Em um aguardado discurso sobre o aniversário de primeiro ano da Guerra da Ucrânia, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, levou o foco do conflito para o embate para o Ocidente, sacando novamente a carta nuclear contra os EUA e seus aliados.
Ele anunciou a suspensão da participação de seu país no último acordo de controle de mísseis estratégicos vigente, o Novo Start, que já cambaleava desde que a guerra começou pela falta de inspeções mútuas de instalações com armas nucleares dos EUA e da Rússia.
Putin disse que "a Rússia não irá atacar primeiro", mas que está pronta para reagir e que a "situação pode sair de controle". "Eles [os ocidentais] querem transformar um conflito local em um global, nós entendemos desta forma e vamos reagir de forma adequada", afirmou. "A Rússia não pode ser derrotada."
"O Ocidente soltou o gênio da garrafa. Estamos falando da existência de nosso país. Eles não escondem seu objetivo: infligir uma derrota estratégica à Rússia, ou seja, acabar conosco de uma vez por todas", disse. Segundo o Instituto para Economia Internacional de Kiel (Alemanha), mais de US$ 60 bilhões dos US$ 150 bilhões em ajuda à Ucrânia desde a guerra foram de natureza militar, US$ 47 bilhões apenas dos EUA.
O Novo Start, vigente desde 2010 e válido até 2026, prevê que tanto EUA quanto Rússia, que detêm 90% do arsenal nuclear mundial de 13 mil bombas atômicas, mantenham no máximo 1.600 ogivas do tipo estratégico, aquelas destinadas a arrasar cidades e acabar com guerras, em prontidão. É mais do que o suficiente para obliterar a civilização, mas ao menos estabelecia um princípio de confiança mútua --Donald Trump havia deixado os outros dois acordos com o mesmo fim.
A agressividade contrastou com a repetição do resto da fala, de quase duas horas, e por um motivo. Para quem esperava algum anúncio dramático sobre a invasão em si, de uma declaração formal da guerra ainda tratada por "operação militar especial" a uma aliança com a China contra os Estados Unidos, passando por alguma vitória em campo ou uma nova mobilização, a montanha do Kremlin pariu um rato.
Putin ficou na retórica usual, repassando temas que havia já percorrido em 30 de setembro, quando promoveu a anexação de quatro regiões ucranianas de forma ilegal. Mas caprichou no tom, como costuma fazer em ocasiões formais.
O presidente se dirigia à Assembleia Federal, o Congresso russo, no enorme centro de convenções Gostini Dvor (Sala de Estar), no coração de Moscou. Na plateia, havia políticos, militares, veteranos da guerra e representantes das áreas anexadas. Putin deverá falar ainda em um evento no estádio que sediou a final da Copa de 2018, o Lujniki.
A fala veio um dia após a desafiadora visita de Joe Biden a Kiev --o presidente americano falará ainda nesta terça na Polônia, para onde foi, sobre a guerra.
A reação dos adversários foi igualmente previsível. "Ele está numa realidade completamente diferente. Está num beco sem saída", afirmou à agência Reuters o assessor presidencial ucraniano Mikhailo Podoliak.
No campo militar, a falta do que dizer de novo por parte do russo mostra os limites de sua escalada militar recente. Ainda que esteja perto de conquistar pontos estratégicos no leste da Ucrânia, é um processo lento e incerto, ainda mais com a proximidade do fim do inverno e a possibilidade novas operações.
Críticos dizem que o esforço atual é inútil, levando apenas boa parte de seus 320 mil reservistas convocados no ano passado para um "moedor de carne" sem ganhos. As próximas semanas, ou meses, dirão quem tem razão.
Putin voltou a dizer que não queria o conflito, que havia como resolvê-lo por meio dos acordos Minsk, e que foi ignorado pelo Ocidente. Nisto ele está certo, em termos: durante a escalada militar que precedeu a invasão, ele publicou um ultimato pedindo negociações sobre o status da Ucrânia em 17 de dezembro.
Não houve resposta, até porque ao lado do pedido de neutralidade da Ucrânia havia a demanda para que a Otan (aliança militar liderada pelos EUA) retirasse suas forças dos países da antiga esfera soviética absorvidos a partir de 1999, algo inexequível.
O resto é história. Há um ano, Putin reconhecia neste mesmo dia duas repúblicas separatistas do Donbass (leste ucraniano), algo que não fizera desde que anexou a Crimeia e fomentou a guerra civil em Donetsk e Lugansk, como resposta à derrubada do governo pró-Kremlin de Kiev em 2014.
Esse acabou sendo o sinal para a invasão, ocorrida nas primeiras horas do dia 24 de fevereiro, mudando toda a arquitetura de segurança do mundo.
O russo focou boa parte de sua fala em questões domésticas, descrevendo dificuldades e resiliência ante o pacote de sanções ocidentais contra a Rússia, algo sem paralelo na história. "Eles previram o fim da nossa economia. Nosso PIB caiu, mas menos do que em 2020 (queda de 2,1% ante 2,7% no ano da pandemia)", afirmou.
Ele lembrou que a Rússia está ampliando negócios com outros países. De fato, como disse o presidente francês, Emmanuel Macron, no fim de semana, países não-ocidentais desconfiam das grandes potências e suas sanções. Isso vale para Índia, que aumentou em 14 vezes seu consumo de petróleo russo, e mesmo para o Brasil e sua necessidade de ter fertilizantes.
No mais, o presidente voltou aos temas ideológicos que costuma usar em suas falas. Criticou o que chama de degradação de valores familiares no Ocidente, dizendo que até pedofilia tornou-se aceitável, mas fez um inusitado aceno à combalida comunidade LGBTQIA+ russa.
Ao comentar o casamento de pessoas do mesmo sexo, disse: "Tudo bem, eles são adultos, têm o direito de viver a vida deles. Nós somos sempre muito tolerantes sobre isso na Rússia". Para um governo que desde 2013 criminaliza o que chama de propaganda gay e tem histórico de perseguir homossexuais, foi bem ameno.
Chegou a agradecer, na longa lista apresentada do esforço de guerra, os "jornalistas militares arriscando a vida para contar a verdade para o mundo". Desde o começo da guerra, o Kremlin efetivamente calou o que restava de imprensa independente no país.
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