Os EUA chegam nesta terça-feira (3) ao fim de uma campanha eleitoral sem precedentes, sob a expectativa de novos contornos históricos. Donald Trump ameaça não aceitar uma eventual derrota para Joe Biden e contestar na Justiça os resultados do pleito.
Atrás do adversário nas pesquisas nacionais, o presidente sinalizou que quer levar a disputa à Suprema Corte, instância para a qual nomeou três juízes, conseguindo estabelecer, assim, ampla maioria conservadora.
Trump pode tentar se apropriar de atrasos e distorções iniciais na apuração - que devem ser causadas pelo possível comparecimento recorde dos americanos às urnas - para mais uma afronta à democracia dos EUA.
No fim de semana, o portal político Axios publicou informações que confirmavam um dos maiores temores da campanha de Biden: Trump pretende se declarar vencedor antes de a apuração ser concluída, caso os primeiros resultados da noite o mostrem à frente em estados decisivos.
O presidente negou que faria a autodeclaração de vitória, mas admitiu que vai inaugurar uma cruzada jurídica sobre a disputa logo após o fechamento das urnas. "Não acho justo que tenhamos que esperar por um longo período de tempo depois da eleição [pelos resultados]", disse Trump. "Assim que a eleição acabar, na mesma noite, vamos entrar com nossos advogados."
Assessores de Biden têm se preparado para diversos cenários que podem surgir a partir desta terça, já que o presidente tenta há meses minar a confiança no processo eleitoral, afirmando, sem apresentar provas, que a votação por correio levaria a fraudes.
Questionado por jornalistas sobre a possibilidade de Trump se declarar vitorioso antes do fim da apuração, Biden disse que o presidente "não irá roubar a eleição."
A pandemia levou um número recorde de americanos às urnas de forma antecipada, o que indica que a participação total deve ser inédita. Mais de 98 milhões de pessoas já votaram, 62 milhões delas por correio e a maioria de eleitores democratas, o que acendeu o alerta republicano.
Trump questiona a contagem de votos por correio depois do dia da eleição, o que é permitido por lei em muitos estados, inclusive aqueles considerados-chave, como a Pensilvânia.
A estratégia do presidente, segundo a imprensa americana, é se aproveitar de distorções no início da apuração, causadas pela diferença na ordem da contagem de votos em cada estado.
Funciona assim: regiões que começam a apuração pelo voto presencial, como a Pensilvânia, poderiam colocar Trump na frente de início, já que essa é a modalidade preferida dos republicanos. O cenário, porém, estaria sujeito a mudanças conforme fossem contados os votos por correio, opção feita por mais democratas e que, de acordo com as regras do estado, podem entrar na contagem até sexta-feira (6).
Nas urnas, os EUA vão decidir se o presidente mais controverso da história do país ficará ou não mais quatro anos na Casa Branca, mas a disputa segue indefinida.
Trump bem que tentou mudar de assunto, mas a combinação das crises sanitária e econômica, junto aos inflamados atos antirracismo, fizeram da eleição mais que um referendo de seu mandato.
Em jogo, está sua condução diante da pandemia de coronavírus que já matou mais de 231 mil pessoas nos EUA e deixou milhões de desempregados.
A mesma pandemia foi o que influenciou a forma como eleitores votaram neste ano - recorde de participação antecipada, maior parte por correio, e que pode atrasar a apuração e fazer com que o vencedor não seja conhecido na noite desta terça.
Historicamente, a apuração americana não é concluída de maneira oficial na noite da eleição, mas projeções feitas sobre os resultados parciais nos 50 estados, na maior parte das vezes, permitem indicar o vencedor horas depois do fechamento das urnas.
No início do ano, o presidente era favorito à reeleição. Capitalizava bons índices econômicos, que incluíam a menor taxa de desemprego em 50 anos. Mais: desfrutava do apoio de uma base até então fiel em estados determinantes para a disputa e observava o racha do Partido Democrata - que chegou a ter mais de 20 pré-candidatos querendo concorrer contra o republicano.
A partir de março, porém, as previsões foram atropeladas. O coronavírus dominou o debate político, transformou o modo de fazer campanha e impactou até na forma de votação e apuração no país.
Os democratas se uniram em torno de Joe Biden, ex-vice-presidente durante os dois mandatos de Barack Obama, que subia nas pesquisas à medida que Trump minimizava a pandemia e os EUA chegavam à liderança mundial no número de casos e mortes por Covid-19.
Biden decidiu investir em uma campanha focada nos erros do presidente, cristalizando um sentimento muito mais anti-Trump do que pró-Biden entre fatias decisivas do eleitorado.
Pessoas jovens e negras, moderadas ou idosas, que foram de Trump ou não se mobilizaram às urnas em 2016 num país onde o voto não é obrigatório, desta vez se mostravam cansadas da retórica agressiva e negligente do presidente, principalmente em relação à pandemia e aos protestos antirracismo.
Não era preciso gostar de Biden, diziam auxiliares do democrata. Bastava não gostar de Trump.
Esse foi um dos principais argumentos do democrata entre os que participaram dos atos após o assassinato de George Floyd, em maio, e que pediam igualdade e uma ampla reforma no sistema de Justiça do país.
Para vencer, Biden sabe que precisa mobilizar jovens e negros em número recorde às urnas, como fez Obama em 2008 e 2012. Há quatro anos, esses grupos não se animaram com Hillary Clinton e, em estados onde a disputa foi apertada, como Michigan e Wisconsin, o comparecimento de eleitores negros caiu cerca de 12% em relação a 2012 - quase o dobro da média nacional - e custou a vitória democrata.
Com a indicação de uma senadora negra, Kamala Harris, para a vaga de vice, e a promessa de combater o racismo sistêmico nas corporações americanas, Biden tenta acenar de maneira mais assertiva aos que foram às ruas.
Trump, por sua vez, reagiu com o discurso da lei e da ordem, aprofundando a polarização que o beneficia em aceno à sua base conservadora. A maior parte dos protestos era pacífica, mas houve episódios de violência e depredação, o que estimulou a escalada do presidente. Ele visava também assustar moderados, moradores dos subúrbios do país - estratégia que se mostrou menos eficiente do que o republicano esperava.
O voto popular não é suficiente para eleger o presidente. O vencedor é o candidato que conseguir 270 dos 538 votos no Colégio Eleitoral, sistema indireto que escolhe o líder americano.
Cada estado tem peso e número de votos diferentes no Colégio Eleitoral, proporcionais à sua população. Assim, quem receber mais votos de eleitores no estado leva todos os seus delegados, e a senha é vencer nas regiões em que a disputa é mais apertada.
Biden aproveitou a resposta ineficaz de Trump diante da pandemia para arrancar nesses estados. O objetivo é tentar recuperar nichos perdidos para Trump há quatro anos, como Pensilvânia, Michigan e Wisconsin, além de conquistar novos terrenos, como Arizona, Carolina do Norte e Geórgia, redutos republicanos que têm sofrido mudanças demográficas que os deslocaram mais à esquerda.
Enquanto Trump manteve sua agenda de comícios, com muita gente e pouca máscara mesmo durante a crise sanitária, Biden optou por eventos virtuais e poucas aparições públicas, que seguiam regras de distanciamento social e, mesmo assim, só ganharam mais força na reta final.
A estratégia estava baseada em dois pontos: deixar os holofotes prioritariamente sobre Trump e mostrar respeito à ciência e às medidas de isolamento, em um contraponto claro à postura do presidente.
Em um país polarizado, Biden estaria exposto a escrutínio com qualquer declaração, argumentam assessores, enquanto rompantes do republicano, que chegou a sugerir injeção de desinfetante contra o coronavírus, agradavam à sua base, mas aparentemente não o faziam ampliar o arco de apoio.
No início, a tática de Biden foi vista com ceticismo até por alguns aliados, e o democrata passou a ser alvo constante de ataques de Trump, que o acusava de estar escondido no porão de casa em plena campanha.
Em temos normais, um candidato que aparece e fala pouco pode ser visto como omisso pelos eleitores, mas, na exceção da pandemia, o democrata pode ter se beneficiado.
O repique de casos de Covid-19 em 47 dos 50 estados americanos a quatro dias da eleição e a contaminação do próprio presidente, no início de outubro, provocaram aumento discreto mas constante das intenções de voto para Biden, que já liderava por ao menos quatro pontos percentuais desde março.
Estudo divulgado na sexta-feira (30) pela revista Science mostra que as mortes provocadas por Covid-19 diminuem o apoio à reeleição de Trump, já que os locais mais afetados pela pandemia estão menos propensos a votar em candidatos republicanos. Isso pode interferir no resultado de estados-chave, que também têm sido palco de altas taxas de contaminação, como Wisconsin e Flórida.
Nos últimos meses, Trump defendeu a reabertura precoce das atividades nos EUA, o que impulsionou os repiques de novos casos, mas se exime de qualquer responsabilidade pela pandemia, e diz que a culpa da tragédia sanitária --e da consequente crise econômica-- é da China, onde o vírus se originou.
Trump sabe do peso da economia em uma disputa eleitoral, ainda mais para um presidente que tenta ser reconduzido ao cargo. Em 2016, ele foi eleito como outsider, na esteira do cansaço que parte da classe média sentia em relação à política tradicional. Agora, quer provar que suas transgressões ainda ecoam.
Diante do provável atraso na apuração e do temor de protestos violentos que podem invadir as cidades americanas à espera do resultado, a noite desta terça feira deve ser intensa, mas talvez não seja possível cravar se o imprevisível Trump permanecerá ou não no comando da Casa Branca.
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