanhada de políticas de cidadania e saúde.
Essa vertente será voltada para pessoas "com perfil crônico de rua", diz a representante do MDHC, que são aquelas que moram nas ruas há mais tempo e muitas vezes sofrem de problemas de saúde mental, associados ao abuso de substâncias como álcool e drogas.
O modelo é inspirado na metodologia "Housing First" (Moradia Primeiro), adotada por diversos países para atender pessoas em situação de rua.
No Brasil, municípios como Curitiba e São Paulo já realizaram políticas inspiradas nesta estratégia.
No eixo de emprego e renda, o governo planeja fortalecer iniciativas de cooperativismo; fechar acordos de cooperação com grandes empregadores para promover acesso a vagas de emprego para a população de rua; e oferecer capacitação e qualificação profissional em parceria com federações e universidades, enumera a secretária-executiva.
"São esses os exemplos [de políticas contidas no plano] que eu posso dar nesse momento", diz Oliveira.
"Obviamente, existe um compromisso nosso de que o próprio presidente ou ministro [Silvio Almeida] anunciem as ações assim que o plano for fechado."
A secretária-executiva antecipa, porém, que deve ser lançado nos próximos dias um decreto instituindo o grupo de trabalho que vai definir a metodologia do Censo da população de rua.
A ideia é fazer ainda esse ano um pré-teste da coleta de dados e realizar os primeiros pilotos no primeiro semestre de 2024. Só então será definida uma data para o início do Censo.
O IBGE (Instituto Brasileiro de geografia e Estatística) realizou em 2022 – com dois anos de atraso, devido à pandemia e a cortes de verba – seu Censo Demográfico.
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A pesquisa contou 203 milhões de brasileiros, mas, como a coleta contempla apenas os domicílios, as pessoas em situação de rua não são incluídas nessa contagem.
Enquanto não existam dados censitários nacionais sobre essa população, o governo utiliza para elaboração de seu plano estimativas preliminares.
Além do diagnóstico lançado em setembro pelo MDHC com base nos dados do Cadastro Único, o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) publicou em dezembro de 2022 um estudo em que estimou a população em situação de rua no Brasil em 281,5 mil pessoas, a partir de dados oficiais informados por gestões municipais.
Pela estimativa do Ipea, o número de pessoas vivendo nas ruas mais do que triplicou no Brasil em uma década – eram 90,5 mil pessoas nessa situação em 2012, nas contas do instituto.
Essa "explosão" no número de pessoas vivendo nas ruas é muito superior ao crescimento vegetativo da população, que foi de apenas 6,5% entre 2010 e 2022, segundo o Censo do IBGE.
Nesse cenário, o principal desafio para a execução do plano do governo federal para a população de rua é a articulação entre União, Estados e municípios, avalia a secretária-executiva do MDHC.
"Todos nós sabemos que as ações só vão poder ser implementadas plenamente a partir do diálogo com os entes nacionais, especialmente os municípios", diz Oliveira. "Então esse é um desafio, mas nós estamos confiantes que todos entenderam, inclusive a partir da decisão do Supremo."
A representante do ministério afirma que esse dialogo deverá ser feito "independente das diferenças partidárias ideológicas".
O diagnóstico divulgado em setembro com base em dados do CadÚnico revelou, por exemplo, que 40% da população de rua total do Brasil se encontra no Estado de São Paulo, atualmente governado por Tarcísio de Freitas (Republicanos), ex-ministro do governo Jair Bolsonaro (PL).
E mais da metade desse contingente está na capital paulista, cuja prefeitura tem à frente o emedebista Ricardo Nunes.
Segundo Oliveira, apesar do tamanho da população paulista em situação de rua, não deve haver políticas específicas para o Estado ou para a Cracolândia paulistana.
Isso porque as políticas não estão sendo pensadas para espaços ou governos específicos, mas considerando os problemas da população em situação de rua, diz ela.
"É óbvio que São Paulo, pela concentração de pessoas em situação de rua, tem a nossa atenção", afirma a secretária-executiva.
"Se temos lá um número relevante de pessoas em situação de rua com uma problemática aguda de uso abusivo de álcool e droga, a política que estamos pensando para pessoas em situação de rua com uso abusivo de álcool e drogas vai ser oferecida para São Paulo, assim como vai ser oferecida para todas as capitais que têm o mesmo problema", acrescenta.
Segundo a secretária, o plano do governo deverá ser norteado por dados, e seu cumprimento será avaliado por metas e indicadores, que serão disponibilizados numa plataforma pública, o Observatório Nacional de Direitos Humanos (Observa DH), que está para ser lançado.
"Obviamente, a redução da população em situação de rua é um indicador fundamental da eficácia do plano", antecipa Oliveira.
Ela avalia, porém, que ainda é cedo para falar em números.
A BBC News Brasil também perguntou a Rita Cristina de Oliveira sobre outros temas relevantes que estão sendo tocados pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Com relação ao inquérito aberto pelo Ministério Público Federal (MPF) para investigar o envolvimento do Banco do Brasil (BB) na escravidão e no tráfico de escravizados no século 19, a secretária reafirma que a pasta deve participar de reunião sobre o tema no dia 27 de outubro, junto ao MPF, BB, Ministério da Igualdade Racial e ao grupo de historiadores que propôs a ação.
"O ministério tem, desde o início dessa gestão, uma preocupação com a memória e verdade, e também medidas de reparação histórica em relação à escravidão e ao tráfico transatlântico", diz.
"Tanto que, ineditamente, criou uma coordenação geral específica para tratar desse tema."
A Coordenação-Geral de Memória e Verdade sobre a Escravidão e o Tráfico Transatlântico, integrada ao MDHC, é liderada pela história da África Fernanda Thomaz desde março. A coordenadoria tem se dedicado a temas como a preservação e memória do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, principal porto de entrada de africanos escravizados no Brasil e nas Américas.
Questionada se a política de reparação histórica em gestão na pasta poderá eventualmente incluir compensação financeira para descendentes de escravizados – como estudado, por exemplo, pelo Estado da Califórnia, nos EUA – a secretária descarta essa possibilidade no momento atual.
"Reparação financeira não está na linha de avaliação agora, até porque isso dependeria de alterações normativas que não estão nem no nosso alcance", diz Oliveira.
"O passivo que nós temos em relação à escravidão e ao tráfico [de escravizados] é trazer à tona esses registros", avalia a "número 2" dos Direitos Humanos e Cidadania.
"O que a gente ainda não fez enquanto país é trazer essa história, com todos os seus atores, à tona para uma discussão importante que a sociedade precisa fazer em relação ao tamanho dessa reparação. Então é isso que vamos fazer como política. Vamos trazer à tona essa história", afirma.
"Agora, o alcance dessa reparação é um debate que ainda vai ser colocado."
Quanto à recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidas Políticos (extinta em dezembro de 2022, no apagar das luzes da gestão Bolsonaro) haveria um impasse, segundo reportado pela imprensa nas últimas semanas, com base em informações de bastidores.
Ativistas de direitos humanos e familiares de mortos e desaparecidos pressionam para que o governo recrie a comissão até 25 de outubro, data que marca o assassinato do então diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog. Mas o Planalto teme desgaste com os militares.
Questionada sobre o impasse, a secretária-executiva preferiu não se manifestar.
"Sobre esse tema, eu não tenho nenhuma manifestação a dar, porque essa é uma questão que está sob avaliação atualmente da Presidência da República e da Casa Civil. Então o que tinha que ser feito pelo ministério já foi feito e não tenho mais nenhum comentário a fazer sobre isso."
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