(FOLHAPRESS) - O presidente Donald Trump, decidiu apoiar a operação militar anunciada pela Turquia contra as áreas curdas no norte da Síria, traindo assim os maiores aliados americanos na guerra civil do país árabe.
A radical mudança na política dos EUA, que apoiam milícias da minoria curda na Síria desde que o conflito eclodiu em 2011, foi anunciada pela Casa Branca nesta segunda (7), segundo agências de notícias. Na prática, sinaliza o fim da presença americana na mais sangrenta guerra civil do planeta.
Trump e o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, conversaram pelo telefone no domingo (6) à noite. O americano disse que seus 2.000 soldados na região norte síria, a maioria de forças especiais, não iriam intervir na ação de Ancara.
Erdogan havia dito no última terça (1º) que criaria à força uma zona tampão separando os curdos sírios da região sul da Turquia, onde mora boa parte da enorme minoria curda em seu país. Havia um plano conjunto de estabelecer tal área com os americanos, mas ele falhou.
Com entre 30 milhões e 40 milhões de integrantes, os curdos constituem a maior nação apátrida do mundo. Cerca de 20 milhões vivem na Turquia, e são considerados separatistas pelo governo. Com efeito, houve e há grupos armados que lutam contra o controle de Ancara há décadas.
Ao longo da guerra civil síria, diversos grupos foram armados pelos EUA para combater tanto o Estado Islâmico quanto a ditadura de Bashar al-Assad.
O Pentágono separou, em seu orçamento para 2020, US$ 550 milhões (R$ 2,23 bilhões) para a causa, e já gastou bilhões de dólares com o apoio -só em 2017, foram estimados US$ 2 bilhões (R$ 8,13 bilhões) para rearmar a milícia YPG (Unidade de Proteção Popular).
A região norte síria, a leste do rio Eufrates, é dominada pelas FDS (Forças Democráticas Sírias), uma coalizão entre curdos e árabes controlada pelos primeiros. Segundo o jornal britânico The Guardian, o porta-voz da entidade, Mustafa Bali, acusou os EUA de criar "uma zona de guerra".
A traição de Trump tem duas motivações centrais. Primeiro, lidar com a Turquia, que é um país tecnicamente aliado aos EUA por fazer parte da Otan, a aliança militar liderada por Washington.
Só que nos últimos meses Ancara inclinou-se para o lado de outro ator central na guerra síria, a Rússia de Vladimir Putin, que interveio decisivamente em favor da ditadura local a partir de 2015.
O ápice do estranhamento com Washington foi a compra de modernas baterias antiaéreas russas S-400, que levou os americanos a retirar a Turquia do programa de construção e fornecimento de caças F-35, de última geração.
Erdogan nunca confiou nos EUA pelo apoio dado aos curdos ao sul de sua fronteira, o que ele vê como fomento à independência do Curdistão, que engloba também cerca de 2 milhões de pessoas na Síria, 8 milhões no Irã e 6 milhões no Iraque.
Segundo, Trump sinaliza que abandonou de vez a posição de potência com interesses na Síria, algo que já vinha ocorrendo desde que o então presidente Barack Obama disse que iria intervir se Assad usasse armas químicas -só para ser provocado várias vezes pelo ditador, sem nada fazer.
Não deixa, de certa forma, de ser coerente. Trump elegeu-se prometendo deixar os campos de batalha que considera inúteis. Preocupado com um processo de impeachment e a campanha de 2020, é uma distração a menos.
Na prática, não funciona num mundo cheio de armadilhas geopolíticas que dependem da instância americana, e ainda por cima chancela a posição dominante da rival Rússia e do arqui-inimigo Irã como os parceiros da Turquia na construção do futuro da Síria pós-guerra.
Putin, assim, é novamente o grande beneficiário do vaivém das políticas americanas para o Oriente Médio. Ele só entrou na Síria em 2015 pela inapetência ocidental em lidar com o conflito, restrita a bombardeios pontuais a posições do Estado Islâmico.
Para Erdogan, a vantagem é dupla. Os turcos ganham uma mão livre para agir contra os curdos e ainda podem tentar negociar com os americanos sobre temas relativos à Otan.
Além disso, o presidente turco espera abrir um caminho, com a tal zona de segurança ao norte da Síria, para devolver ao país árabe cerca de 2 milhões de refugiados da guerra, que já matou mais de 350 mil pessoas. A questão é que a maior parte dessa gente fugiu da ditadura Assad, o que torna seu destino incerto.
Há também a questão dos prisioneiros do Estado Islâmico, cerca de 60 mil pessoas nas mãos das FDS. É provável que a Síria, se tomar guarda deles, os entregue para o antigo desafeto Assad. Não será bonito de ver o resultado.
Com apoio de Moscou e de Teerã, o ditador sírio reconquistou cerca de 60% dos territórios que havia perdido. Agora, tem controle sobre quase todo o país, e a zona proposta pela Turquia, antes inaceitável, talvez seja o preço a pagar para encerrar a guerra.
Isso não o garantirá no poder, dado que há muitas pressões internas no país. Há especulações sobre uma transição, a ser costurada pela tríade Rússia-Turquia-Irã, mas ela precisa atentar a um sem fim de facções e interesses específicos.
Israel, por exemplo, não aceita tropas de Teerã abrindo uma potencial frente de guerra perto de seu território, e assevera isso com bombardeios frequentes a posições de aliados iranianos na Síria.
Com a traição americana, contudo, uma vítima é certa: a esperança curda de estabelecer uma região autônoma próxima da Turquia na nova ordem a ser criada.
As imagens de guerreiras mulheres da YPG, contraponto ideal na propaganda contra a barbárie misógina do Estado Islâmico, tenderão a virar exposições fotográficas num Ocidente que lavou as mãos e abandonou a causa que apoiou sem muita convicção.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta