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Por que a população do Afeganistão está fugindo do Talibã?

Por que a população do Afeganistão está fugindo do Talibã?

O Talibã conduziu uma vertiginosa campanha militar de duas semanas e derrubou o governo do Afeganistão 20 anos após ser expulso do poder pelos Estados Unidos

Publicado em 16 de agosto de 2021 às 17:23

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Combatentes do Taleban montam guarda na estrada que leva ao Aeroporto Internacional Hamid Karzai, em Cabul, no Afeganistão
Combatentes do Taleban montam guarda na estrada que leva ao Aeroporto Internacional Hamid Karzai, em Cabul, no Afeganistão. (RAHMAT GUL/ASSOCIATED PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO)

Talibã, grupo que virou sinônimo de radicalismo fundamentalista islâmico e conduziu uma vertiginosa campanha militar de duas semanas, derrubou o governo do Afeganistão 20 anos após ser expulso do poder pelos Estados Unidos.

Suas tropas entraram em Cabul pela primeira vez desde 13 de outubro de 2001, quando tiveram de se retirar da capital sob as bombas norte-americanas e britânicas que abriram caminho para forças adversárias da chamada Aliança do Norte.

Desta vez, a entrada ocorreu sem resistência, apesar de relatos de tiroteios esporádicos na madrugada de domingo (15). Hospitais da cidade reportaram cerca de 40 feridos leves.

O grupo tomou o palácio presidencial. Imagens veiculadas pela mídia local e pela emissora qatari Al Jazeera mostram combatentes do Talibã no interior da sede do Executivo afegão.

Ao longo do dia, o presidente do país, Ashraf Ghani, ainda buscava uma solução negociada com os invasores, que prometeram moderação para incrédulos interlocutores ocidentais.

"Queremos uma transição pacífica", afirmou à rede BBC um porta-voz talibã, Suhail Shaheen.

PRESIDENTE DO AFEGANISTÃO FUGIU DO PAÍS

Não deu certo para Ashraf Ghani, que deixou o país no começo da noite (fim da manhã no Brasil). Sua gestão, iniciada em 2014 e vista como uma marionete das forças ocidentais, colapsou. Como será formado o próximo governo é incerto, mas o Talibã venceu a guerra.

Segundo a Al Jazeera, o porta-voz Mohammad Naeem afirmou que o grupo "não quer viver no isolamento" internacional e que a natureza do novo regime será anunciada logo. "A guerra acabou", disse.

Combatentes do Talibã montam guarda na estrada que leva ao Aeroporto Internacional Hamid Karzai, em Cabul, no Afeganistão(RAHMAT GUL/ASSOCIATED PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO)

Ghani disse em publicação no Facebook que decidiu deixar o país para "evitar um banho de sangue" e que "inúmeros patriotas teriam sido martirizados e Cabul seria destruída" caso ele não entregasse o poder.

"Os talibãs ganharam. Agora, são responsáveis pela honra, pela posse e pela autopreservação do seu país", escreveu o presidente afegão. Ele não informou para onde fugiu, mas a rede Al Jazeera diz que ele está no Uzbequistão.

O ex-chanceler Abdullah Abdullah, que foi derrotado por ele na polêmica eleição de 2019, insinuou que Ghani foi covarde. O Talibã afirmou que irá renomear o país com o nome que usava sob sua primeira gestão, de 1996 a 2001, trocando o República por Emirado Islâmico do Afeganistão.

ESTOPIM: 11 DE SETEMBRO E MUDANÇA DE PRAZO

Foram 19 anos, 10 meses e 3 dias desde aquele momento de derrota, que marcou o início da ocupação liderada pelos Estados Unidos. Washington buscava punir o grupo por ter abrigado a rede terrorista Al Qaeda, que ordenara os ataques do 11 de setembro de 2001, mas acabou atolada na sua mais longa guerra.

Assim como as bombas do Ocidente removeram o Talibã de Cabul em meros sete dias, a ausência delas entregou todo o Afeganistão de volta aos radicais em duas semanas exatas.

No domingo retrasado (1º de agosto), aproveitando o virtual fim da presença militar americana no país após a decisão em abril do presidente Joe Biden de cumprir a retirada acertada por Donald Trump e o Talibã em 2020, os militantes deixaram as áreas rurais que dominavam parcialmente ao longo dos anos e fecharam cercos a capitais provinciais.

As tropas deveriam deixar o Afeganistão em maio, mas Biden postergou o prazo para o fatídico 11 de setembro deste ano. Depois, o adiantou para 31 de agosto, mas o Talibã aproveitou a deixa, disse que o acordo havia sido rompido e abandonou a promessa de não buscar a vitória militar.

A partir da sexta (6), as cidades caíram em dominó. Evitando deixar o norte do país como bolsão de resistência como nos anos em que governou, o Talibã investiu primeiramente na região de maioria étnica tadjique e uzbeque.

As regiões fronteiriças já estavam em mãos talibãs, tanto que a Rússia virtualmente militarizou o seu aliado Tadjiquistão ao enviar forças para um exercício, evitando assim o transbordamento do conflito.

O sul e o sudoeste, áreas tradicionalmente associadas ao Talibã por serem majoritariamente da etnia do grupo, a pashtun, vieram a seguir. No sábado (14), caiu o bastião noroeste de Mazar-i-Sharif e, nas primeiras horas do domingo, Jalalabad, a cidade que liga Cabul à fronteira do Paquistão.

ENTRADA DO TALIBÃ NA CAPITAL

Com isso, o Talibã entrou na capital. Apesar de alguns tiroteios relatados na madrugada, não houve a violência registrada nos cercos a cidades como Herat e Lashkar Gah.

"Eles entraram com caminhonetes com metralhadoras .50 na caçamba. Muita gente foi para a rua, mas minha família está trancada em casa. Não sei o que vai acontecer", disse à reportagem Salem, funcionário do Ministério das Relações Exteriores. Ele, que é tadjique étnico, não tem para onde fugir.

"Falaram no ministério que o Talibã iria manter todo mundo empregado e que não haveria retaliações. Eu tenho dúvidas", afirmou. Houve relatos de massacres de colaboradores ocidentais em algumas das cidades tomadas na ofensiva deste ano, como Spin Boldak.

Ghani viu comandantes militares fugirem da cidade, notadamente o poderoso senhor da guerra uzbeque Abdul Rashid Dostum - personagem da vida militar e política afegã desde os tempos da ocupação soviética (1979-89).

O presidente chegou a se encontrar com o enviado americano para a região, Zalmay Khalilzad. Ainda é nebuloso se haverá algum tipo de negociação com o que sobrou de seu governo.

LIVRE SAÍDA: PARA ONDE?

Os talibãs, segundo agências internacionais, prometeram livre saída para quem quiser deixar a cidade. A questão óbvia é: para onde, já que o resto do país está tomado pelo grupo e não há mais voos comerciais em Cabul?

Os americanos prometeram retirar, com um programa especial de vistos, aqueles cerca de 18 mil afegãos e suas famílias que trabalharam diretamente para eles nessas duas décadas. Só que é um processo longo, que pode durar mais de um ano, e não há tempo hábil.

No desespero para fugir, nesta segunda-feira (16) pessoas se penduraram do lado de fora do avião militar da Força Aérea dos Estados Unidos e caíram em cima de casas.

BANDEIRA DA EMBAIXADA DOS EUA FOI ARRIADA

Enquanto isso, emergiram as primeiras imagens da evacuação americana, realizada por cerca de 6.000 fuzileiros navais enviados para a missão. A bandeira da embaixada foi arriada, assim como de várias outras representações ocidentais.

Se não houve diplomatas pendurados numa escada tentando alcançar um helicóptero, como ocorreu em Saigon quando os comunistas ganharam a Guerra do Vietnã em 1975, a imagem de grandes aparelhos com dois rotores e uma fila de fugitivos é um desastre para Biden.

A própria embaixada americana foi transferida para o aeroporto. "O fato é que as forças afegãs não conseguiram defender o país. Nós as equipamos com armas modernas, mas não deu certo", afirmou o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, à rede CNN.

Afegãos tentam entrar no Aeroporto Internacional Hamid Karzai, em Cabul, em meio à tentativa de fuga após o Taleban entrar na capital
Afegãos tentam entrar no Aeroporto Internacional Hamid Karzai, em Cabul, em meio à tentativa de fuga após o Taleban entrar na capital. (Reuters/Folhapress)

NOVA IMAGEM

O fato de que a evacuação não está sendo afetada pelos talibãs é um sinal claro de que, neste primeiro momento, o grupo está tentando passar uma imagem diferente daquela que imprimiu na sua passagem pelo poder, quando implantou um regime medieval de terror no país.

O motivo é prático. Para sobreviver como governo, o grupo terá de ter acesso a financiamento externo e relações comerciais além do financiamento que recebe do tráfico de ópio para produção de heroína e outras atividades criminosas.

O parceiro mais óbvio é o vizinho Paquistão, país onde o Talibã foi fomentado por agências de inteligência nos anos 1990, na esperança de que a vitória na guerra civil daria a Islamabad um aliado a oeste.

Diferentemente daquela época, quando o Paquistão estava ligado aos EUA, agora quem dá as cartas no país é a China, principal parceira econômica e militar. E os chineses já deram sua bênção ao Taleban, num encontro há três semanas entre uma delegação do grupo e o chanceler do regime comunista.

Os EUA buscam evitar o discurso derrotista. "Isto não é Saigon. Nós simplesmente não quisemos mais ficar lá. Cumprimos nossa missão", disse Blinken. Trump tirou sua casquinha e disse que a retirada atabalhoada deveria gerar a renúncia de Biden.

Mas as implicações geopolíticas ainda são incertas, além de outros aspectos.

O que é o Talibã?

A formação do Talibã remonta aos anos 90, quando mujahideens afegãos e guerrilheiros islâmicos se uniram para combater a ocupação soviética no Afeganistão. A própria CIA (Agência de Inteligência Central) dos Estados Unidos é apontada como uma das apoiadoras da formação do grupo na época.

Entre 1992 a 1996, os combatentes lutaram contra outros grupos mujahideens rivais, até a tomada de Cabul, do então presidente Burhanuddin Rabbani. A partir de então, o grupo controlou 90% do país até 2001.

A queda se deu na esteira dos atentados de 11 de setembro nos EUA. Na época, o governo americano enfrentava outro grupo extremista, a Al-Qaeda, do então líder Osama Bin Laden.

Em 1999, o Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas) adotou uma resolução que vinculou Al-Qaeda ao Talibã como entidades terroristas e impôs diversas sanções contra os grupos.

Em 11 de setembro de 2001, membros da Al-Qaeda sequestram quatro aviões, jogando dois no World Trade Center em Nova York, um no Pentágono em Washington DC e o último em um campo em Shanksville, na Pensilvânia.

O então presidente americano, George W. Bush, declarou "guerra ao terror", prometendo caçar Osama Bin Laden no Afeganistão. O republicano falou diretamente ao Talibã, ao pedir que o grupo "entregasse às autoridades dos Estados Unidos todos os líderes da Al-Qaeda que se escondem em sua terra", ameaçando com "o mesmo destino" a eles, caso não o fizessem.

Suspeitando que o Talibã estivesse abrigando Bin Laden, forças americanas e britânicas bombardearam o país em outubro do mesmo ano. Logo em seguida, em uma incursão terrestre, forçaram a retirada dos talibãs das grandes cidades. Bin Laden, no entanto, conseguiu fugir. A ONU convidou depois as principais facções afegãs para formarem um governo provisório.

O grupo se refugiou nas fronteiras do país com o Paquistão e passou os últimos 20 anos buscando formas de retomar o poder.

DIREITO DAS MULHERES: COMO FICA?

O mais chamativo é qual tipo de governo será implantado. "Estou profundamente preocupada com as mulheres, minorias e ativistas de direitos humanos", disse a Prêmio Nobel da Paz Malala Yusufzai, a blogueira paquistanesa que defendia a educação de meninas e ganhou manchetes ao ser baleada pela filial paquistanesa do Talibã em 2012.

O premiê do Reino Unido, Boris Johnson, disse que nenhum país deveria reconhecer o novo regime do Talibã no Afeganistão.

"Não quero que ninguém reconheça o Talibã bilateralmente", disse Boris. "Queremos uma posição unificada entre todos que pensam como nós na medida do possível para que façamos o possível para evitar que o Afeganistão volte a ser um solo fértil para o terrorismo".

Questionado pela BBC, o porta-voz taleban disse que nada mudaria em relação aos direitos das mulheres. "As escolas vão funcionar. Só pedimos que todas usem o hijab [véu islâmico que deixa o rosto à mostra, mas cobre o cabelo]", afirmou Shaheen.

Mas ele declarou também que "nosso governo será islâmico" e aplicará a sharia [lei religiosa], embora afirme que "haverá liberdade de expressão e de imprensa", o que costuma ser contraditório no mundo muçulmano. E negou a volta da obrigatoriedade da burca, a cobertura total do corpo que ganhou fama mundial no regime talibã.

A questão é que essa vestimenta tradicional dos pashtuns nunca desapareceu das ruas afegãs e paquistanesas, e parece óbvio que mulheres acabarão recorrendo a elas para se proteger dos novos donos do poder.

TERRORISMO É PREOCUPAÇÃO CENTRAL

Após o Tabelan reassumir o controle do Afeganistão, EUA e mais 60   países emitiram comunicado pedindo que cidadãos afegãos e estrangeiros tenham   permissão para deixar o país se assim desejarem. Ao longo do domingo e da manhã   desta segunda, 16, um tumulto no aeroporto de Cabul deixou mortos e feridos.
Combatentes do Taleban montam guarda em frente ao portão principal que conduz ao palácio presidencial afegão, em Cabul, no Afeganistão, nesta segunda-feira, 16 de agosto de 2021. . (RAHMAT GUL/ASSOCIATED PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO)

Outra preocupação central diz respeito ao terrorismo. No seu encontro com os chineses, o Talibã havia prometido cortar laços com grupos radicais. Mas é certo que o que sobrou da Al Qaeda e integrantes do Estado Islâmico (EI) estão presentes em território afegão.

O temor é a repetição do cenário iraquiano, onde a retirada americana acabou por levar à ascensão do EI, mas há diferenças importantes. O Talibã, ainda que seja terrorista, é antes de tudo uma força subnacional com forte base étnica que busca poder e território.

Pelos seus movimentos iniciais e o contato mantido em Doha com os EUA na semana passada, além da entrada tranquila em Cabul, parece buscar se mostrar responsável.

De todo modo, segundo o governo russo, militantes do grupo saíram da Síria em direção ao Afeganistão desde que Biden anunciou a retirada, em abril passado.

Acredita-se que a rede do falecido Osama Bin Laden manteve suas bases tanto nas áreas dominadas ao longo dos anos pelo Talibã como nos territórios tribais paquistaneses, junto à fronteira afegã.

OSAMA BIN LADEN

Bin Laden é central para a história que ganha novo capítulo agora. Filho de um milionário saudita, ele juntou-se à luta dos mujahedin (guerreiros santos) contra a ocupação soviética.

Depois que o Talibã tomou o poder na guerra civil que engolfou o país nos anos 1990, ele voltou de lá, fugindo do Sudão. Em 2001, planejou os ataques que geraram a guerra de 20 anos e se espalhou para o Iraque, Iêmen e outros pontos do mundo.

Após Bin Laden ser morto por comandos americanos no Paquistão em 2011, os EUA começaram a considerar como deixar o atoleiro em que haviam se metido.

Foram, segundo estudo da Universidade Brown (EUA), US$ 2,3 trilhões gastos no Afeganistão — o governo dos EUA fala em US$ 900 bilhões, mas é uma conta focada nos esforços militares, e não nos gastos indiretos.

O custo humano foi enorme. Cerca de 170 mil pessoas morreram, apenas uma fração delas (2.300 militares e o dobro em mercenários) americana.

Demorou dez anos para Biden, com apoio popular, tomar sua decisão. Os riscos dela para o mundo, principalmente para os 390 mil afegãos que já deixaram suas casas na crise atual e para os 37 milhões de habitantes agora sob o Talibã, ainda são incógnita.

Nesta segunda (16), o Conselho de Segurança das Nações Unidas irá discutir a situação. O secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu que o grupo "exerça moderação". Em resposta, o Talibã afirmou que "está sendo cuidadoso em todos os passos", segundo um porta-voz.

A VOLTA DO TALIBÃ AO PODER

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*Com informações de agências internacionais

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