Todos os meses, durante quatro ou cinco dias, um grupo de cientistas brasileiros vive a vida de um passarinho.
Eles acordam cedo, antes de o sol raiar, e se embrenham por horas em pântanos lotados de capins altos e muitos insetos.
O objetivo da missão é um só: observar o bicudinho-do-brejo (Formicivora acutirostris), uma ave rara encontrada apenas em regiões específicas da Baía de Guaratuba, quase na divisa entre o Paraná e Santa Catarina.
Entre os mais de 60 indivíduos da espécie que são acompanhados de perto, um se tornou o queridinho da equipe de biólogos: Rosaldo, um macho de 16 anos, que é acompanhado pelos pesquisadores antes mesmo de nascer, quando ainda estava se desenvolvendo no ovo.
Essa década e meia de observação de um mesmo passarinho permitiu aos especialistas reunir uma série de dados sobre a história de vida dele.
Essas informações podem ajudar a entender as estratégias que a espécie adota para se adaptar e responder às mudanças climáticas — como o aumento do nível do mar ou a maior frequência de eventos extremos.
Chegou a hora, então, de conhecer a vida romântica e obstinada de Rosaldo.
O bicudinho-do-brejo era um completo desconhecido da ciência até o início da década de 1990.
"Em 1995, Bianca e eu fazíamos uma pesquisa de campo no brejo quando vi uma fêmea de uma espécie nova, que não conhecíamos. A Bianca não quis acreditar nessa possibilidade, pois era algo além da nossa realidade", relata o ornitólogo Marcos R. Bornschein, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
A Bianca citada pelo cientista é a bióloga, jornalista e conservacionista brasileira Bianca Luiza Reinert, que dedicou a carreira a conhecer o bicudinho-do-brejo. Ela morreu em 2018.
"Pouco depois, naquele mesmo dia de 1995, vimos outros dois indivíduos da nova espécie. A partir daí, começamos as pesquisas emergenciais para confirmar o achado e descrever as características principais dessa ave", complementa Bornschein.
Em pouco mais de dez anos de trabalho, os especialistas puderam confirmar que o bicudinho-do-brejo habita uma região bem restrita — o sul do Paraná e o nordeste de Santa Catarina.
O habitat dele se resume às áreas pantanosas, com capins altos, que ficam próximas da costa litorânea.
"O bicudinho tem o peso de um bombom", detalha a bióloga Giovana Sandretti-Silva, que coordena um projeto de conservação da espécie e faz parte do grupo de pesquisa de Bornschein.
"O macho é um pouco mais escuro e tem a barriga marrom. Já a fêmea possui uma barriga carijó, com penas brancas e pretas", diz ela.
A primeira década de pesquisa com o bicudinho-do-brejo também permitiu descobrir que esses pássaros são territorialistas e mantêm relacionamentos por longos períodos.
"O casal vive no mesmo lugar por vários anos, se alimenta de pequenos insetos ou caranguejos e usa os capins do brejo para fazer os ninhos", acrescenta Sandretti-Silva.
Segundo a bióloga, os bicudinhos geram dois ovos por ciclo reprodutivo — e, se bem-sucedidos, eles terão dois filhotinhos para cuidar por algumas semanas.
"Uma coisa interessante é que macho e fêmea dividem todas as tarefas. Juntos, eles constroem os ninhos, chocam os ovos, cuidam dos filhotes…", exemplifica ela.
Quando o filho cresce e consegue se virar sozinho, ele é expulso pelos próprios pais e precisa buscar um território próprio.
"Eles não têm muita autonomia de voo, então pulam de um capim para outro e vagam até achar um novo lugar", aponta Sandretti-Silva.
O Rosaldo entra nessa história em 2007, quando os pesquisadores encontraram o ovo em que ele se desenvolvia dentro de um ninho no brejo.
Após nascer, crescer e ser expulso pelos pais, o passarinho encontrou seu território na mesma Ilha do Jundiaquara onde veio ao mundo — segundo os pesquisadores, ele nasceu numa ponta da ilha e se estabeleceu no extremo oposto.
Questionado sobre a origem do nome Rosaldo, Bornschein diz que o grupo coloca anilhas de diferentes cores nas patas dos passarinhos observados.
A combinação de cores e posições desses pequenos aros permite que os cientistas identifiquem cada animal, para que todas as aves possam ser acompanhadas individualmente ao longo de vários anos.
Assim que saiu do ovo, Rosaldo recebeu anilhas cor-de-rosa — daí veio a ideia do nome que ele carrega desde então.
"O Rosaldo sempre foi muito precoce. Ele estabeleceu o próprio território com sete meses de idade e logo conheceu uma bicudinha mais velha, com quem começou a se reproduzir já no ano seguinte, em 2008", conta Sandretti-Silva.
Desse primeiro casamento, que durou quatro anos, foram gerados três filhotes de bicudinho-do-brejo.
A fêmea desapareceu — provavelmente morreu — no início de 2012. Pouco tempo depois, Rosaldo tinha arrumado uma nova parceira.
"A segunda esposa foi o grande amor da vida do Rosaldo. Eles ficaram nove anos juntos, sempre no mesmo lugar, sempre fiéis um ao outro, e tiveram oito filhotes", contabiliza a bióloga.
"Isso dá quase um filhote por ano, o que representa um sucesso reprodutivo muito alto para os territórios que a gente monitora."
Com a morte da segunda esposa, Rosaldo está agora no terceiro "casamento", que se iniciou em 2021.
"Eles formam um casal bem animado, que faz muitos ninhos. Mas, infelizmente, apesar das várias tentativas, não conseguiram gerar filhotes até o momento", observa Sandretti-Silva.
Os especialistas dizem que Rosaldo está acostumado com a presença de seres humanos — embora eles tentem interferir o mínimo possível enquanto fazem as pesquisas de campo. O passarinho é classificado como fotogênico, pois posa com naturalidade para as câmeras.
Com as principais dúvidas sobre a biologia do bicudinho-do-brejo respondidas, os cientistas brasileiros agora querem entender como a espécie é afetada pelas mudanças climáticas — e Rosaldo pode desempenhar um papel-chave nesses esforços.
Bornschein observa que a área em que esses passarinhos vivem parece estar diminuindo. Atualmente, eles monitoram cerca de 32 territórios e 64 indivíduos diferentes.
“Antigamente, era comum acompanharmos até 40 territórios. A vida não está muito fácil para os bicudinhos”, constata ele.
Os pesquisadores querem entender como esses passarinhos estão se adaptando a novas realidades, como o aumento da temperatura, a elevação do nível do mar, a ocorrência de eventos extremos (como ciclones) e a introdução de espécies invasoras, como capins africanos.
Um exemplo prático: se o brejo estiver com mais água, isso exigirá que os bicudinhos façam seus ninhos em capins mais altos. Isso pode salvar os filhotes das inundações, mas deixa a família mais exposta aos predadores.
Bornschein pontua que, para entender essas novas realidades, será necessário fazer um acompanhamento de longo prazo, que supere 20 anos de dados acumulados.
Isso ajudaria a ponderar ajustes cíclicos da natureza — o ornitólogo lembra que as marés, por exemplo, têm momentos de cheias e baixas, que se revezam em períodos de cerca de 16 anos.
É justamente aí que entra Rosaldo: o fato de ele ser acompanhado há tanto tempo permite entender melhor como esses pássaros reagem às mudanças do ambiente.
“Queremos comparar as estratégias que o bicudinho possui no início da vida e como ele muda conforme fica mais experiente”, projeta Sandretti-Silva.
“O Rosaldo está contribuindo muito para isso, pois temos dados de toda a vida dele que nos ajudarão a entender essa adaptação às mudanças.”
Para entender em detalhes essas questões, os pesquisadores firmaram recentemente uma parceria com o Zoológico de São Paulo. A ideia é pesquisar e conhecer os melhores meios de conservar a espécie — afinal, o bicudinho está ameaçado de extinção.
Os especialistas pretendem aumentar as regiões próprias para a habitação e reprodução da ave, para que mais filhotes nasçam e sobrevivam.
“Nosso sonho é poder contribuir de alguma forma para preservar a espécie e ao menos diminuir o risco de extinção dos bicudinhos”, diz a bióloga Marina Somenzari, do Zoo de SP.
Para Bornschein, as quase três décadas de contato com o bicudinho-do-brejo podem ser resumidas em uma palavra: persistência.
“Como pesquisador, é complicado humanizar o comportamento de outros seres. Mas vou me dar o direito de fazer isso com o bicudinho: ele é uma das espécies mais persistentes que já vi.”
“Nossa equipe foi positivamente contaminada pela persistência do bicudinho, que lida com uma série de adversidades e não desiste facilmente”, observa o especialista.
“E esse símbolo nos inspira a continuar nosso trabalho todos os dias”, conclui ele.
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