É incomum que anjos pousem entre humanos. Muito menos anjos barrocos. Menos ainda anjos barrocos portadores de uma lira de linhagem pós-moderna, adiante de seu tempo, à maneira de raros mestres que nos antecederam. Eu o conheci na Cidade Alta de Vitória, na efervescência dos anos 80, quando as instituições e os fazedores de cultura conviviam naquele privilegiado espaço da ilha. Sérgio pousou entre livros, ao iniciar a trajetória intelectual, com depurado traquejo poético.
Ele era rapazola magro, espichado, cabelos louros esvoaçados, olhos azuis, um riso quase transparente. Pouca gargalhada, muita metáfora no bolso e no coração. Apesar de jamais ter deixado sua Cariacica, ele desabrochou para a literatura no ambiente em que se acotovelavam as muitas livrarias da capital. Sérgio era livreiro, aprendiz que galgou rápido na tarefa de conhecer clientes, editoras e autores. O bom livreiro do período sabia as prateleiras e o estoque. Ele conhecia a mercadoria por dentro, feito traça, ávido leitor.
Depois, ele migrou para produtor cultural, ainda na labuta vinculada ao mercado do livro. Cuidava de organizar lançamentos de escritores, nessa e naquela livraria mas, eis o segredo: tornou-se empresário de poemas e de uma linguagem revolucionária. Amigos, eu o enredei até a minha Macondo capixaba, a cidade de Ecoporanga. Sérgio esteve lá três vezes, íamos novamente no ano passado, porém, nas vésperas da partida, o terrível ano de 2019 castigou seu fígado encrenqueiro. Como podíamos adivinhar que 2020 seria ainda mais cruel?
Estivemos juntos. Ainda estamos. Nos lançamentos de seus: Estilo de ser assim, tampouco, Um,, Pus, Safira, A tabela periódica, Vírgula, Luzes da cidadania e... Daí, o Sérgio embirrou que não escreveria mais. Sentenciou o fim da escrita, altissonante, na Biblioteca Pública Estadual. Eu estava lá, eu reclamei. Logo mais na esquina do tempo, ele nos saudou com Blue sutil. Ali está, definitiva, a prova de sua magnitude. Seu derradeiro livro me fez dizer, sem lastro, o quanto sou seu admirador. Para sempre!
Sérgio Blank produz uma poesia de fazer borboleta desnudar-se de asas, de atear fogo nos oceanos, de aquietar congresso de trombetas. Sem embaraço e com loas a mortos exemplares, repito à exaustão: dentre os atuais, ele é o poeta-mor capixaba. Na fase final, que nos concedeu os acordes dissonoros de Blue sutil, sua prosa poética marca andamento e compasso de equilíbrio ímpar. Quem já bamboleou passos no balanço de arame farpado assim peculiar?
A vizinhança de estilo, amparada na inigualável fatura estética do texto de Sérgio Blank, pode ser garimpada no ouro temático de O spleen de Paris, de Charles Baudelaire, ou de A Prosa poética, de Arthur Rimbaud. Senão vejamos: pela janela aberta da sala, eu contemplava a arquitetura móvel que Deus faz com os vapores (A sopa e as nuvens, C. Baudelaire); Acreditei-me possuído de poderes sobrenaturais. Pois bem! Devo enterrar minha imaginação e minhas lembranças! (Adeus, A. Rimbaud). Ou, ainda na galeria da transcendência, Sérgio Blank, em Blue sutil: Não sei rezar. Acredito que molhar os pés nas ondas do mar é uma oração. O silêncio desenhado no horizonte é uma prece.
Os poemas desse seu incrível manual da sensibilidade são despidos de moldura, não têm título; se ele me pedisse para batizar o poema citado, eu lhe ofertaria Oração. Mas Sérgio não é de pedir nada com o idioma da voz. Não pediu sequer voto para entrar na Academia Espírito-Santense de Letras. Ousadamente, eu fiz campanha em seu nome, como se ouvisse rumoroso apelo de sua tão serena poesia. Houve farta concorrência, mas ninguém saiu derrotado. Porque a literatura venceu.
Dizer adeus ao poeta-mor capixaba, para sempre vivo, não é missão impune. Dizer adeus a um amigo tem seu preço em lágrimas e aperto no coração. Que assim seja, já que não posso restituir-lhe a vida. Muito comovido... Requiescat In Pacem, meu amigo. Guardo comigo, quase posso tocá-la, a transparência de seu riso. Sérgio não era Blank, era Blue. Sutil.
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