Faz 50 anos que o tropeiro chileno Sérgio Catalán atravessava com seus animais um trecho inóspito da cordilheira dos Andes quando escutou o grito que vinha dos pulmões debilitados de um jovem uruguaio. Do outro lado de um rio, Fernando Parrado arremessou um bilhete escrito a mão, já molhado pela neve: "Venho de um avião que caiu nas montanhas. Há dez dias estamos caminhando. Estou com um amigo ferido. No avião há 14 pessoas, temos de sair rápido dali. Não temos comida, estamos fracos".
Catalán logo se deu conta que se tratava de um sobrevivente do voo da Força Aérea Uruguaia que havia caído 72 dias antes -equipes de resgate já haviam desistido das operações de buscas, calculando que estivessem todos mortos. O tropeiro cavalgou por dez horas até Puente Alto para buscar ajuda. Um helicóptero foi enviado para resgatar Parrado e seu amigo, Roberto Canessa, e depois equipes voaram até onde os demais sobreviventes se abrigavam.
Cinquenta anos depois, o que ficou conhecido como Tragédia dos Andes é objeto da produção de ao menos o terceiro filme sobre o episódio -sem contar as dezenas de documentários e livros. O caso impactou pelo modo como 16 pessoas puderam atravessar aquele período, a 3.570 metros de altitude, sob frio de até -30°C à noite, com pouca comida e remédios, vendo morrer, dia a dia, colegas que não resistiam.
Quando acabaram os mantimentos, os sobreviventes apelaram à desesperada decisão de comer partes dos cadáveres, depois de dias de discussão. A óbvia hesitação se deu também porque a maioria dos passageiros pertencia a uma equipe de rúgbi uruguaia, o Old Christians Club, que viajava a Santiago para jogar contra uma equipe inglesa; ou seja, quase todos se conheciam.
"Na época, houve sensacionalismo em relação a essa decisão. Mas hoje eu pergunto a quem ouve nossa história, em palestras e entrevistas: o que você faria? Àquela altura, já havíamos comido até couro dos assentos, tudo o que havia a bordo. Se não comêssemos carne humana, não teríamos sobrevivido", diz à reportagem Carlos Páez Rodríguez, que na época tinha 18 anos.
Filho do artista uruguaio Carlos Páez Vilaró (1923-2014), ele colaborou com a produção de "La Sociedad de la Nieve", produzido pela Netflix e dirigido pelo espanhol Juan Antonio Bayona. As filmagens foram concluídas em abril, e a estreia será neste ano. O filme sucede "Os Sobreviventes dos Andes" (1976), baseado no livro do jornalista Clay Blair Jr., e "Vivos" (1993), de Frank Marshall, com Ethan Hawke e John Malkovich.
"É uma história humana, sobre como sermos humanos em condições extremas, e que ensina a valorizar a vida. Por isso atrai tanto a atenção das pessoas", diz Páez Rodríguez.
As investigações sobre a queda do avião concluíram que ela se deveu a um erro do copiloto, Dante Lagurara, que estava em treinamento; o piloto, Julio César Ferradas, era um experiente oficial da aeronáutica. O voo decolou de Montevidéu em 12 de outubro de 1972, e o mau tempo levou a uma escala à noite em Mendoza, na Argentina, para aguardar por melhores condições.
No dia seguinte, no voo para Santiago, Lagurara se equivocou pensando estar mais perto do aeroporto de Pudahuel do que de fato estava e começou a aterrissagem muito antes da hora. Quando se deram conta de que iam se chocar contra os picos gelados, os pilotos tentaram levantar a aeronave novamente, mas foi tarde demais. Primeiro, bateram uma das asas; depois, a parte de trás, que se separou do corpo do avião, atirando passageiros para a morte. Os que sobreviveram estavam num segmento que caiu na neve, o que amorteceu o choque.
Eram, inicialmente, 45 passageiros, dos quais só 16 chegaram vivos ao último dia da saga. Os pilotos morreram.
"Os grandes heróis foram Parrado e Canessa, que perceberam que, se permanecessem no local do acidente, iam continuar morrendo até o último. Por isso resolveram caminhar até encontrar ajuda", diz à reportagem o repórter chileno Alipio Vera, primeiro jornalista de TV a chegar ao local.
Depois de checar as informações do voo, os dois pensaram que estavam muito mais próximos dos verdes campos chilenos do que realmente estavam e imaginaram que a caminhada não seria tão longa. Agasalharam-se como possível, usando roupas dos demais passageiros -Parrado vestia três calças jeans sobrepostas. Levaram o que era possível de comida, mas, após caminharem por quatro dias, se deram conta que o que havia no horizonte eram mais e mais picos gelados, não o fim da cordilheira. Com Canessa ferido e fraco, Parrado continuou a caminhar, até dar com o tropeiro.
"Não sei o que seria deles se demorassem um dia mais -provavelmente teriam morrido. Todos os anos perdem-se aviões pequenos sobre os Andes, seria uma tragédia a mais", diz Vera.
O jornalista conta que também teve de escalar uma região inóspita com sua equipe para chegar aonde o tropeiro armou um pequeno acampamento para Parrado e Canessa enquanto as equipes de busca voavam para resgatar os que haviam ficado entre os restos da aeronave.
"Eles tinham aparência famélica, os lábios rachados, não tinham forças nem sequer para falar direito. Estavam terminando a primeira refeição em mais de 70 dias, um prato de sopa com macarrão e feijões", diz. "Para mim, um jovem jornalista, foi muito comovente. Todos os dias me lembro disso."
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