A Venezuela vai às urnas neste domingo (28/07) em uma eleição que representa o maior desafio eleitoral para Nicolás Maduro em décadas.
A grande maioria das pesquisas no país indicam que o candidato da oposição, Edmundo González Urrutia, lidera a corrida presidencial com mais de 50% das intenções de voto, enquanto Maduro conta com cerca de 20%.
Mas o governo venezuelano é há muito acusado de fraude eleitoral e as eleições de 2018 foram consideradas ilegítimas por uma aliança formada por 14 nações latino-americanas, o Canadá e os Estados Unidos.
Desta vez, Maduro permitiu a participação da coalizão de partidos opositores, a Plataforma Unitária, em um acordo que resultou em um breve alívio nas sanções econômicas dos EUA.
No entanto, essas sanções foram reimpostas em meio ao bloqueio da candidatura de María Corina Machado e outras medidas contra opositores.
Maduro disse, durante um comício recente, que haveria "banho de sangue, em uma guerra civil fratricida" se ele não vencer as eleições.
Por isso, o resultado do pleito deste domingo ainda é considerado muito incerto, assim como o que pode ocorrer após a votação e no caso de uma transição de poder.
Tudo isto em meio a uma crise econômica que já anos e [e agravada pelas sanções americanas. Cerca de 7,7 milhões de venezuelanos deixaram o país, segundo dados do Acnur, a Agência das Nações Unidas para os Refugiados.
Especialistas consultados pela BBC Brasil acreditam que, independente do resultado, os próximos meses serão de agitação política na Venezuela - e que o Brasil certamente terá um papel de destaque no que seguirá.
A princípio, a posse do novo presidente está marcada para janeiro, o que abre uma janela de mais de cinco meses entre a divulgação do resultado e a efetivação do vencedor na liderança.
“Esse período longo vai exigir de todos os países em torno, mas especialmente do Brasil como liderança regional, um cuidado muito grande na condução de uma mediação entre as partes”, afirma Carolina Silva Pedroso, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já exerceu esse papel de mediador em outras ocasiões, inclusive durante as negociações para os Acordos de Barbados, entre a oposição e o governo Maduro, que permitiram a realização das eleições.
“Muitos acreditam que, sem a intervenção do Brasil, em especial a atuação pessoal do presidente Lula, o candidato da oposição Edmundo Gonzalez não estaria concorrendo e a situação seria semelhante à de 2018, quando havia pouco desafio a Maduro”, afirma Phil Gunson, analista sênior da consultoria Crisis Group, sediada em Caracas, sobre as negociações para o pacto.
O Brasil de Lula também trabalhou nas conversas entre a Venezuela e a Guiana após a crise pela disputa da região de Essequibo. Uma reunião entre os chanceleres das duas nações aconteceu em Brasília em janeiro deste ano, com a mediação do ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira.
Phil Gunson, analista sênior da consultoria Crisis Group, sediado em Caracas, afirma que, desta vez, Brasil e Colômbia terão um papel crucial.
“Na Venezuela, não existem instituições neutras; o Supremo Tribunal e a autoridade eleitoral estão totalmente controlados pelo governo. Portanto, a comunidade internacional tem um papel vital, já que a oposição não tem a quem recorrer internamente para apresentar seu caso”, diz Gunson, que acredita que a Colômbia também tem potencial de auxiliar nesses esforços.
No momento, há grande ceticismo entre os observadores sobre a possibilidade de Nicolás Maduro reconhecer o resultado da eleição em caso de uma vitória da oposição.
Ao mesmo tempo, o histórico de denúncias de fraude feitas pela oposição e por organismos internacionais coloca dúvidas sobre a forma como o pleito será conduzido, abrindo as portas para contestações também no cenário de uma vitória de Maduro.
Em 2018, o presidente venezuelano foi reeleito em uma eleição contestada tanto internamente quanto internacionalmente. A votação foi amplamente boicotada pela oposição e Organização dos Estados Americanos (OEA) a descreveu como uma “farsa”.
Segundo o órgão, a eleição aconteceu “com uma falta geral de liberdades públicas, com candidatos e partidos ilegais, e com autoridades eleitorais desprovidas de toda credibilidade, sujeitas ao poder executivo”.
Consequentemente, a vitória de Maduro não foi aceita pelos Estados Unidos e vários outros países - inclusive o Brasil de Jair Bolsonaro (PL) - que passaram a reconhecer Juan Guaidó, então presidente da Assembleia Nacional, como líder legítimo do país.
No entanto, Guaidó nunca conseguiu assumir o controle efetivo do governo, e Maduro permaneceu no poder. Em resposta, os Estados Unidos impuseram sanções econômicas contra a Venezuela.
Nestas eleições, a oposição já acusou o governo de agir ilegalmente ao bloquear as candidaturas de María Corina Machado e sua substituta, a historiadora Corina Yoris.
Também foram feitas denúncias sobre dificuldade de acesso ao registro necessário para votar (o voto não é obrigatório na Venezuela) tanto no território venezuelano quanto no exterior.
E para Carolina Silva Pedroso, as fraudes podem acontecer muito mais antes do voto do que no momento da ida à urna ou na contagem.
“Como o voto não é obrigatório, podem acontecer ações para impedir as pessoas de chegarem ao centro de votação”, diz. “Em eleições passadas também foram registrados casos de coação ou troca de votos por doações de alimentos e cestas básicas.”
Tudo isso torna não só o dia da eleição, mas todo o período até a posse, bastante delicados.
Há temores de muitos observadores internacionais e analistas sobre o que pode acontecer com os membros da coalizão perdedora. Se por um lado a oposição poderia sofrer perseguição ainda mais intensa após o pleito, não se sabe ao certo qual seria a abordagem de um governo de Edmundo González Urrutia em relação a Maduro e seus aliados.
O atual presidente foi acusado, em março de 2020, pelo órgão responsável por investigar crimes relacionados a drogas nos Estados Unidos (DEA, na sigla em inglês) de estar ligado a um grupo que supostamente traficava drogas, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
Não existe nenhuma ordem de prisão emitida contra Maduro, mas ele e outros membros de seu governo são alvo pessoalmente de sanções americanas e da União Europeia (UE). A medida europeia, por exemplo, os impede de viajar.
Nesse contexto, Pedroso vê a presença na Venezuela do ex-chanceler e atual assessor especial da Presidência, Celso Amorim, como central para a avaliação da situação e posicionamento do Brasil.
Amorim estará em Caracas no domingo e, em declaração para o portal G1, afirmou que seu objetivo é “contribuir para uma eleição correta e limpa. Que quem ganhar possa tomar posse tranquilamente”.
“A decisão de enviar Amorim, que é uma figura chave para a política externa brasileira, mostra uma posição assertiva”, avalia a professora da Unifesp.
E segundo Feliciano de Sá Guimarães, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), as declarações e movimentações recentes do governo Lula parecem indicam que há uma preparação no governo para não legitimar a eleição venezuelana caso haja qualquer indício de fraude ou uma vitória de Maduro por uma margem muito pequena.
“O custo de reconhecer Maduro como vitorioso é muito alto para o governo brasileiro”, diz. “Esse é um tema muito delicado domesticamente, porque a maioria da população brasileira tem uma visão muito negativa da Venezuela e do governo Maduro.”
Ryan Berg, diretor do Programa de Américas do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, think tank com sede em Washington, D. C., afirma que o posicionamento tomado por Brasil e Colômbia após a divulgação dos resultados pode ser decisivo para o desenrolar da situação.
O especialista afirma que não se surpreenderia se. em caso de vitória, Maduro tentasse entrar em contato com Brasil e a Colômbia para pedir que mantenham a calma e não interfiram nos assuntos internos da Venezuela.
“Se Maduro conseguir impedir que esses países denunciem a eleição como injusta e não livre, isso será decisivo para ele nos dias seguintes”, diz.
Tradicional aliado do chavismo e de Nicolás Maduro, o governo Lula endureceu o tom em relação ao processo eleitoral venezuelano nos últimos meses.
Nesta semana, o presidente brasileiro expressou preocupação com a retórica recente de Maduro, e solicitou respeito pelo processo democrático e pelo resultado das eleições presidenciais no país.
"Fiquei assustado com a declaração do Maduro dizendo que, se ele perder as eleições, vai ter um banho de sangue. Quem perde as eleições toma um banho de voto. O Maduro tem que aprender, quando você ganha, você fica; quando você perde, você vai embora", disse Lula, em entrevista a agências de notícias internacionais no Palácio da Alvorada.
O venezuelano rebateu sugerindo que quem se assusta precisa tomar “chá de camomila”.
Maduro também atacou o sistema eleitoral brasileiro, dizendo sem provas que os pleitos no Brasil não são auditados. Segundo ele, a Venezuela tem "a melhor auditoria do mundo" e que "nenhum boletim de urna é auditado no Brasil".
Após as declarações, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) reafirmou que as urnas eletrônicas são auditáveis e seguras e declarou que as falas de Maduro são falsas. O órgão também cancelou o envio de dois representantes para acompanhar as eleições venezuelanas.
O convite para acompanhar a realização da votação havia sido feito pelo Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela.
O envio de ministros ou servidores do tribunal para acompanhar as eleições em países estrangeiros é uma medida praxe realizada pelo TSE, que também recebe delegações internacionais durante as eleições municipais e presidenciais.
Segundo analistas, a presença dos representantes brasileiros reforçaria ainda mais o papel importante de observação do Brasil e ajudaria a embasar a resposta do governo Lula - de apoio ou questionamento - aos resultados.
Mas os especialistas reconhecem que o Brasil de hoje é um dos poucos - se não o único - países capazes de dialogar bem com os dois lados da política venezuelana.
Carolina Silva Pedroso, da Unifesp, vê o posicionamento recente mais crítico do governo Lula em relação ao governo Maduro como uma tentativa de construir credibilidade com a oposição para negociar e se mostrar disponível para ajudar em caso de uma crise.
“As declarações podem estar gerando ruídos agora, mas no cenário pós-eleição podem auxiliar na capacidade brasileira de diálogo”, avalia.
Mas Feliciano de Sá Guimarães reconhece que o grande ator externo nos próximos meses serão os Estados Unidos.
Apesar de não manterem relações boas com o chavismo e serem vistos como “o inimigo” por Maduro e seus aliados, os americanos têm a capacidade de usar as sanções econômicas como um poderoso instrumento político, diz Guimarães.
“E o governo americano está especialmente preocupado em não deixar a situação da Venezuela se transformar em um problema que pode afetar as próprias eleições nos Estados Unidos, marcadas para novembro.”
Mas a participação do Brasil pode ir além do papel na observação e reconhecimento dos resultados e mediação.
A crise na Venezuela é vista como uma ameaça à segurança nacional e um obstáculo na consolidação do projeto de reintegração da América do Sul, uma das prioridades do governo Lula em política externa.
Há, segundo o professor da Usp, uma preocupação especial com a possibilidade de uma nova onda de fuga de venezuelanos em direção ao território brasileiro, em caso de uma crise política e social.
Mas uma instabilidade eleitoral poderia levar, em última instância, à volta de uma tensão em relação a uma invasão venezuelana de Essequibo.
“Maduro poderia usar isso como uma cartada final se mais nada funcionar”, diz Feliciano de Sá Guimarães.
“Até agora parece pouco provável, mas um país da América do Sul invadindo militarmente outro país da América do Sul seria uma derrota fragosa e completa da política externa brasileira.”
Para Silva Pedroso, apesar do Brasil defender uma aliança mais profunda entre os países sul-americanos, o Brasil poderia se articular melhor com o governo do colombiano Gustavo Petro para trabalhar em conjunto.
“Petro tem sido muito proativo nesse processo eleitoral e vem de um país que passou efetivamente por um conflito civil de muitas décadas, o que traz uma perspectiva interessante.”
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