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'Tim Maia Racional': por que cantor fez de tudo para que disco sumisse do mapa

'Tim Maia Racional': por que cantor fez de tudo para que disco sumisse do mapa

Lançados em 1975 e 1976, os dois volumes de 'Tim Maia Racional' marcam guinada radical na vida do cantor, quando ele aderiu a grupo religioso que pregava estilo de vida rígido

Publicado em 3 de abril de 2025 às 05:39

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Imagem BBC Brasil
Fase 'Racional' do Tim Maia fez com que ele criasse sua própria gravadora, a Seroma. (Divulgação/Locomotiva Discos)

Tom Cardoso

"Por que tu não esquece isso, Marisa Monte? Deixa isso para lá, Marisa Monte!", dizia Tim Maia à cantora, que queria cantar uma música... dele.

Era Que Beleza, faixa que Marisa Monte queria incluir no álbum Barulhinho Bom, de 1996. Mas Tim Maia insistiu tanto que a cantora desistiu da ideia, segundo ela contou em uma entrevista ao jornal Estadão em 2000.

A música, também conhecida como Imunização Racional, é uma das 20 canções de Tim gravadas no período em que o artista se tornou adepto do grupo religioso Universo em Desencanto.

A fase rendeu dois discos: Tim Maia Racional Vol. 1 e Vol. 2, lançados, respectivamente, em 1975 e 1976.

A gravação do volume 1, em fevereiro de 1975, completou 50 anos.

O posterior desencanto com o grupo religioso, porém, fez com que Tim Maia fizesse de tudo para que os dois álbuns caíssem no esquecimento.

Não conseguiu: cultuados por colecionadores e fãs de música, no Brasil e no exterior, os LPs chegaram a ser vendidos por fortunas em sebos.

Foi também com esses álbuns que Tim Maia se tornou o primeiro artista vindo do mainstream (segmento mais popular ou dominante do mercado) a se tornar verdadeiramente independente, fundando sua própria gravadora.

Dos excessos à purificação

Imagem BBC Brasil
Tim Maia em 1972; depois de alguns anos de sucesso e excessos, o cantor encontraria a congregação Universo em Desencanto. (Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã)

Liderada pelo médium Manoel Jacintho Coelho, a congregação Universo em Desencanto prometia colocar os devotos em contato com seres de outros planetas.

Para isso, os fieis precisavam cumprir à risca a cartilha de deveres e rituais impostos por Jacintho, como não comer carne, não beber álcool, acordar e dormir cedo e vestir apenas roupas brancas.

Foi um amigo de Tim Maia, o também músico Tibério Gaspar, quem apresentou ao cantor ao grupo religioso.

Em 1974, Tim estava no auge da carreira musical: havia gravado três grandes discos nos três anos anteriores e, com eles, ganhou o merecido título de rei da soul music brasileira.

Tim também estava bebendo e cheirando cocaína como nunca.

Preocupado com os excessos do amigo, Tibério Gaspar decidiu levá-lo para assistir um culto da Universo em Desencanto em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

O que Manoel Jacintho pregava, argumentou Tibério, podia fazer sentido para Tim: uma vida de purificação, preparo espiritual e desapego material que colocaria os habitantes da terra dispostos a esses sacrifícios em contato com seres de outro planeta.

Há tempos Tim sonhava em embarcar numa viagem sideral pelo espaço, de preferência a bordo de um disco voador.

Mas, para chegar ao céu, Tim enfrentou um inferno particular. Tão duro quanto largar imediatamente o álcool e as drogas, foi se desfazer da geladeira e tudo que tinha dentro. Foi-se também o fogão e o ar condicionado.

Obrigado a se desfazer de qualquer bem material, Tim só não jogou fora a cama king size. Dormir no chão já seria demais.

Imagem BBC Brasil
Foto de templo da Universo em Desencanto em Nova Iguaçu recebida por denúncia anônima ao Serviço Nacional de Inteligência (SNI) durante a ditadura, em 1984. (Arquivo Nacional/Fundo Serviço Nacional de Informações)

A fase messiânica permitiu algo que muitos achavam pouco provável naquele momento: transformar Tim Maia, um grande intérprete da música popular brasileira, num cantor ainda melhor.

Proibido de cair na farra, por conta da cartilha moral imposta por Jacintho, o cantor parou de beber, fumar e cheirar. Os famosos graves chegaram à potência máxima.

Serginho Trombone, que trabalhou nos dois discos Tim Maia Racional, relatou ao site Cliquemusic, em 2000, o martírio enfrentado pelo cantor para cumprir todos os rituais.

"Foi uma fase muito doida. O Tim vivia olhando para o céu procurando discos voadores. O pior de tudo é que ele convenceu a banda inteira a entrar para a seita. Pintamos todos os instrumentos de branco, até a bateria", lembrou Serginho, que morreu em 2020.

"Ele acabou sendo o grande prejudicado, pois teve de se livrar de todos os produtos materiais de seu apartamento. Jogou fora fogão, geladeira e até o carpete da sala."

Boicote e isolamento dos fãs

De branco da cabeça aos pés, com uma bíblia debaixo do braço, o recém-convertido fiel da Universo em Desencanto enlouqueceu os engenheiros de som e produtores da gravadora Polydor. A ordem era mudar tudo, dos arranjos às letras das músicas.

A direção da Polydor não gostou do que viu e ouviu.

A gravadora rescindiu o contrato com Tim, recusando-se a gravar um disco gospel com um artista não só identificado com a black music, mas também conhecido pelo estilo ousado e transgressor.

Seria algo como gravar um disco de punk-rock com Roberto Carlos.

Tim não desistiu e fundou a própria gravadora, a Seroma — abreviação de seu nome, Sebastião Rodrigues Maia.

Foi um momento histórico da música brasileira: um grande artista passou a gerenciar sua carreira, sem a ingerência de uma multinacional. Elas dominavam o mercado fonográfico brasileiro.

Tim se tornou dono da própria obra e história.

Mas o preço de tanta mudança foi alto. O cantor teve que se virar sozinho, sem respaldo de uma grande gravadora — o próprio artista, com a ajuda dos músicos de sua banda, passou a entregar pessoalmente os discos nas grandes lojas do Rio e de São Paulo.

Ele também enfrentou o boicote dos canais de divulgação.

Com exceção de Que beleza, talvez a canção menos doutrinária dos dois discos, nenhuma outra faixa de Tim Maia Racional tocou nas rádios.

Os fãs também não gostaram. Quando procuravam pelo novo disco do artista e viam aquela capa, com símbolos e mensagens que remetiam à Universo em Desencanto, além do encarte com as letras de louvor, não tiravam nem o LP das prateleiras.

Mais tarde, Tim deu outro nome à sua gravadora, Vitória Régia Discos, com a qual lançou todos os seus álbuns até a morte, em 1998.

Cadê o disco voador?

Em um dado momento, pelo fim de 1976, o cantor percebeu que os discos voadores jamais pousariam em Nova Iguaçu ou em qualquer outro lugar — e Tim Maia reagiu como Tim Maia.

Primeiro, Tim desejou matar o seu guru, segundo relato de Serginho Trombone. O cantor invadiu a sede da Universo Desencanto, disposto a quebrar tudo — começando com Manoel Jacintho.

Ele foi juntamente com os músicos de sua banda, igualmente indignados. Serginho Trombone, que havia se desfeito do carro, do freezer e de duas linhas telefônicas, era o mais revoltado.

Protegido pelos fiéis, o médium escapou da surra, mas não do vexame.

"O Tim estava possesso. Ele foi para a janela de entrada da Universo em Desencanto e passou a gritar para todos que passavam na rua que aquilo tudo era uma grande farsa, que o Manoel Jacintho era um charlatão, que só queria o dinheiro dos fiéis. Ele gritava: 'Cadê o disco voador? Cadê o disco voador?'", recordou Serginho Trombone.

O cantor tentou convencer outro famoso fiel a também pular fora. Um dos maiores nomes da música nordestina, o paraibano Jackson do Pandeiro, também recém-convertido à Universo em Desencanto, não quis saber dos apelos de Tim.

Para ele, tudo que Manoel Jacintho pregava, fazia sentido.

Nos anos seguintes, Jackson gravaria quatro músicas em homenagem à Universo em Desencanto: Mundo de paz e amor, Acorda meu povo, Alegria minha gente e A luz do saber.

Fase abençoada pelo público

Imagem BBC Brasil
Tim Maia em 1972; discos da fase Racional acabaram se tornando um dos mais venerados da carreira do cantor. (Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã/Antonio Guerreiro)

Já Tim passou a renegar, até o fim da vida, tudo que remetesse a essa fase — incluindo as canções e discos gravados nesse período.

As letras, realmente, não eram das melhores.

Olhando para o céu, à procura de discos voadores, Tim compôs coisas como "Já não dependo das loucuras/ Já encontrei o que fazer/ Agora sei outra verdade/ Estou vivendo com prazer" (versos da canção Paz Interior).

Encantado com os saberes de seu então guru, Tim também compôs uma canção em homenagem a Manoel Jacintho, intitulada O Grão-Mestre Varonil.

Um trecho: "O grão-mestre varonil/ Manoel, o maior homem do mundo/ Homem sábio e profundo/ Semeou conhecimento/ Missionário da pureza".

Mas Tim não conseguiu apagar os vestígios de sua conversão à Universo em Desencanto.

Não só não conseguiu, como viu o culto a essa fase aumentar. Culpa de fãs como Marcelo D2 e Paul Stewart, ex-piloto de corrida e filho do tricampeão mundial de Fórmula 1 Jackie Stewart, que pagaram caro pelos raríssimos LPs de 1975 e 1976.

Em 2024, após um longo período em que a obra do cantor estava fora de catálogo, uma série de discos de Tim lançados entre 1970 e 1984 foi disponibilizada no Spotify, entre eles os dois volumes da fase Racional.

Os fãs do cantor e da música brasileira enlouqueceram, menos o próprio autor, que, morto, nada pôde fazer.

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