Rússia e Turquia anunciaram um cessar-fogo na guerra civil da Síria, na qual as duas potências estrangeiras apoiam lados diferentes: Moscou é aliada da ditadura de Bashar al-Assad e Ancara, de rebeldes hoje centrados na província de Idlib.
O anúncio foi feito pelos presidentes Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan no Kremlin. O turco queria discutir a grave escalada no conflito com o russo em Ancara com a presença de outros líderes estrangeiros, mas Putin só aceitou falar em casa -para simbolizar sua posição de força no conflito, ameaçada pelos desenvolvimentos no país árabe.
Os dois líderes falaram por seis horas, três delas a sós, nesta quinta (5). O cessar-fogo vale para toda a província de Idlib, foco da disputa que opôs a Turquia, um membro da Otan, e a Rússia, país contra o qual a aliança militar ocidental foi formada em 1949.
Segundo o chanceler russo, Serguei Lavrov, forças dos dois países farão patrulhas conjuntas na rodovia M4, a principal de Idlib. Isso já ocorre na zona de segurança na fronteira norte do país, e é uma medida que visa gerar maior confiança mútua.
Para agradar seu público interno, Erdogan afirmou que a Turquia se reserva o direito de retaliar qualquer ataque de forças de Assad.
Na prática, até que detalhes das conversas surjam, ambos os presidentes ganharam tempo e as tropas no local, certo refrigério após duas semanas de intensos combates. Putin apoia com ataques aéreos desde dezembro a ofensiva final de Assad para retomar as rodovias do norte e noroeste sírios e Idlib, o último bolsão rebelde no país.
Com efeito, na manhã antes do encontro dos dois, um bombardeio atribuído aos russos matou 16 civis no sul de Idlib, capital homônima da província. Os turcos, presentes na região desde 2018 e que no fim de 2019 patrocinaram uma invasão de maior escala, têm reforçado seus aliados árabes contrários a Assad desde então.
As altercações se tornaram comuns e, na quinta passada (27), um bombardeio matou 34 soldados turcos em 1 dos 12 postos de observação que o país mantém em Idlib. A ação foi atribuída por russos e turcos como síria, mas poucos analistas duvidam que foi obra de um avião do Kremlin.
Ato contínuo, os turcos lançaram uma grande operação militar, onde perderam alguns homens (o total de baixas é 59 até aqui) e mataram talvez 2.000 soldados sírios. Já o Kremlin despachou cinco navios de guerra e aviões de transporte para a região.
O risco de um embate direto com os russos cresceu exponencialmente, e os turcos foram alertados que suas forças eram indistinguíveis daquelas dos rebeldes.
A ameaça parece ter surtido efeito, embora o problema central siga o mesmo. Putin não quer ver Assad, ou ao menos seu esquema de poder, derrotado, não menos porque tem planos de esticar sua rede de gasodutos e oleodutos do Cáucaso para o Mediterrâneo passando por uma Síria pacificada.
Erdogan, por sua vez, não quer Assad fortalecido porque isso favoreceria não só a Rússia, mas também o Irã, seu grande rival regional no Oriente Médio. Assim, uma acomodação mais ampla ainda precisa ser vista -é de se supor que ela já começou a ser negociada nesta quinta.
A guerra civil na Síria começou em 2011, na esteira de protestos assemelhados aos da chamada Primavera Árabe, mas que logo descambaram para violência sectária no país.
Já morreram no conflito de 360 mil a 580 mil pessoas, a depender de quem faz a conta. São mais de 15 milhões de refugiados e deslocados internos .
Diversas potências estrangeiras se envolveram no conflito sírio, apoiando grupos rivais. A ditadura de Assad definhou ao ponto de quase ser derrotada, mas em 2015 Moscou interveio e instalou um destacamento aéreo no país, revertendo a sorte do aliado com o apoio terrestre de forças iranianas e do grupo libanês Hizbullah.
O interesse russo na Síria, Estado que é cliente do Kremlin desde a Guerra Fria, se mostrou múltiplo. Duas vitórias estratégicas já foram obtidas. A Rússia voltou a ser reconhecida como potência relevante no Oriente Médio, elevando assim seu status em negociações mundo afora e projetando influência na região.
Além disso, ao aproveitar-se do vácuo americano, desinteressado no conflito desde o começo, a posição de força de Putin acabou atraindo Erdogan quando Ancara afastou-se de Washington, a partir de 2016. Isso acentuou as fissuras dentro da Otan, a aliança militar ocidental da qual a Turquia é um membro central por sua posição geográfica.
O casamento de conveniência ia bem, inclusive com a polêmica compra de baterias antiaéreas S-400 russas pelos turcos, até o início das desavenças, no fim do ano passado.
Já os turcos também conseguiram a vitória que desejavam: separaram os curdos do norte da Sìria daqueles do sul de seu país, que há décadas vivem em conflito separatista com Ancara, enfraquecendo essa oposição.
Isso ocorreu com anuência de Putin no fim de 2019, mas aí Erdogan decidiu reforçar a zona que deveria ser desmilitarizada em Idlib, buscando inviabilizar uma vitória final da ditadura síria, sua adversária, e buscando terreno para enviar alguns dos 3,6 milhões de refugiados que recebeu do país.
Há um componente europeu adicional. A Turquia está usando os refugiados que abriga para pressionar a União Europeia a tomar partido de Ancara na disputa com Moscou. Os turcos liberaram a saída dessas pessoas para Grécia e Bulgária, rompendo um acordo que vigia desde 2016.
Com isso, milhares de pessoas estão tentando entrar na Europa, principalmente via Grécia. A Turquia, adversária histórica de Atenas apesar de ambos estarem na Otan, enviou mil soldados para evitar o retorno de refugiados recusados pelos gregos -criando um drama humanitário na terra de ninguém formada entre os dois países.
Só a ofensiva de Assad e os combates por Idibl removeram de casa 1 milhão de pessoas, segundo a ONU, o maior contingente em toda a guerra. Esses grupos estão parados em outra fronteira, no norte da Síria com o sul turco, sofrendo com o inverno da região em campos improvisados com peças plásticas e metálicas.
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