As forças de Vladimir Putin atacaram na madrugada deste sábado (26) o centro de Kiev. A batalha pela capital da Ucrânia ocorre apenas dois dias depois do começo da guerra com a qual o presidente russo pretende derrubar o governo e retomar o controle político sobre o vizinho.
"O futuro da Ucrânia está em jogo", disse Volodimir Zelenski, o presidente ucraniano que se diz marcado como "alvo número 1" na invasão, que culmina um processo de quatro meses de tensão entre Moscou e o Ocidente em torno do país no Leste Europeu.
Como seria de se esperar, os detalhes da ação russa são esparsos. As primeiras explosões em pontos periféricos da cidade foram relatadas por volta das 5h locais (meia-noite em Brasília). Segundo a conta das Forças Armadas locais no Facebook, havia combate em regiões tão centrais quanto a avenida da Vitória no começo da manhã.
O governo britânico, que é parte interessada por ser rival de Moscou, diz que os ucranianos estão resistindo e que até aqui os combates envolvem apenas forças especiais russas de vanguarda. Também foram colocados em dúvida os avanços alegados pelo Kremlin em outras partes do país, como a conquista de Melitpol (sul).
"Não podemos perder a capital. Falo com nossos defensores, homens e mulheres em todas as frentes: hoje à noite, o inimigo vai usar todas as suas forças para romper nossas defesas da maneira mais vil, dura e desumana", disse Zelenski em pronunciamento feito antes do ataque.
Ele pediu resistência e orientou moradores da cidade de 3 milhões de habitantes a jogar coquetéis molotov nos invasores. O governo publicou vídeos ensinando a fazer a bomba improvisada com gasolina em garrafas, e durante a sexta (25) distribuiu 18 mil fuzis a civis.
No meio da manhã, Zelenski surgiu em um vídeo gravado em seu celular no centro da cidade para afastar rumores de que tinha fugido, dizendo que "nós não vamos depor armas". Constante ante câmeras, seu meio de origem, mais tarde falou à imprensa, dizendo que "nós vamos ganhar" e que a resistência estava dando certo e que a invasão havia "saído dos trilhos".
"Eu quero que todos na Rússia me ouçam. Centenas de soldados capturados aqui não sabem por que foram mandados para matar pessoas ou serem mortos", disse, sem apresentar evidências de suas alegações.
Segundo informações de analistas militares russos, o centro do ataque é a região noroeste da capital. A Rússia desembarcou um número incerto de militares no aeroporto Antonov, em Hostomel (25 km da cidade). O relato é de que houve resistência.
Eles podem ter vindo tanto da ditadura da Belarus, onde a Rússia mobilizou cerca de 30 mil soldados em exercícios militares que deveriam ter acabado no domingo (20), quanto da base da 76ª Divisão Aerotransportada, de Pskov (900 km ao norte).
A base de entrada foi Hostomel. Quando o cerco da capital se consolidou por duas frente, ao longo da sexta, batedores russos foram vistos na periferia de Kiev, inclusive com veículos blindados leves. Era o reconhecimento para a batalha à frente, em uma guerra que seguiu em outros pontos do país neste sábado: bombardeios foram ouvidos perto de cidades como Lviv e Kharkiv.
O outro flanco do ataque fica a nordeste da cidade. Os russos tomara a região da usina de Tchernóbil, palco do maior acidente nuclear da história, em 1986, da quinta (24) para a sexta. De lá, 110 km de Kiev, estabeleceram um corredor para militares e blindados vindos de Belarus por meio dos pântanos congelados de Pripriat.
Imagens de TV mostraram um prédio de apartamentos atingido por algum projétil, mas não havia informação imediata sobre vítimas.
Segundo as forças ucranianas, um primeiro ataque ao coração da cidade foi repelido, provavelmente com o uso intensivo de mísseis antitanques Javelin, fornecidos dentro do pacote de US$ 400 milhões ofertado pelo governo dos Estados Unidos em 2021. Na sexta, ante o agravamento da crise e a iminência do ataque, o presidente Joe Biden prometeu liberar mais US$ 350 milhões em armas americanas para combater os russos.
Esta última formulação dá a dimensão geopolítica do que está em jogo. Putin usou como justificativa para a invasão a necessidade de proteger as duas autoproclamadas repúblicas russas do Donbass (leste do país), que ele reconheceu como países na segunda (21).
O Kremlin apoia os rebeldes desde 2014, quando um governo aliado seu em Kiev foi derrubado e substituído por outro apoiado pelo Ocidente, abrindo a porta para a adesão da Ucrânia à Otan (aliança militar ocidental) e à União Europeia.
A reação de Putin foi anexar a Crimeia, a preciosa península historicamente russa que sedia sua Frota do Mar Negro, que então alugava sua base em Sebastopol. O apoio aos rebeldes veio, mas planos de anexação não foram em frente. Do ponto de vista estratégico, contudo, manter o conflito que matou mais de 14 mil pessoas congelado bastava a Putin, porque mantinha a Ucrânia sem força para aderir ao Ocidente.
Assim, Putin não veria forças ofensivas ocidentais às suas portas, nem um regime liberal que poderia inspirar a oposição em casa.
Em 2021, o russo parece ter decidido finalizar o jogo. Após um ensaio em abril, mobilizou a patir de novembro entre 150 mil e 190 mil soldados em exercícios denunciados no Ocidente como um prenúncio de invasão e emitiu um ultimato para que os EUA e a Otan aceitassem seu desenho para o Leste Europeu, cessando a expansão do clube militar que já havia absorvido 14 antigos satélites comunistas, 3 deles países que foram da União Soviética assim como a Ucrânia.
Apesar da gritaria, o Ocidente permaneceu de mãos amarradas, temendo envolver a Otan em um conflito potencialmente nuclear com os russos, como o presidente russo sempre lembra. Montou pacotes sucessivos de sanções, o mais recente destinado a atingir Putin pessoalmente pela primeira vez, mas o longevo líder do Kremlin, no poder desde 1999, não se mexeu.
Nas ruas de cidades russas e ao redor do mundo, assim como na internet, eclodiram protestos contra a guerra, inclusive de celebridades do país de Putin. Efeito nulo até aqui, embora prenuncie o isolamento do regime do Kremlin.
Quando os primeiros mísseis balísticos e de cruzeiro foram despejados sobre a Ucrânia, na madrugada da quinta, o russo selou sua maior aposta, que havia sido ensaiada na guerra de cinco dias contra a Geórgia pelos mesmos motivos em 2008 e na ação de 2014 na própria Ucrânia.
Militarmente, a reforma que empreendeu após o baixo desempenho em 2008 e a experiência prática na guerra civil síria, na qual interveio em 2015 e salvou a ditadura de Bashar al-Assad, deram ao Kremlin uma força mais eficaz e com domínio sobre guerra aérea moderna que não tinha.
O ataque múltiplo pelo país e a chegada ao centro do poder em três dias mostra que o investimento está pago. A Ucrânia resiste, mas a desproporção de forças é flagrante. Ao todo, Putin tem 900 mil soldados e um orçamento militar dez vezes maior do que o de Zelenski, que comanda 200 mil soldados.
Kiev assim enfrenta a décima grande batalha de sua longa história, iniciada no século 5º. Vivas nas memórias de moradores mais velhos e seus descendentes estão duas, o assalto nazista de 1941, que deixou a cidade sob brutal ocupação, e a retomada soviética de 1943, para muitos abriu um período tão sombrio quanto o anterior.
Também neste sábado, o governo em Lviv (oeste do país, junto à Polônia) disse que foi repelido o ataque de uma unidade com 60 paraquedistas perto da cidade. A Ucrânia também afirma que derrubou dois aviões de transporte pesados Il-76, o que será um grande revés para Putin, se confirmado. Já os russos informaram uma lista de 821 alvos militares atingidos, fora dezenas de aviões, tanques e outros equipamentos. Nenhuma das afirmações é verificável.
Na sexta, o objetivo de Putin ficou claro no solo e também no discurso. Zelenski balbuciou a ideia de discutir a neutralidade ucraniana e foi recebido com sarcasmo: Moscou se disse pronta para negociar, desde que fosse na capital aliada Minsk e sobre os seus termos. Queria a rendição.
Putin ainda foi além e fez um duro ataque ao ucraniano, chamando seu governo de antro de viciados em drogas e neonazistas, uma acusação que permeia essa campanha desde o começo, assim como referências de lado a lado à Segunda Guerra Mundial --o conflito atual é o maior na Europa desde o fim das hostilidades em 1945.
Zelenski é judeu, mas a ideia corrente na Rússia é a de que associação real de elementos nazistas no nacionalismo mais radical do vizinho é equivalente a políticas de governo.
Por isso o russo fala que combate um genocídio, presumivelmente na sua retórica dos 4 milhões de moradores do Donbass, 800 mil deles a quem concedeu passaportes. Não há nada disso, mas um embate cultural aberto, no qual Kiev buscou impor a língua ucraniana, nascida com a russa mas diferente dela, no país.
Declarações de autoridades russas, como o chanceler Serguei Lavrov, deixaram claro que Zelenski só teria como opção se entregar para julgamento ou resistir e morrer. Na madrugada, o jornal Washington Post disse que os EUA lhe ofereceram refúgio, sem resposta positiva.
O plano russo, segundo avaliação de diplomatas e analista de Moscou, é instalar um regime que apoie Moscou, talvez com um político de partido pró-Rússia. Há a possibilidade de uma ocupação militar, o que implicaria custos e riscos enormes, mas Putin mostrou que está disposto a isso com a guerra.
Comediante que surgiu de um programa de TV no qual atuava como um professor que virava acidentalmente presidente da Ucrânia, Zelenski chegou ao poder em 2019 de forma surpreendente.
Usa de suas qualidades como ator em pronunciamentos, empostando a voz e clamando o tradicional "Glória à Ucrânia" ao fim de suas falas. Sem experiência política, não conseguiu conduzir uma negociação coesa com grupos internos rivais para lidar com Putin, e tomou medidas que afrontaram o Kremlin.
Sem o apoio militar objetivo, que de resto nunca teria do Ocidente, agora passa da comédia para a tragédia, arriscando virar um mártir no roteiro em que trocou a metavida de personagem de TV pelo acuado personagem de vídeos tremidos de internet numa cidade sob fogo. A guerra chegou ao século 21.
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