Alterar as doses de vacina contra a Covid-19 antes que haja ensaios clínicos que garantam essa estratégia eleva o risco de que o coronavírus se torne resistente aos imunizantes, afirmou o cientista americano William Haseltine, que foi professor de Harvard e hoje preside o centro de estudos sobre saúde global Access.
O uso de imunizante fora das prescrições testadas pelos fabricantes foi avalizada nesta semana por grupo consultivo da OMS e está sendo adotado pelo Reino Unido e pela Dinamarca, entre outros países. O Brasil também estuda medidas semelhantes, para elevar o número de residentes que recebem a primeira dose. Os EUA afirmaram desaprovar a estratégia.
"O resultado será ter um número muito grande de pessoas com imunidade parcial, e imunidade parcial é uma ótima maneira de o vírus aprender como escapar de qualquer defesa que estamos tentando criar quando ele encontra alguém que foi vacinado", afirmou o cientista, conhecido por pesquisas com genoma humano e o vírus HIV, em entrevista à rede Euronews.
Haseltine comparou o risco com o do surgimento de microrganismos resistentes a antibióticos. "É por isso que os médicos lhe dizem para tomar corretamente a dose completa de antibióticos. Para que as bactérias que estão em você não aprendam como contorná-lo. O mesmo acontece com o vírus. Não queremos uma grande população de pessoas com uma dose subótima da vacina", disse ele.
Segundo o pesquisador, as autoridades de saúde deveriam seguir as orientações prescritas pelos fabricantes, com base nos ensaios clínicos realizados, em vez de tentar estratégias como atrasar a injeção da segunda dose ou usar cada ampola para dar seis injeções em vez de cinco.
"A ciência já nos disse o que funciona, e devemos seguir esse conhecimento até que façamos um teste para saber se uma dose menor funciona. Caso contrário, corremos um risco grave", afirma o cientista.
Para ele, ainda que as autoridades de saúde tenham afirmado aceitar um risco calculado, "não acho que elas calculam o quão grave será surgir uma variante resistente a todas as vacinas". Ele comparou os vírus com computadores que decifram códigos, testando continuamente os números até encontrar as correspondências: os patógenos também testam os organismos até encontrar uma nova maneira de colonizá-lo.
"Cada vírus produz trilhões de cópias, cada uma mudando para se adaptar aos novos desafios", escreveu em artigo publicado nos EUA no Natal. Segundo ele, alguns deles conseguem mudar mais rapidamente que a capacidade humana de criar barreiras, e o Sars-Cov-2 pode seguir esse caminho.
Por isso, afirma o cientista, é importante a pesquisa de vacinas que não se apoiem apenas na chamada proteína S (de spike, ou espícula), como os imunizantes desenvolvidos pela Pfizer, pela Moderna e pela AstraZeneca, já aprovados e em uso em países como EUA, Canadá e os da Europa (o Brasil também terá vacinas da AstraZeneca e negocia com a Pfizer).
Como as novas variantes podem descobrir outras formas de invadir as células humanas, o ideal seria ter imunizantes com uma estratégia mais ampla de defesa. De acordo com Haseltine, imunizantes desenvolvidos com métodos mais tradicionais, como os que usam vírus inteiros inativados, podem ter mais sucesso no futuro. Essa tecnologia mais tradicional é a usada na Coronavac, por exemplo, vacina prevista para uso no Brasil.
Na avaliação de Haseltine, "alguns países ainda estão perseguindo a noção tola de imunidade de rebanho, apesar das evidências científicas sugerirem que essa proteção não existe para essa doença". Ele citou relatório do CDC (centro de controle de doenças dos EUA) que descreve os coronavírus que afetam humanos, entre eles quatro tipos que infectam até 15% da população mundial a cada ano e que voltam ano após ano, frequentemente infectando novamente as mesmas pessoas.
O alerta de Haseltine vem em um momento de rápido contágio por variantes do Sars-Cov-2 identificadas no final de 2020. A detectada no Reino Unido se tornou predominante no país em três meses, sobrecarregando os hospitais. Em Londres, o prefeito Sadiq Khan declarou "incidente grave" (espécie de estado de emergência) por causa de disseminação considerada fora de controle na capital inglesa.
Mais de 7.000 pacientes estão internados com Covid-19 em Londres (35% mais que no pico de abril) e o sistema nacional de saúde (NHS) está à beira do colapso, segundo ele, com 800 novos pacientes chegando aos hospitais a cada dia. Khan quer que o premiê Boris Johnson aperte ainda mais as restrições, proibindo, por exemplo, a abertura de igrejas. O Reino Unido tem quebrado recordes sucessivos, com mais de 1.300 mortes e 68 mil novos doentes por dia.
A Alemanha também registra recordes diários de novos casos e mortes no país, o que levou a premiê Angela Merkel a declarar que as próximas semanas serão as mais duras da pandemia. "Médicos e equipes médicas em muitos hospitais estão trabalhando à beira da sobrecarga, e o que ouvimos sobre as mutações do vírus também não diminui a ansiedade. Pelo contrário, aumenta", afirmou ela em discurso.
A premiê pediu que as pessoas reduzam ao máximo o contato pessoal e cumpram as regras básicas para evitar o contágio. Restrições à circulação também foram impostas ou prolongadas em vários países europeus, incluindo a Suécia, que aprovou nova legislação para permitir que o governo ordene medidas de precaução.
Haseltine afirma que a pandemia exige ação coordenada nacional e global. "Os Estados Unidos, o Reino Unido, o Brasil e outros retardatários falharam em ambos os casos. Medidas graduais só vão alimentar a pandemia", escreveu.
"Claramente, uma mudança nas mensagens é necessária. Estamos em guerra com um vírus. Poucos duvidam da importância da liberdade pessoal, mas este é um momento em que todos precisamos abrir mão de certas conveniências pelo bem daqueles que estão ao nosso redor", defende o cientista.
Segundo o diretor da OMS para a Europa, Hans Kluge, quase metade dos 53 países do continente apresentavam um taxa crescente de novos casos, e, em um quarto deles, a elevação era da ordem de 10% por semana.
Por causa das novas variantes, o centro de controle de doenças europeu (ECDC) elevou sua avaliação para "risco alto", apontando sobrecarga nos hospitais. No Brasil, hospital de Salvador relatou primeiro caso de reinfecção com variante do coronavírus.
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