O presidente Donald Trump chamou o governo alemão de "delinquente" em seu gasto com defesa e anunciou a retirada de 12 mil dos cerca de 36 mil militares americanos baseados no aliado, membro da Otan (aliança militar ocidental).
"Eles estão lá para proteger a Europa. Eles estão lá para proteger a Alemanha, certo? E a Alemanha deve pagar por isso. A Alemanha não está pagando. Não queremos ser mais otários. Assim, estamos reduzindo nossas forças porque eles não estão pagando suas contas. É bastante simples, eles são delinquentes", disse Trump na Casa Branca.
A queda de braço remonta à chegada de Trump ao poder, e sua reativação pode ser creditada às dificuldades eleitorais do presidente em sua campanha à reeleição. O tom virulento, contudo, gerou indignação na Europa e também em casa.
"A redução não é do interesse da Alemanha ou da Otan (aliança militar ocidental), e não faz sentido geopolítico para os EUA", escreveu no Twitter Peter Beyer, o coordenador de relações transatlânticas do governo da chanceler Angela Merkel.
O senador republicano Mitt Romney, que é crítico do correligionário Trump, chamou o anúncio de "um tapa na cara de um aliado". Já o democrata Joe Biden, que por ora é favorito contra o presidente no pleito de novembro, afirmou por meio de seu escritório de campanha que irá rever a decisão se eleito.
Politicagem à parte, a discussão sobre os gastos de defesa no escopo da Otan não é nova, apenas foi acirrada por Trump. A meta do grupo de 30 países é que todos usem ao menos 2% de seu PIB (Produto Interno Bruto) no setor -hoje são apenas 9.
País mais rico da Europa, a Alemanha usou em 2019 1,36%, o 17º lugar entre as nações da Otan. Os EUA gastam 3,42% e responderam no ano passado por 39% do gasto militar do mundo.
Mas esse número engana, já que os americanos têm um engajamento global. Só na defesa europeia, gastam cerca de US$ 30 bilhões anuais, enquanto todos os outros 28 membros no continente dispensem dez vezes mais combinados.
A Alemanha abriga hoje o segundo maior contingente americano no exterior após o Japão, que tem 55,6 mil militares de Washington presentes.
Isso reflete obviamente a natureza do pós-Segunda Guerra Mundial e a contenção da União Soviética. A crítica americana também aponta para algo que é consenso entre especialistas: a flacidez da musculatura militar alemã, com Forças Armadas pouco eficazes e relativamente grandes, 181 mil integrantes.
Isso hoje foi atualizado para, do ponto de vista ocidental, a ameaça da Rússia de um lado e da China, do outro. Por isso, o chefe do comitê de defesa do Parlamento alemão, Norbert Röttgen, disse ao site Politico que a retirada "vai enfraquecer a aliança".
O secretário de Defesa, Mark Esper, deu números para dizer que a Europa não ficará desguarnecida. Dos 12 mil soldados, 6,4 mil voltarão aos EUA, mas os 5,6 mil restantes serão realocados no continente.
Isso animou membros ao leste, os mais preocupados com as ações russas por terem sido parte da órbita de Moscou na Guerra Fria e por terem assistido à excisão da Crimeia da Ucrânia, em 2014, sem resistência além de sanções econômicas por parte do Ocidente.
O presidente lituano, Gitanas Nauseda, disse à agência Reuters que seu país quer receber reforço de tropas. Uma ex-república soviética, a Lituânia fez crescer seu gasto militar de 0,9% do PIB em 2014 para 2,03%, dentro da meta da Otan, em 2019.
Os gastos subiram após a Crimeia e com as ameaças de Trump de abandonar a defesa europeia: em 2014, apenas três países batiam a meta, ante nove agora. O temor de Moscou é grande do Báltico até a Romênia, passando pela rival histórica Polônia.
Na Rússia, analistas tendem a considerar o episódio da Crimeia único, ao lado da guerra contra a Geórgia em 2008, porque em ambos os casos o que estava em jogo era a absorção política de vizinhos que servem de tampões estratégicos entre território russo e ocidental.
De fato, de 1990 até a grande expansão de 2004, a Otan sempre adquiriu aliados a leste, aproximando-se das fronteiras do Kremlin.
Isso explica, após um início de governo em 2000 com movimentos de abertura ao Ocidente, a crescente hostilidade e assertividade demonstradas pelo presidente Vladimir Putin sobre as intenções da Otan.
Apesar de ter modernizado suas forças, o esteio do poder russo é o mesmo dos tempos soviéticos: ser uma superpotência nuclear, posto dividido com os EUA.
A Ucrânia, que ainda enfrenta uma guerra civil congelada com separatistas pró-russos, tem aumentado o número de exercícios militares com a Otan, mas não ousa aliar-se formalmente ao grupo.
O secretário-geral da aliança, Jens Stoltenberg, foi diplomático com o maior sócio do clube (US$ 658 bilhões dos quase US$ 1 trilhão gasto em 2019) e disse que o plano americano foi discutido detalhadamente com a Otan.
Segundo Esper, as remoções de tropas começam em algumas semanas e, ao todo, custarão algo na casa de "um dígito de bilhão de dólares".
Ele não foi tão agressivo quanto o chefe em relação aos alemães, mas disse que "como o país mais rico da Europa, a Alemanha pode e deve pagar mais por sua defesa".
O mau humor dos americanos se estende também pelas relações ambíguas de Merkel e Putin. Os países são grandes sócios energéticos, e Berlim compra a maior parte de seu gás (35%), petróleo (40%) e carvão (30%) de Moscou.
Ambos os países estão finalizando o gasoduto Nord Stream 2, que transportará 80% do produto russo à Europa -onde cerca de um terço do consumo de gás vem do país de Putin. Os EUA já determinaram sanções econômicas a empresas ocidentais envolvidas no projeto e em outros no setor, gerando grande desconforto político.
No auge da Guerra Fria, havia mais de 200 mil soldados americanos na então Alemanha Ocidental. Contingentes similares de Moscou se posicionavam no lado oriental do país, reunificado em 1989 -dois anos depois, o império comunista viria a desabar.
O país é um dos principais centros de apoio logístico a operações dos EUA em regiões como a África e Oriente Médio. Ele sedia, em Spangdahlem, 24 caças F-16 C/D, que serão transferidos para a Itália, assim como cerca de 2.000 militares.
Essa mudança visa reforçar o flanco mediterrâneo da Otan, ameaçado pelas guerra civis na Líbia e na Síria, onde o país-membro Turquia está envolvido, assim como a Rússia. A Itália, contudo, é um dos membros que menos contribui com a aliança, apenas 1,22% de seu PIB.
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