Com auxílio de escada e furadeira, quatro homens afixam um painel de quase dois metros de comprimento na parede lateral do prédio nº 2200 da movimentada Avenida Nilo Peçanha, em Porto Alegre.
Na placa, lê-se: “Território Quilombola Kédi. Associação do Quilombo Kédi. Em processo de regularização fundiária pelo Incra nº 54000.104791/2021-16”.
A instalação do marco, em 20 de abril, foi testemunhada por dezenas de moradores e pela reportagem da BBC News Brasil.
Estabelecidas há cerca de um século no local, as cerca de 120 famílias da chamada Vila Kédi ingressaram há três anos com processo de reconhecimento da área como remanescente de quilombo.
Para a comunidade, a placa é duplamente significativa: o edifício, que hoje abriga a sede da associação de moradores, está situado no local exato de um antigo terreiro.
“O terreiro da mãe Eva era um dos pontos de convivência da comunidade”, explica Tânia Rosangela de Jesus Dutra, primeira-secretária da associação.
Descendente dos primeiros ocupantes, a líder comunitária não conheceu a matriarca.
A existência do terreiro, porém, foi atestada em laudo antropológico emitido por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O prédio hoje ocupado pela associação fica ao lado de uma imponente figueira, árvore associada a poderes cósmicos em inúmeros ritos, incluindo os de matriz africana.
A relação entre movimento quilombola e as religiões de matriz africana não é uma exclusividade da Vila Kédi.
O advogado Onir Araújo, que presta assessoria à associação, afirma que, na capital gaúcha, praticamente todas as comunidades quilombolas organizaram-se em torno de terreiros ou abrigam alguma espécie de local de culto afrorreligioso em seu interior.
Segundo Araújo, Porto Alegre tem 11 quilombos urbanos, incluindo o primeiro desse tipo a ser reconhecido no Brasil, o da família Silva, vizinho ao Kédi.
“Nenhuma outra cidade brasileira tem esse número de comunidades”, afirma o advogado.
De acordo com o Censo de 2022, existem 203 localidades quilombolas no Rio Grande do Sul, 16 delas em Porto Alegre.
Em termos quantitativos, porém, os terreiros são muito mais numerosos do que os quilombos na capital.
Um levantamento da Prefeitura feito entre 2006 e 2008 indicou a existência de 1.290 terreiros na primeira década do século em Porto Alegre — número praticamente idêntico ao encontrado em Salvador na mesma época, segundo Ari Pedro Oro, professor de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em artigo intitulado "O atual campo afro-religioso gaúcho", publicado em 2012.
No Estado, haveria cerca de 30 mil terreiros, conforme cálculo de Norton Correa, professor de Antropologia da Universidade Federal do Maranhão.
Para muita gente, quando o assunto são as religiões de matriz africana, o Rio Grande do Sul pode não ser o primeiro Estado brasileiro a vir à mente.
Afinal, trata-se da segunda unidade da federação com menor população autodeclarada preta ou parda, com 20%, segundo o Censo de 2022, atrás apenas de Santa Catarina.
Mas uma consulta aos dados dos censos demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), porém, pode desfazer essa impressão.
No levantamento de 2010, o Rio Grande do Sul figurou como o Estado com maior percentual de adeptos da umbanda e do candomblé, as duas principais religiões afrobrasileiras, embora não sejam as únicas.
O Estado também foi campeão em números absolutos, de acordo com o Censo de 2010.
Os adeptos destas religiões representavam 1,47% dos gaúchos em 2010 — os dados sobre religião do Censo de 2022 ainda não foram divulgados pelo IBGE.
Isso representava um percentual bem acima do nacional, de 0,3%.
Mas pesquisadores acreditam que, em ambos os casos, os números podem ser ainda mais elevados, porque muitos adeptos tenderiam a se definir como católicos por razões familiares e culturais.
Evidências da afrorreligiosidade (ou, na expressão de Ari Oro, religiosidade afrorriograndense) estão por toda parte.
A maior festa em louvor a um orixá nas Américas não ocorre no Nordeste brasileiro ou no Caribe, mas ao longo dos mais de 200 quilômetros da praia gaúcha do Cassino, a mais extensa do mundo, no município de Rio Grande.
É a celebração de Iemanjá, no dia 2 de fevereiro, que atrai um público calculado em 300 mil pessoas, segundo os organizadores.
O peso das religiões de matriz africana transparece na própria linguagem.
Para boa parte dos gaúchos, a expressão “ser de religião” indica adesão a cultos afro.
“Quem é de axé diz que é”, resume um refrão corrente na comunidade afrorreligiosa local.
A compreensão do fenômeno, diz Vitor Queiroz, professor de Antropologia da UFRGS, exige em primeiro lugar um ajuste de contas com a ideia corrente de que o Rio Grande do Sul é um Estado branco.
“Acho curioso quando as pessoas falam que não veem negros em Porto Alegre. Digo: ‘Refaça sua operação ocular. Vá ao centro da cidade e simplesmente olhe”, afirma Queiroz.
Até mesmo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse em maio, em visita a atingidos pela enchente que assolou o Estado: “Não sabia que tinha tanta gente negra aqui”.
Lula acrescentou que teria ouvido da primeira-dama, Janja Lula da Silva, que os negros “são os mais pobres e moram nos lugares mais arriscados”.
Segundo Queiroz, o mito do Rio Grande branco está relacionado à reprodução do preconceito e ódio racial e religioso, segundo Queiroz.
Em 5 de maio, no auge da enchente, a influenciadora Michele Dias Abreu atribuiu o desastre climático ao fato de o Estado estar entre os que abrigam “maior número de terreiros de macumba (sic)”.
“Deus está descendo com sua ira total”, apregoou a influenciadora no vídeo.
A repercussão negativa da injúria, que teve milhões de visualizações, levou o Ministério Público de Minas Gerais a denunciar Michele por prática e incitação à intolerância religiosa nas redes sociais.
Depois das medidas cautelares, a influenciadora desculpou-se, afirmando que o comentário havia sido “infeliz e desnecessário”.
A desinformação, segundo Queiroz, é produto de estratégias sociais e políticas de branqueamento da população gaúcha adotadas pelas elites gaúchas desde o século 19.
“Os símbolos do Estado são todos afroindígenas. O próprio gaúcho do século 19 é um peão (trabalhador de estância) de pele escura”, ressalta o professor da UFRGS.
A pesquisa historiográfica revela que a participação de africanos no povoamento do Rio Grande do Sul até o início do século 19 não se distinguiu do resto do país.
Em trabalho do início dos anos 2000, a historiadora Helen Osório sustentou que, entre 1780 e 1807, o percentual de escravizados de origem africana entre a população local oscilava entre 28% e 36%, patamar similar ao da Bahia, de Pernambuco e do Rio de Janeiro.
A economia do charque (carne de sol), que impulsionou o crescimento da metade sul do Estado até o final do século 19, foi movida a braços e sangue africano, afirma Queiroz.
No Uruguai e na Argentina, onde o charque teve peso igualmente significativo, a presença massiva de escravizados nos saladeros (equivalentes platinos das charqueadas) e estâncias, tão ou mais relevante que a do Rio Grande do Sul, somente nas últimas décadas mereceu maior atenção dos pesquisadores.
Com importância econômica secundária em relação aos centros charqueadores de Pelotas e Rio Grande, os núcleos urbanos mais ao norte concentraram desde o início grandes contingentes de africanos e descendentes.
“Porto Alegre foi fundada no final do século 18 por colonos açorianos e seus escravos. A gente esquece que pelo menos um terço da população da cidade nos primeiros anos era de africanos ou afrodescendentes”, diz Queiroz.
Se o peso demográfico dos negros no Rio Grande do Sul equivale até o início do século 19 ao de outros Estados, o que explica a adesão mais pronunciada de religiões de matriz africana em solo gaúcho?
Por razões de colonização e defesa do território, a Coroa portuguesa e, em seguida, o Império brasileiro promoveram a instalação de colonos — inicialmente alemães, mas também franceses, suíços e italianos — no Rio Grande do Sul.
A procedência dos migrantes obedecia à intenção de, nas palavras da pesquisadora Vania Herédia, “branquear a raça”, ou seja, fortalecer o elemento branco na população brasileira.
Pesquisadores sustentam que a chegada de colonos de fé luterana, sobretudo alemães, contribuiu para estender a liberdade de culto — inclusive das religiões de matriz africana — ao enfraquecer o controle da Igreja católica no âmbito espiritual.
Para Queiroz, mais do que uma relação estanque entre as confissões, existe no Estado um “mercado mágico subterrâneo”, comum também em outros lugares do país.
“Às vezes, a pessoa não é afrorreligiosa e está, por exemplo, com a mãe doente. Tenta isso, tenta aquilo, e alguém diz: ‘Olha, a mãe tal no terreiro tal pode ajudar’. E a pessoa vai lá e encomenda um ebó (oferenda). Essa pessoa é o quê? Ela vai ao terreiro, às vezes escondida”, exemplifica.
Nem sempre as transações ocorrem nas sombras. O exemplo mais notório é o da relação entre o presidente (cargo equivalente a governador na República Velha) Antonio Augusto Borges de Medeiros (1863-1961) e o príncipe beninense Custódio Joaquim de Almeida, que chegou ao Rio Grande do Sul no final do século 19.
A tradição oral atribui a Custódio o assentamento de ocutás (objetos sagrados associados a orixás) em distintos pontos de Porto Alegre.
O mais famoso é o chamado Bará do Mercado Público, simbolizado por um círculo de pedras no piso do prédio — o local exato do assentamento nunca foi revelado.
Outros estariam sob o próprio Palácio Piratini, sede do governo estadual, a pedido de Borges, na Igreja das Dores, no antigo pelourinho da Rua dos Andradas e até mesmo, segundo Queiroz, em um ponto do leito do Lago Guaíba.
A religião de Custódio, como a dos primeiros africanos em solo gaúcho, conforme Queiroz, era chamada de “nação” e hoje adota a denominação de batuque.
Originária do Golfo da Guiné, tem possível influência de mitos centro-africanos.
Como o candomblé — em relação ao qual é, nas palavras do professor da UFRGS, “um culto diferente de mesma raiz” —, o batuque venera orixás e utiliza o iorubá como língua litúrgica.
Embora seja visto pelos próprios adeptos como tradicional e ancestral, o batuque implantou-se há pouco mais de um século, no final do século 19.
Nos anos 1930, de acordo com Queiroz, surgiram no Rio Grande do Sul os primeiros terreiros de umbanda, poucas décadas depois de seu aparecimento no Rio de Janeiro.
Com elementos mitológicos centro-africanos, a umbanda é comumente definida como a mais brasileira das afrorreligiões.
Finalmente, mais recentemente figura a quimbanda ou linha cruzada, que acrescenta as divindades de Exu e Pombagira ao universo sagrado do batuque e da umbanda.
Na prática cotidiana, os três ramos (chamados localmente de “lados”) são entrelaçados.
“Batuque, umbanda e quimbanda podem coexistir no mesmo espaço. Trocam-se a decoração, o dia da semana, os frequentadores, mas existe convivência”, garante o professor.
Se as relações entre os “lados” são pacíficas, o convívio com outras confissões registra momentos de aberta hostilidade.
Por duas vezes, em 2003 e 2015, deputados ligados a igrejas evangélicas neopentecostais tentaram sem sucesso aprovar na Assembleia Legislativa projetos que proibiam o sacrifício de animais, prática corrente no batuque e na quimbanda.
No primeiro episódio, o Ministério Público do Estado ingressou com ação direta de inconstitucionalidade contra a decisão dos deputados no Tribunal de Justiça do Estado.
Diante de decisão desfavorável, interpôs recurso extraordinário junto ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Finalmente, em 2019, por unanimidade, a corte suprema decidiu pela constitucionalidade do sacrifício de animais em cerimônias religiosas.
A polêmica estimulou a criação, em 2014, do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul, vinculado à Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos.
A finalidade do órgão, segundo o decreto assinado pelo então governador Tarso Genro (PT), é “desenvolver ações, estudos, propor medidas e políticas públicas voltadas para o conjunto das comunidades do povo de terreiro do Estado, caracterizando-se como um instrumento de reparação civilizatória, na busca da equidade econômica, política e cultural e da eliminação das discriminações”.
Em um episódio mais recente de tensão, o padre Sérgio Belmonte, da paróquia de São Jorge, no bairro Partenon, provocou reação nas redes sociais ao anunciar, em 23 de abril, uma celebração interreligiosa no templo.
A data, consagrada ao santo guerreiro no calendário católico, é festejada também nos cultos afro em louvor a Ogum, orixá da guerra.
Diante da controvérsia provocada pelo anúncio, a paróquia anunciou que o ato interreligioso não se realizaria no interior da igreja.
Ainda assim, depois da missa, quatro homens tentaram impedir a lavagem das escadarias do templo por adeptos de religiões de matriz africana e tiveram de ser contidos pela polícia.
O arcebispo metropolitano de Porto Alegre, dom Jaime Spengler, lamentou o episódio em entrevista à BBC News Brasil.
“Faz parte da missão própria da Igreja Católica promover, com outros fiéis, de maneira fraterna, respeitosa e convivial, o caminho da busca de Deus ou do divino, como quisermos”, disse o arcebispo.
O caso fornece, na opinião de dom Jaime, “sinais de um radicalismo, de um fundamentalismo que não caracteriza, que não faz parte da sã tradição católica nem faz parte daquilo que a Igreja, sobretudo depois do Concílio Vaticano 2º, tem defendido”.
O arcebispo tinha prometido ao padre Belmonte que estaria presente à missa de 23 de abril, mas foi impedido por uma forte gripe, sendo representado pelo bispo auxiliar, dom Juarez Destro.
Se tivesse comparecido, porém, disse que perguntaria, em primeiro lugar, se as pessoas que se manifestaram participam da vida ordinária da comunidade.
“Se sim, certamente merecem sim nossa orientação, nossa proximidade e, por que não dizer, o respeito. Até porque a Igreja não é feita de pessoas que pensam da mesma forma. Existem diferenças.”
Em polêmicas como a da paróquia São Jorge, observou, encontram-se “não raramente influenciadores digitais que promovem situações delicadas, que não estão participando da vida concreta de uma igreja particular e disseminam suas opiniões através das redes sociais, sem um compromisso de vida comunitária”.
No Quilombo Kédi, a busca dos moradores do reconhecimento de seu direito a ocupar o território se chocou com as pretensões da Igreja.
Erguido no ponto ocupado pelo terreiro de mãe Eva, o prédio da associação ainda ostentava, em abril, acima da placa do quilombo, um letreiro onde se lia “Igreja Santa Edvige, filiada à Paróquia Nossa Senhora Mont’Serrat”. Ao lado, um aviso: “Missas aos sábados às 15:30”.
O espaço foi utilizado por dez anos por catequistas católicos em missão de conversão junto aos moradores — sem sucesso, informa o advogado Onir Araújo.
Fluminense de Niterói e ativista social há 40 anos, o assessor do Quilombo Kédi radicou-se na capital gaúcha há mais de duas décadas, mas não consegue evitar a emoção ao falar da terra adotiva.
“Porto Alegre dorme todas as noites ao som de tambores de matriz africana”, comenta Araújo. “Em todos os bairros, se você apurar bem o ouvido.”
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta